Rodrigo Petronio
Homeros
Leio em um
manual de história das literaturas a notícia biográfica de um autor
que se intitulava Homero, e que viveu na região da Beócia por volta
do século I da nossa era. Sua Odisséia, redigida em latim, imita
passo por passo a do aedo cego. Fiquei surpreso com essa informação
e feliz por ter conhecido um autor tão indispensável às letras
universais, e senti no meu íntimo que se tratava de obra mais
necessária do que a do seu ilustre modelo. Sei que essa afirmação
pode parecer contraditória a princípio, mas, analisada friamente, é
tão lúcida e clara quanto a luz do sol. Se louvamos o fato,
irrisório em si mesmo, de que um dia, em uma parte do mundo, houve
um homem, ou a síntese do trabalho de um conjunto de homens, que
cantou o retorno de Ulisses a Ítaca, e ficamos admirados imaginando
que isso realmente ocorreu há quase três mil anos, por que não
admirar ainda mais alguém que, tão crente da veracidade dessa
hipótese, se propõe a revivê-la em suas linhas e na sua vida como se
ele fosse dotado de uma veracidade inquestionável? Se nós atribuímos
valor a Homero pelo simples fato dele ter existido, o que comprova a
sua existência senão a existência do seu antípoda, o falso Homero?
Sombra cujo movimento dá realidade ao corpo, o falso Homero é o
único testemunho do valor de Homero: revivendo através da tradição
indiretamente, de maneira pálida e oblíqua, o poeta grego está
presente na rotina intelectual dos homens de hoje na mesma proporção
em que a cor branca está presente na vermelha – sabemos que há um
resquício ínfimo daquela nesta, mas a experiência nos desmente a
cada momento essa conjectura e estamos prestes a concordar que o
vermelho necessita do branco com a mesma intensidade que a
constelação precisa de uma única estrela para ser constelação. Ao
contrário, quem seria hoje capaz de conferir-lhe, a ele, Homero,
esse estado de graça no qual, despertando de um sono difuso de
séculos e séculos, revivesse finalmente no espelho côncavo e
negativo de uma obra e de uma vida que o absorvesse e, literalmente,
o imitasse?
O texto acima é,
na verdade, uma adaptação, feita há poucas décadas, de outro, de
autor anônimo impugnado pela História e banido dos compêndios
literários, de quem não se conhece nem a pátria nem as datas de
nascimento e morte, e a quem foi negado o acesso ao mundo dos homens
e aos anais. Seu parágrafo original é o seguinte:
Leio em um
manual de história das literaturas a notícia biográfica de um tal
autor grego chamado Homero, poeta que viveu por volta do século IX
antes de Jesus e que, segundo alguns, foi quem recolheu e compôs os
cantos do poema intitulado Odisséia, e, segundo outros, em palavras
que chegam a beirar o devaneio, foi o fundador da literatura
ocidental. Não me estendo aqui a demonstrar que a maior parte
humanidade está equivocada em sua concepção de tempo, e que a
cronologia é uma cegueira e uma imbecilidade dificilmente mensurável
em palavras polidas, já que trata as coisas como prenúncios do que
se cumprirá depois e não percebe que tais coisas só existem em
função do que delas advém, e, pode-se dizer, nascem desse futuro
remoto que é, ao fim e ao cabo, sua matriz. Limito-me apenas a dizer
que o Homero grego imitou antecipadamente o que fez o Homero romano,
cerca de dez séculos depois e em latim. Se a Odisséia é um arquétipo
que paira pronto e intacto como Idéia na consciência de Deus,
somente a repetição pode afirmá-la como tal, já que, existindo
isoladamente, sua realidade seria algo semelhante a um rascunho do
vento na areia ou um grão solitário que não compusesse uma praia com
outros infinitos grãos. Ou, para dizer em outras palavras, se apenas
a repetição de instantes dentro do tempo nos dá a idéia de Tempo,
somente a repetição de odisséias nos dará, enfim, a Odisséia. Quem é
então o seu criador? Opto pelo homem que vive por trás da alcunha
odiosa de falso Homero que eruditos rançosos e filólogos mesquinhos
lhe impingiram. Ele é o maior poeta que já existiu em todos os
tempos. Sua vida física está circunscrita ao século I da nossa era e
a Beócia é sua região de procedência.
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