Rodrigo Petronio
Em busca do verdadeiro cristo
Caros senhores e
caras senhoras, sei que o simples título dessa exposição já deve ter
ouriçado alguns ânimos e cutucado a sua curiosidade de uma maneira
bastante peculiar. Não quero que me reprovem pelo seu caráter
ambicioso antes de averiguar a pertinência dos fatos que arrolarei,
trazidos à superfície como a multiplicidade de cores dos corais se
oferece à razão quando o influxo da lua baixa a maré. É certo que
não fui exatamente eu quem quis que essas questões emergissem e
tomassem corpo, embora esse texto seja a descrição fiel de algo que
vivi; não me eximo de suas conseqüências, mas, após uma analise
cautelosa do material que desfilarei aos seus olhos, cabe aos
senhores julgar se não ajo com prudência ao supor que esse exercício
de imaginação é fruto menos da minha vontade que de uma vontade
alheia que quis que eu conduzisse meu pensamento por essas trilhas.
Então, ao assunto.
Compulsando um
velho opúsculo beneditino que tratava, a partir de uma das tópicas
das Questões Discutidas Sobre a Verdade (II, 4-5) de Tomás de
Aquino, da possibilidade de se pensar a Santíssima Trindade, me
deparei com uma afirmação algo singular. Num dado momento, o monge
responsável pela edição do texto, cujo nome desconhecemos, escreveu
à sua margem: Deus é Ninguém. Não sei por que motivo me ative a esse
escólio, e sobre ele meditei durante algum tempo; perdi a
concentração e, vendo que os esforços para prosseguir o estudo
fracassavam, resolvi voltar para casa e deixá-lo para outra ocasião.
A frase, no entanto, martelava na minha cabeça. Se o homem foi
criado à Sua imagem e semelhança, é sinal que mantém com Ele uma
relação de contigüidade, há vestígios, para usar as palavras de
Tomás de Aquino na Summa, do divino no mundo. Se essa relação se dá,
como diz Aristóteles na Metafísica (II, 1123b), por uma analogia de
formas entre Criador e criatura, mas não de substância, posto que
Ele seja Infinito, e, portanto, não passível de ser predicado a
partir de enunciados existentes e finitos, podemos aduzir que ambos,
Criador e criatura, carecem de essência, e sua estrutura última
seria o vazio, o Universo todo e a própria divindade estariam
reduzidos a um conjunto de sombras errantes.
Cheguei em casa;
ao entrar no quarto me deparei com minha imagem no espelho. “À Sua
imagem e semelhança”, pensei. O raciocínio parecia lógico: para Deus
criar o mundo ex nihilo, Ele deveria ser algo; se todo estado
anterior permanece vivo no que o sucede, toda realidade causada
mantém em si a Causa e todas as coisas apontam para a Coisa
original, é sinal que este Nada se imiscui em todos os seres
existentes, participa em todos eles. Se há semelhança entre Criador
e criatura, temos de aceitar a participação deste vácuo também na
Razão divina, o que a torna logicamente impossível. Assim
procedendo, vemos que não há semelhança, mas identidade entre um e
outro e, havendo-a, podemos dizer que a realidade, em sua
contingência, é o próprio Deus e, sendo assim, Ele deixa de existir
enquanto tal, bem como todas as criaturas que procedem dele perdem o
elo com a Sua sabedoria transcendente. E está fechado o círculo de
Hermes. Só assim pode-se supor a conjunção de três pessoas em uma
o Pai, o Filho e o Espírito Santo são na verdade Ninguém, um nada
primordial sem o qual é impensável uma tal união. É preciso ser
impessoal para conter várias pessoas, como é necessário que o barro
seja amorfo para dar vida a várias formas. Duvidar de mim, da minha
existência singular e intransferível é, em última instância, descrer
de Deus. Pensei que se essa tese fosse verdadeira, o que era bem
provável, não só Deus não existiria, mas a própria vida seria um
simulacro, como a conceberam Ésquilo e Schopenhauer, e Jesus não
passaria de mais um homem, um fantasma entre outros.
Sabemos que
Antônio Vieira, a partir de um modelo hermenêutico providencialista,
via a História como uma preparação sucessiva de tipos para a vinda
do protótipo e bem supremo Cristo. Abraão está mais próximo de
David, e David está mais próximo de Cristo, o que constitui, em si,
uma evolução dos tempos, todos eles concorrendo para o topo da
montanha que é a vinda do salvador, numa preceptiva hierárquica
escolástica que encontramos também em Dante. Se a veracidade
histórica de Jesus não chega a ser duvidosa, sua existência e o
valor ontológica de sua figura é, por outro lado, bastante frágil.
Sendo assim, a História seria a sucessão monótona de figuras sem
significado. São “cacos de barro entre outros cacos”, conforme
Isaías (45, 9). Em suma, todos iguais perante o Tempo.
Analisemos
alguns dados.
Flávio Josefo,
na sua História dos Hebreus, não menciona o nome de Jesus nenhuma
vez, senão em quatro linhas (crê-se) rasuradas e interpoladas
posteriormente por cristãos pois seria curioso se, sabendo da sua
importância, só lhe dedicasse essa pálida referência. Quanto ao
Testimonium Flavianum, já foi provada sua falsidade, posto que seria
impossível Josefo se referir ao mártir nos termos em que o faz, e a
rubrica que Tácito nos dá dele nos Anais só serve para agravar a sua
condição de indigência histórica e empalidecer os seus traços.
Circuncidado e
batizado por João às margens do Jordão, cumpriu todos os preceitos
de seu povo, e disse pouco, para não dizer quase nada, do que lhe
atribuem. No capítulo dezenove dos Atos dos Apóstolos, Paulo, um dos
principais difusores das idéias de Jesus, perguntou a alguns em
Éfeso: “Receberam o Espírito Santo?”, e estes lhe retorquiram:
“Nunca ouvimos falar em Espírito Santo”. Paulo lhes disse: “Que
batismo foi o vosso?”. “O batismo de João”, responderam. Só depois
iríamos saber que o Espírito Santo e o cristianismo, como o
entendemos, são uma invenção dos apologistas helenísticos que
viveram em Alexandria no século VI.
Há controvérsias
quanto à genealogia de Jesus, e também quanto ao fato dele ter
nascido de Maria. Mas a doutrina se difundiu como tal. Logo após a
sua morte, havia sete seitas entre os judeus: essênios, saduceus,
fariseus – pelo visto muito próximos dos gimnosofistas e dos
brâmanes da Índia pelo “amor cósmico e contemplativo”, como nos
atesta Fílon –, judaístas, terapeutas, os discípulos de João e os de
Jesus. Também as há em relação a uma idéia polêmica: seria Jesus o
próprio Deus ou um instrumento divino? No século IV, as opiniões se
dividiram. Os ortodoxos, sob a liderança de Alexandre, bispo de
Alexandria, e Atanásio, interpretavam as palavras de Jesus como “O
meu Pai e eu somos a mesma coisa”, enquanto Eusébio, bispo de
Nicomédia, autor da História Eclesiástica, primeiro obra a narrar a
formação da Igreja Católica, seguido do padre Ário e de mais
dezessete bispos, inspirados num passo de Paulo, criam no contrário:
“O meu Pai é maior do que eu”, e Jesus era visto como a mais pura
emanação do Ser Supremo, mas não o sendo propriamente. Dessa celeuma
nasceu uma definição curiosa, e bastante em moda nos nossos dias,
dada por Alexandre a seus adversários: a de anticristo.
Entre cristos e
anticristos, se multiplicaram também os Evangelhos, o que nos é
posto como um empecilho grave para a tentativa de se definir o que
venha a ser a doutrina cristã e a própria realidade de seu portador
e enviado. Há um proto-evangelho atribuído a Jaime, irmão de Jesus
por parte de pai. Há o Evangelho da Infância de Santo Tomás, que
descreve seus primeiros anos de vida provável inspiração para
Fernando Pessoa compor, pelo nome de Alberto Caeiro, um poema sobre
o tema , e o Evangelho de Nicodemo, onde se encontra o nome
daqueles que acusaram-no perante Pilatos. Inspirados no Apocalipse
de João, onde se lê: “Vi um anjo a voar no meio do céu e levava o
Evangelho Eterno” (cap. 17), frades franciscanos redigiram, no
século XIII, o tal evangelho, e propuseram a substituição do reino
de Jesus Cristo pelo do Espírito Santo, de onde talvez provenha a
concepção abstrata do nosso monge beneditino. Na Ciência Nova (II,
I, 1), Vico, apoiado no Rerum Humanorum et Divinorum de Varrão, nos
diz que a origem do pensamento é poética, e, portanto, avessa à
comprovação empírica. Essa tese se mostra verdadeira se formos falar
de Abdias, cronista que viveu na região da Ásia Menor e escreveu, em
hebraico, a vida dos apóstolos, intercalando-as a fábulas absurdas
originárias até de mitos pagãos, como os narram Plínio e Suetônio. É
provável que estas fábulas tenham entrado para a Vulgata de
Jerônimo.
Diferente do que
se conta, a perseguição aos cristãos não foi tão mordaz. O Império
Romano mitigava as seitas e a celebração dos mistérios que
proliferavam sob o seu domínio, com exceção daquelas fundadas no
monoteísmo. Muitos adeptos de Platão se tornaram cristãos, e os
padres da Igreja primitiva eram todos eivados de platonismo. Como se
lê em Orígenes, instrutor de Jerônimo e um dos homens mais sábios de
seu tempo, no Livro III do Tratado Contra Celso, conta-se nos dedos
o número de cristãos mortos pela sua religião. E mesmo a História
Verdadeira desse mesmo Celso, o platônico, que contém as linhas que
talvez sejam as mais virulentas e brutais que já se escreveu contra
judeus e cristãos, pinta-os como um séqüito em constante
crescimento, próspero e influente.
Um poeta grego
diz que o tempo traz todas as coisas à luz. Creio que seja
justamente o contrário. A História deriva os sentidos, dá
ambigüidade ao que era, na sua origem, fato, cria novas realidades e
simula outras que não existem. Por isso James Joyce se refere a ela
como um pesadelo do qual deseja acordar, e Montaigne a transforma em
um grande teatro de máscaras, uma pantomima que nos aponta a todo
momento a imprecisão dos conceitos e a fragilidade humana.
Chegou Cristo a
existir? Essa foi a pergunta drástica que, de súbito, se instalou em
meu espírito. Pergunta que, depois de uma reflexão longa e exaustiva
sobre o assunto, devo confessar que me pareceu não só pertinente,
mas até mesmo sensata.
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