Rodrigo Petronio
Hans Gottesliebe
Já faz algum
tempo que observo minhas mãos. Elas têm algo de sereno, frágil e
ameaçador, simultaneamente. Vasos sangüíneos que sob a pele se
distendem, os nervos se contraem quando as fecho. Como se fossem um
mecanismo à parte do corpo, sinto-as em toda sua intensidade,
funcionando em repouso, os dedos finos, compridos que ora arranharam
as paredes desse cômodo de cerca de dois metros quadrados, há algum
tempo. O que nos leva a situações extremas, as quais nunca sequer
sonhamos um dia viver? A ordem dos fatos e o ponto de fuga que
conduz à vida ou à morte parecem tão alheios e estranhos ao nosso
destino que às vezes penso não serem passíveis de explicação ou
entendimento. Não faço idéia de onde esteja nesse momento; e isso
também não importa. Importa é que a distância aproximada de cada um
de meus dedos em direção à palma varia sem uniformidade, e que sou
tão destro que se poderia dizer que possuo uma única articulação, a
direita, estando a esquerda numa infância remota, anterior às
operações mentais abstratas. Cada parte de nós envelhece num ritmo
diferente das demais, e nem todos nós vivemos num mesmo tempo. Daqui
a única comunicação que tenho com o mundo é o feixe de luz que advém
de um pequeno orifício situado na conjunção entre a parede e o teto,
ou seja, a uns sete metros do chão; por intermédio dele aufiro as
horas. Ele é o meu sol particular, minha prova natural de que lá
fora existe vida, semelhante à prova de um crime que todos os dias
retornasse durante o sonho para nos dar indício de que o mundo
marcha, infenso às nossas dúvidas e intervenções. O ponto agora
surge; ele tem suas próprias regras, que são imutáveis. Sei no
íntimo de mim que sua aparição denota as cinco horas da tarde, a
parábola descrita na parede em semicírculo as seis, aproximadamente,
e o seu ocaso o fim literal do dia. A natureza é um conjunto coeso
de leis previsíveis, elementares até. Sabemos que a luz do sol
libera na flor a fotossíntese, que certas criaturas não se adaptam a
um clima ou a uma região, e que a seleção natural provê a
permanência de uma espécie em detrimento de outra. Sabemos a
distância de uma estrela a outra, e o que provocaria a conjunção
inusitada de dois astros; conhecemos as alternâncias marítimas, guia
dos cardumes e da pesca propícia. Conhecemos até mesmo a substância
interior de um átomo, que alternando ondas e partículas nos informa
que o universo às vezes se comporta de forma caótica e em seqüências
encavaladas, não lineares. Basta ter em conta, por exemplo, a
memória: nunca podemos lembrar uma coisa só – a memória é sempre
composta. Acorde do espírito, guarda em si uma série de notas
potenciais oferecidas em conjunto. (Como poderíamos pensar a memória
do universo, se é que ele possui uma? Com certeza ela não pode ser
lembrada, pois a natureza não tem consciência do que faz, fá-lo
somente. O mundo é um grande livro se crermos que cada evento, por
mais banal, seja um signo que conduz à Revelação. A memória nas
pegadas, na pele gasta com a fricção dos agentes externos, no fóssil
que persiste incrustado no âmbar e conserva sua forma original, apta
a ser decifrada pelos olhos mais canhestros, essa espécie de
lembrança coletiva sempre presente, sempre ali, ao alcance das mãos,
porque o universo não tem inconsciente, e se o tivesse ele se
chamaria Deus. Resgatar o passado das coisas é partir delas mesmas:
cada coisa já é em si o seu passado, presente e futuro imbricados,
nada tem de virtual ou potencial: as coisas são, apenas). De
qualquer forma, disse isso para falar das minhas mãos, repositório
de toda a memória material que me acompanha. Ela tem algumas
cicatrizes, pequenas, mas cicatrizes. Às vezes o sol pontual que
nasce do teto, abóbada celeste sempre negra, como se dentro de uma
madrugada profunda, irrompe sua substância sem dissipá-la e, num
giro singular, percorre minhas mãos em constante repouso sobre os
joelhos. Penso que o desequilíbrio das pessoas destras seja o que há
de mais assustador na vida. O medo de ser surpreendido pela pior das
loucuras, a loucura da regra, clara, pontual, limpa, asseada,
precisa sobre a toalha de mesa onde repousamos os olhos, ou no
travesseiro que arrumamos até encontrar a proporção, a medida áurea,
a eqüidistância geométrica onde nosso corpo encontra repouso sem o
qual a noite seria insustentável. Estou sentado na minha cadeira,
único cômodo desse ambiente. Ouço ruídos do aposento lateral; parece
uma festa, uma reunião. Há muito não ouço barulho que não seja
aquele emitido pela minha própria cabeça contra a parede, marcando o
compasso do tempo a girar numa espiral infinita. Meu pai acenando
adeus com o chapéu na mão, no cais entre uma multidão. Como é
interessante a nossa capacidade de distinguir os entes queridos,
capacidade espontânea, quase biológica de, mesmo cerceados pela
situação mais cruel, ou no tumulto mais ordinário, encontrarmos
coerência na fisionomia dessas criaturas, a ponto de podermos
resgatar o contorno de sua face após décadas de reclusão. Ei-la:
está na minha frente: o rosto sulcado, as sobrancelhas grossas, o
nariz aquilino e o corpo delgado dentro das calças frouxas
balançando ao vento. Minha vida foi tranqüila de modo geral, de
poucos acontecimentos. Até o dia em que conheci uma mulher, não
qualquer uma, mas aquela com a qual vim a me casar, e viria a
constituir família, se os filhos não nos fossem negados pelo
destino. Sua pele excessivamente branca, seus olhos cristalinos com
tom de melancolia sugeriam uma natureza diversa da maioria rasteira
e vulgar que encontramos em abundância pela rua. E talvez seja isso
mesmo que tenha me interessado: a franja tênue que lhe pendia dos
cabelos negros e as mãos muito pequenas e delicadas sobre as teclas
do piano executando as Gnossiennes, uma combinação de traços,
formas, conceitos, temperamento, tudo confluindo para aquele ser
singular que parecia dotado de uma pureza sem predicação possível. A
voz etérea, a carne pálida, o jeito maternal de arrumar e dispor em
simetria os objetos pela casa, sobre a mesa da sala, os detalhes da
louça na estante rigorosamente enfileirada, o riso inscrito com
discrição entre os lábios finos. Toda de branco, vejo o seu reflexo
na enfermaria onde a pele, a roupa branca, as luzes e a parede ao
fundo mais parecem uma iluminação única e indistinta que nos vem
perorar a presença divina entre os vãos da vida quotidiana e
ordinária. O pulmão estava fraco; uma estufa o substituía, arfando
ao meu lado como se fosse um paciente imaginário a pedir clemência
entre um suspiro e outro. A insulina pingava com hesitação, como os
iniciantes no crime, e eu conseguia discernir poucas coisas com
precisão naquele horizonte de camas e luzes florescentes. Apenas a
sua voz, quando ainda ecoava longínqua. Mas isso passou; e a vida
reatou seu curso. Estando reabilitado, fui a sua procura. Travamos
contato, saímos, encontramo-nos algumas vezes, e eu já me sentia
praticamente entregue. Sugeri-lhe casamento. Ela não concordou;
expôs seus motivos: a idade, uma inaptidão para esse tipo de
compromisso, coisas da sua natureza mesmo. Mas sua resistência durou
pouco, tal foi a persistência com que lhe assediei durante dias,
meses, anos. Casamo-nos, por fim. E aqui começa minha história real.
Não que eu tenha sido infeliz ao seu lado, ou tenha descoberto que
na verdade não a amava o quanto supunha; não tive amantes, nem essas
crises conjugais comuns entre homem e mulher. Houve algo distinto
entre nós. Os primeiros meses foram maravilhosos; quando eu a olhava
cozendo à luz que incidia pela janela, o ar absorto de alguém que
nunca experimentou um contato imediato com a realidade, que vivesse
simplesmente de contemplação, abnegação, consentimento, sentia uma
felicidade que nunca havia experimentado antes. Pensar que aqueles
gestos, cada torneio de seus ombros sob o decote, seus cabelos
lisos, seu olhar ausente, sua discrição, e até mesmo o seu silêncio
me foram concedidos por um desígnio superior e inalienável, me
enchia de uma sensação de paz, de uma satisfação ímpar que era nova
para mim. Alguns podem pensar, por essa descrição que ora faço, que
se tratava de uma mulher como as outras, e atribuir todos esses
traços que eu achava fundamentais para a compreensão do seu caráter
a uma simples tendência à subserviência e ao acolhimento do lar, da
rotina e de uma vida amena e medíocre, e inferir que, se o faço, é
por amá-la, e para o amante a realidade é algo sempre e sempre
inatingível. Como uma espiral que dá voltas e nos ilude ao sugerir
um falso retorno ao ponto de partida, sendo que se encontra,
efetivamente, cada vez mais distante do centro, assim também
funciona a percepção do amante com relação à pessoa amada: elegemos
cada detalhe, cada peculiaridade do ente amado e a erguemos a uma
condição de glória absoluta, como se aqueles pedaços, aqueles
fragmentos da amada que forjamos nos nossos sentidos, neles se
dispusessem e se ordenassem, de tal forma ganhassem coesão, que
haveríamos de supor facilmente que não estão subordinados às ordens
do tempo, da matéria, e sim pairam, incólumes, numa dimensão
paralela atemporal que ora se assemelha à perfeição, ora à
resignação dos santos e dos mártires, indiferentes ao dia a dia e às
preocupações dos pobres mortais e seus afazeres. Não, não era isso.
Tinha bem claro em minha mente os limites do que ela era realmente,
e o que era fantasia, devaneio ou mera mistificação da minha parte.
(Há uma goteira bem do meu lado; de repente vi as palavras crescendo
ao ritmo dos pingos, e a folha de concreto sob meus pés sendo o
artífice e o suporte da mais antiga narrativa jamais contada, a
natureza escrevendo em sua língua muda e gravando em marcas
indeléveis a história avessa da humanidade. Não a história dos
vitoriosos, já que foi justamente para esses que ela foi feita; nem
a dos derrotados, pois não deve ser digno de interesse quem se
compadece com a própria ruína, mas simplesmente a história natural
dos seres, coisas, resíduos de gestos que povoam a física do planeta
sem nunca ter entrado para os autos ou sequer merecido a atenção de
uma criança. A árvore cresce, a concha se faz no mar calcário, a
vida infracelular se gera a si própria, a ave enceta mergulho e
pouso, o fóssil se fossiliza na distensão dos séculos, dos milênios,
sem que ninguém os meça, sem que ninguém os saiba ou interrogue. É o
mistério da vida não inteligida, não catalogada, que escapa, e
também o nosso mistério). Andávamos longas horas pelo parque próximo
de casa, íamos ao lago cruzá-lo a remo; recebíamos uns amigos,
visitávamos outros. No entanto, passado algum tempo, comecei a
perceber uma indisposição mútua em compartilhar nossa vida conjugal
com outras pessoas, ainda que fosse na troca de informações
superficiais ou num encontro ocasional sem qualquer envolvimento.
Passamos naturalmente a nos centrar mais em nós mesmos, criando
recreações que nos dissessem respeito em primeiro lugar, depois aos
outros. Nossos amigos se tornavam escassos, nossa vida social cada
vez menos constante e mais intermitente. Até o momento em que
raramente deixávamos a casa, situada na periferia da cidade, quase
na zona rural. Inconscientes e alheios ao que estava acontecendo em
nosso casamento, sem dizer qualquer palavra, passamos a só sair de
casa para ir à mercearia comprar produtos alimentícios e outros bens
primários. Meu maior deleite era observá-la, possuí-la com os olhos
enquanto ela mirava o vazio de sua própria mudez. Para que
precisaríamos dos outros? Éramos felizes, e não havia motivo que
provasse o contrário. Mesmo porque – imaginava –, quando em
comunidade, o ser amado nunca é exclusivamente nosso, pois passível
à admiração de muitos outros, de pessoas estranhas mesmo. Acreditava
que a unidade da alma de uma pessoa só se realiza em sua plenitude
quando conseguimos estruturar sensivelmente todos os seus traços
marcantes, e ter uma imagem global desse ser formada em nosso
espírito, de tal modo que pudéssemos passar anos sem vê-lo e mesmo
assim conseguíssemos compor seu retrato mental. Só dessa forma pode
haver o amor entre duas pessoas: quando ambas encontram a
exclusividade, o quê de singular guardado pelo outro e a nós
ofertado. Não dizíamos mais palavra, não era necessário; havia
trancado as janelas devido à petulante interferência dos meninos da
vila, sempre a nos chamar para o resgate da bola de futebol que
sempre caía no nosso quintal. O mantimento era suficiente para
alguns meses; revi toda a nossa rotina, para me certificar que não
haveríamos de ser incomodados por nada. A sós, um dia transcorrendo
atrás de outro, as notas do piano vibrando ganhavam o espaço da sala
principal. Nada mais me importava. Decorei cada curva daquele corpo,
cada artifício de sua fala, cada ondulação da roupa sob uma
determinada intensidade de luz e perspectiva. Mas os fatos se
encadeiam, e as suas conseqüências se forjam quase sempre à nossa
revelia, embora sejamos nós que tenhamos que levá-las adiante.
Passamos um ano e meio nesse sistema de reclusão parcial e
voluntária. Foi quando comecei a notar um arrefecimento de meu
desejo por ela. Vi-me, surpreso, não tendo mais a mesma sensação
delicada, mistura de ternura e admiração instintiva, ao vê-la
fazendo as atividades da casa em silêncio, e emitindo ora ou outra
um sorriso discreto que mais parecia um apelo erótico
estrategicamente dissimulado com o fito de, por meio de sua
ambigüidade, ter seu teor sensual e lúdico ainda mais acentuado.
Aceitava o jogo, entregava-me às regras que ela me prescrevia sem
delongas ou discursos estúpidos, próprios de casais cujo
envolvimento, por tão superficial, precisa ser constantemente posto
em evidência e rezado como a uma cartilha, ou um manual. Entretanto,
por mais que tentasse, e por mais que me fosse cara aquela presença,
esmorecia a cada dia meu sentimento, de forma tão implacável e
intensa que já não conseguia omitir-lhe. Revi nossas ocupações,
tentei persuadir-me de que aquilo não passava de uma crise, um
delírio efêmero. Não surtiu efeito: a cada novo dia minha
impaciência e meu desconforto só cresciam, à proporção inversa da
imagem perfeita que havia criado e cultivado por todo aquele tempo.
(É um lugar-comum dizer que o amante se transforma na coisa amada em
função de seu sentimento; isso parece claro aos olhos da criatura
mais desprezível, se não me equivoco. No entanto, afora o valor
edificante de uma tal simbiose de corpos e espíritos, poucos
consideraram-no pelo seu lado maléfico, cruel e – poderia mesmo
dizer – maligno. Mas é essa sua substância primordial: chega o
momento mágico em que nos identificamos com a pessoa amada a ponto
de perdermos nossa identidade, e atribuímos todos os seus movimentos
e idéias não apenas a ela, ser autônomo que gravita numa órbita
independente da nossa, mas sim a partes, prolongamentos, atos nossos
mesmo, sobre os quais não temos domínio nenhum. O coração bate para
irrigar o corpo. Não o detemos, nem temos necessidade de saber que
ele bate para que prossigamos vivendo. É um músculo involuntário, e
age à mercê das vontades e em prol de uma vontade maior – a
manutenção da vida. No caso dos atos da pessoa amada essa operação é
muito mais delicada: pressupõe que, não só eles independem de nós,
como poderiam muito bem desaparecer amanhã ou depois, caso a pessoa
resolvesse seguir outro rumo. No amor não há indivíduos: há uma
massa amorfa de atitudes incontroláveis e, já que aqui as vontades
não são de sujeitos, mas de um agregado de forças que os ultrapassa
e participa na grande ordem dos eventos desse universo, não somos
nós que estamos implicados nessa comunhão, mas o próprio Deus).
Tendo por norte essa idéia, levei-a até o fim. Transcorridos meses
de reclusão, ela apresentava olheiras, um ar pálido acinzentado,
havia perdido vários quilos e já não se animava com nosso
entretenimento a dois; disse que precisava sair, reatar a vida
social que havia obliterado por nosso motivo. Concedi-lhe que o
fizesse, mas o aval durou pouco tempo. Já nas primeiras semanas
senti febre, tremores, uma angústia anormal. E não se tratava de
ciúmes; não imaginava, e nem era possível, que ela flertasse com
outros homens em seus passeios diários. Não era esse o problema. O
fato é que só de imaginar que outros olhos poderiam olhá-la, que ela
dividiria a mesma calçada com outros, que – ai, nojo maldito! – ela
conversaria com outras pessoas, dentre as quais até desconhecidos,
me dava uma revolta, um ódio profundo e um desprezo por toda a
humanidade. Como posso amar um ser que não seja exclusivamente ele
mesmo, e pelo consórcio com os outros se misture e mescle traços de
outro caráter ao seu? Como amarei aquele torneio de ombros, obra tão
peculiar da natureza, tendo em vista sequer a hipótese de que ele
poderia ter sido aprendido com uma amiga, ou, pior ainda, num
simples ímpeto de adequação à moda, ao conjunto de regras de
etiqueta compartilhado por todos numa certa época? Como conceber o
amor por um ser que comporta e para o qual confluem todos os seres?
Onde entra a fidelidade? Se o amor é divino, e é preciso que o seja,
só se pode amar a uma mulher, como só se pode adorar a um deus. Mas
essa lógica simples se tornava cada vez mais obscura em minha
cabeça. Amava-a com toda minha força, e, no entanto, não era capaz
de dar-lhe um simples beijo sem pensar que aquela inclinação dos
lábios em forma de taça tivesse sido apreendida de alguma conhecida;
de admirar-lhe a alvura dos calcanhares sem reparar na meia que
poderia ter sido copiada da filha do jardineiro; de notar a
desenvoltura dos gestos quando estava efusiva sem associá-la à das
modelos de propaganda; de observar a curvatura de seu maxilar quando
sorria sem me lembrar de imediato de seu irmão; de ligar – pelos
céus! – a versatilidade de sua mão manipulando a faca aos trejeitos
da do açougueiro em seu ofício. Minha saúde foi aos poucos sendo
consumida por essa obsessão; já que nossa devoção não podia mais ser
mútua, comecei a cercear-lhe as saídas, os compromissos, indagando
sobre todos os lugares para onde ela fosse, com quem freqüentava,
por quanto tempo, os horários todos e por ai afora. Isso não bastou.
Expliquei os meus motivos; ela redargüiu dizendo que resumir nossas
vidas a nós mesmos havia sido bom no início, foi uma loucura
passageira e consentida, hoje já não faria mais sentido. Não acatei,
e por situações muito pontuais, com muita malícia, tratei de,
paulatino, anular suas tarefas. Fingi-me doente, e requisitei sua
presença e seu tratamento. Inventava as situações mais esdrúxulas,
as viagens a dois mais esquisitas e as ocupações caseiras mais
absurdas para prendê-la sem ter de utilizar a força. Logo havia
abandonado o emprego, e se afastava lentamente dos poucos amigos que
lhe restavam. Ao perceber o mecanismo que lhe impingia, se revoltou:
exigiu que eu a deixasse livre, tentou demonstrar o ridículo daquela
situação, me fez voto de silêncio, esbravejou. Isso era muito pouco
para tirar uma idéia fixa da minha cabeça. Vendo que não poderia
controlá-la por artifícios, e que seu discurso e seus argumentos
eram irredutíveis, tive que ser mais enérgico. A princípio preguei
algumas tábuas atravessadas nas janelas, e alterei todas as
fechaduras, mantendo as chaves sob meu domínio para evitar qualquer
tentativa de fuga, e para deixá-la circular por todos os aposentos.
Não foi possível: ela tentou diversas vezes arrombá-las, e gritar
por socorro com uma voz estridente que reverberava em todo bairro.
Não entendia aquela reação; a única coisa que estava tentando fazer
era preservar o nosso amor, e protegê-la das más influências do
mundo. Tive então, a contragosto, que a trancar no porão, livrando-a
apenas na hora das refeições que fazíamos juntos. O banho
meticuloso, a roupa bem alinhada, um perfume, o cabelo bem
penteado... Que prazer me dava prepará-la, e também a mim, para
aqueles jantares, um prazer indescritível. Sentávamo-nos frente a
frente, as iguarias se estendendo com fartura sobre a mesa, e eu a
observá-la. Em pouco tempo já notava mudanças no seu temperamento;
os sinais do mundo exterior, como manchas numa janela embaçada pelo
inverno rigoroso, se dissipavam, se apagavam e se recompunham à
atmosfera de dias idos e cada vez mais desbotados na memória; quanto
mais o tempo passava, mais eu a livrava das impurezas do cotidiano,
e maior era a nitidez dos seus traços que recrudesciam para mim e
afirmavam a sua personalidade. Nesse tempo ela já não lutava contra
as circunstâncias. Parecia que aceitava, fria e resignada, o nosso
destino, enquanto eu podia muito bem ficar horas com a comida
esquecida no prato, apenas observando embevecido o trabalho de suas
mãos trêmulas sustentando a colher até os lábios rosados. Então,
pude enfim compor sua feição como eu a imaginava, e ativar novamente
o amor que sentia por ela. Semelhante a quem organiza um
quebra-cabeça, e dá a cada peça o seu lugar no tabuleiro, criando
por fim a figura tão esperada, criei a sua personalidade. Fazia
compras, cortava lenha para as noites de inverno ante a lareira;
líamos em silêncio na sala, e logo em seguida eu ia preparar sua
cama, vesti-la, e pô-la para dormir. Fui eu mesmo quem lhe deu as
festas de aniversário... E foram muitas. Um dia, porém, como outro
qualquer, quando à mesa tomávamos o café da manhã, mirei-a de
relance e tive um ímpeto incontrolável. Ela o sentiu, e me olhou
ressabiada. Tentei domá-lo; não era possível. Algum demônio se
levantou dentro de mim, e sem qualquer explicação ou motivo aparente
foi ao gabinete da pia e pegou uma faca de lâmina prateada e aguda.
Parei em pé às suas costas. Alinhei uma baixela cromada
transformando-a num espelho onde seu rosto atônito se refletia. Com
uma das mãos envolvi uma grande mexa de seus cabelos negros;
cortei-a como quem cortasse uma réstia de alho ou uma corda,
friccionando desordenadamente as cerdas contra os fios que se
rompiam caóticos entre os meus dedos. Repeti diversas vezes esse
gesto, com o olhar fixo no seu reflexo que uma hora ou outra deixava
escorrer alguma lágrima. Não posso negar ter sentido um prazer
obscuro naquele ritual... Aliás, poucas vezes na vida havia
saboreado tanta satisfação; era como se nossa relação houvesse
começado de fato ali, naquele dia, naquela cozinha embebida da luz
natural a vazar da clarabóia situada no teto. Fiquei muitos minutos
parado, com um sorriso entremeado nos lábios, fitando aquela imagem
que também me olhava e oscilava. Posso dizer hoje que aquilo
correspondeu para mim a um estado de graça, a um êxtase místico ou
coisa parecida. (Sempre chega um momento da nossa vida em que
tentamos organizar todo o passado a partir de um ponto, um eixo, um
conjunto de valores atuais, e a partir deles pensar se o que temos
feito está coerente com nossos anseios mais íntimos. O fato é que
não raro tenho a impressão de podermos chegar ao fim da vida e, no
leito de morte, entre mercúrio e lâmpadas, olhar para trás e num
átimo perceber que toda ela não passou de um equívoco, de um grande
erro, e imaginar caminhos bem diversos dos quais escolhemos ou aos
quais fomos induzidos. O passado se descortinaria ante nossa retina
cansada como uma grande comédia, porque sugeriria a liberdade de
escolha dos atos, mas nos daria também o vazio de seu significado e
sentido últimos. E era nisso mais ou menos que consistia nossa
relação). Desde esse ocorrido, passei a vê-la de outro ângulo. Ou
melhor: passei a notar-lhe, não nego que com um certo incômodo,
certos índices de apatia, uma masculinidade discreta, talvez em
decorrência do cabelo raspado, e uma ostensiva fragilidade. Quis
criar argumentos racionais que os justificasse; não pude. Seu
aspecto me incomodava. Suas olheiras, seu ar delicado, ao invés de
incitarem na minha imaginação figuras angelicais, me traziam à mente
e me induziam a ver naquele ser que passava seus dias a se deslocar
de um aposento a outro da casa um fantasma maltrapilho, um clown
estúpido de alguma farsa, ou o protagonista de um jogo de encenação
do qual eu desconhecesse por completo as regras. Parece dispensável
dizer o abismo que se criou na minha vida ao ver-se transmutando num
objeto alheio, indiferente, estranho, diria até independente em
absoluto de mim, aquilo que um dia já fora parte integrante, não só
da minha mente, do meu espírito, numa unidade alquímica indizível,
mas do meu próprio corpo, uma continuação viva do meu complexo
sensível. Sei que tudo isso pode soar exagerado; mas não o é. Quando
excessivamente expostos ao sol, a um clima específico, nosso
organismo tem certas propriedades químicas de se conformar a ele,
quase que elidindo suas características anteriores por completo. Os
indivíduos, nós, somos como uma tábua, uma folha em branco em cuja
superfície se impregnam os signos de nossa experiência exterior, e
com tal sutileza se faz essa metamorfose e de tal modo estamos
subordinados aos seus efeitos, que se poderia dizer que, sem eles,
não passaríamos de um boneco oco, uma concavidade feita de ossos e
nervos. Como o camaleão, ou certos tipos de mariposas, que mudam em
função do lugar, assim nos amalgamamos às coisas ao redor e nos
formamos à nossa revelia. No caso do ser amado, não só esse processo
se dá, como se dá com o nosso consentimento, ou seja, com mais
intensidade. Então pensei: tratarei dela com mais devoção. Isso:
falta-lhe maiores cuidados. Daí em diante, desde o momento em que
ela acordava até a hora dela ir se deitar, eu promovia todas as suas
atividades, incluindo banhos, refeições e distrações. Todo o meu dia
estava disposto em relação a ela, em todas as suas minúcias, desde
auxiliá-la com os talheres no manuseio da comida, dado que ela não
tivesse equilíbrio nem força para fazê-lo, até guiá-la pelos
corredores à noite, já que, talvez pela falta de vitamina ou de luz
natural, sua vista se apagava dia após dia. Posta a distância que
separava o porão do restante da casa, e estando meu quarto a meio
caminho entre o banheiro, a cozinha e a sala-de-estar, muitas vezes
usava-o para trocá-la, ou para deixá-la repousar um pouco durante a
tarde, e observar a languidez de seus contornos. Por esse motivo,
por força das circunstâncias, vesti-a diversas vezes com minhas
peças de roupa, poupando tempo e desgaste. Numa dessas tardes, que
por mim poderiam deixar de entrar para a história, saído do banheiro
com seu corpo tenro envolto numa toalha e respingando pelo assoalho,
tremendo como um galho tocado pelo vento, levei-a para o quarto. Lá
efetuei todos os passos daquela atividade cotidiana, quase mecânica:
pus-lhe as calças, a camisa branca de botão, penteei seus cabelos
disformes, depois o cinto, as meias, o sapato, um perfume e, quando
me direcionei para o armário com as portas espelhadas abertas
aba-a-aba, vi algo que não sei se terei condições expressivas de
comunicar com palavras, tão frágeis, tão limitadas elas se mostram
quando precisamos tocar o nosso inferno particular, aquela zona
indeterminada do espírito onde todas as classificações escapam,
fogem e mentem ao entendimento. Parei estático; à minha frente as
três portas, numa conjunção de ângulos inusitada, mostravam nossos
reflexos multiplicados. O que acontecia é que não era possível
distinguir um do outro: nossos reflexos se propagavam e se
sobrepunham um ao outro, com tal malícia se alternavam o desenho do
nariz, a curvatura dos ombros, a compleição geral do corpo e suas
dissimetrias que não podia mais encontrar a linha, a fronteira de
divisão de nossos seres. Com as minhas roupas, um tom melancólico
estampado no rosto, os cabelos ouriçados, o corpo ressequido, ela se
projetava, e éramos uma única imagem refratada em perspectivas
diferentes, idênticas na aparência embora não coincidentes no corpo
e na substância. Éramos uma única pessoa, um único ser multiplicado
e dividido várias vezes. Quando olhei para o lado, a vi, um pouco
assustada, talvez por ter intuído o mesmo que eu, ali, parada, como
uma estátua, um bicho ameaçado, arquitetura frágil e branca dentro
da camisa que a ultrapassava em tamanho e espessura. Circulei pelo
quarto; fui à janela e mirei demoradamente o céu pelo vidro
embaçado, como se visse o nada, como quem olha para uma parede, para
o chão, sem depreender deles nenhuma sensação ou experiência. Andei
pra lá e pra cá; ela imóvel, cabisbaixa, em pé no meio do cômodo.
Queria saber o que sentia naquele momento, queria dar forma àquela
espécie de ódio que sublevava minha inteligência, pedia-lhe uma
explicação e ela, rendida, não a conseguia dar. Por que nós dois?
Por que estarmos ali, naquele cenário patético que mais parecia um
conto de fadas às avessas? Éramos um único e exclusivo ser compacto.
E não é essa a substância mesma do amor? Não era isso mesmo que eu
houvera procurado o tempo todo? Essa união mística? Não sei por que
impulso, interrompi essas reflexões e, girando o corpo com
velocidade, golpeei-a com as costas da mão, jogando seu corpo na
extremidade oposta do cômodo. Atirei-me sobre ela e surrei-a por
alguns minutos a fio, mesmo durante o tempo em que já estava
desacordada... Posso me lembrar claramente das minhas mãos, essas
mãos, com sua liga de nervos e seu mecanismo de tensão e retenção, o
fluxo sangüíneo correndo, subcutâneo, esmurrando aquele ser, aquele
ser amorfo, indistinto, que já não me dizia nada, que não era nada,
batendo-lhe como se bate num travesseiro, num boneco qualquer que
fosse feito para isso mesmo. Exaurido, caí de lado e, reclinado na
parede, dormi, ou desmaiei, não sei dizer muito bem. Sei que ali me
mantive um dia inteiro, ou mais. Ao acordar, ela ainda permanecia a
meu lado. Letárgico, arrastei-a para o porão, fechei com cuidado o
cadeado e fui sentar-me na sala. Fiquei lá: sentado. Desde então não
me lembro de nada, ou quase nada. Lembro-me da porta principal sendo
arrombada por algumas pessoas que adentravam a casa fazendo
perguntas confusas. Não lembro de mais nada. A memória tem um
limite, e, quando não apreendemos mais o que seja exterior a nós,
morremos de uma certa maneira, para o mundo e para nós mesmos. Aqui
há alguns lençóis, essa cadeira, uma viga de madeira no teto. Se
quiserem, podem baixar a cortina.
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