Rodrigo Petronio
O inquisidor
Sustentando uma
das abas da cortina com o indicador e o dedo médio, Vladin Jihád
observa do escuro de sua sala a movimentação da casa em frente. Um
senhor de compleição delicada, calvo e grisalho, saindo do carro
recém estacionado no jardim, sustenta a neta como uma boneca e a
arremessa para o alto sucessivas vezes, aos risos. Seu ar é abstêmio
e limpo, a roupa bem asseada, leve como sua fisionomia que se
desfralda por trás de bigodes pequenos e um olhar negro mínimo que
espicaça aqui e ali os objetos e as pessoas ao redor. Fecha a fresta
minúscula, dá as costas à cena e vai em direção à grande poltrona
velha no canto esquerdo, com seus estofados de pústulas brotando
para fora dos braços machucados. Acende um cigarro e estende o corpo
maleável escorando a nuca no respaldo mole que range monotonamente a
cada flexão, enquanto seus olhos se perdem absortos na lagartixa do
teto, imóvel como uma estátua. Seu rosto tem sulcos profundos que
emolduram a barba rala, os olhos encravados como duas pedras de ônix
na cara óssea. Fica assim, por um longo tempo, até que a luz
fraquíssima que vinha de seu vizinho e vazava a cortina preta e
espessa míngua. Apenas a brasa recende, sobe e desce, no escuro
absoluto, e logo se apaga.
O velho toma uma
calçada dos arredores com o jornal enfiado debaixo do sovaco, as
mãos no bolso. Vladin persegue sua sombra sorrateira e em passos de
pluma vai em ziguezague costurando seus pés por fora da órbita de
sua visão. Observa sua nuca. Por que alguém teria uma nuca como
aquela, os cabelos ralos salpicados sobre a pele macia e vermelha
que aparece em suas frestas e buracos? E essa maneira de andar? O
que é isso? As calças frouxas, um ar altivo de quem pensa não ter
nenhum vínculo com o que o cerca? Respalda as costas em postes e
corre a mão espalmada em paredes de concreto ressumando a cal. Que
cheiro horrível esse homem tem. E Vladin, se aproximando, saca o
canivete brilhante que refrata a luz da lâmpada de mercúrio, trava o
pescoço do velho com uma chave-de-braço, a lâmina sobre a veia
latente e a boca vedada sob os anéis de prata.
– Eu não fiz
nada – o velho grita desesperado, enquanto Vladin o carrega para o
sótão aos empurrões.
– Minhas roupas,
o que é isso!? – e ele, sem emitir um único murmúrio, despe o velho,
passa uma corda sobre seu peito e, jogando suas duas pontas por cima
de uma viga horizontal do teto, suspende-o pelas axilas a cerca de
um metro e faz de uma das colunas de madeira sua estaca.
– Tenho
dinheiro! Te dou o quiser! – no que Vladin move a cabeça pra lá e
pra cá, acende uma vela e fica de cócoras escorado na parede.
– O que você
pensa que é? Um rato abominável e ainda sugere que eu queira seu
dinheiro? Está querendo me comprar? É isso que você quer dizer?
– Não! Não! De
jeito nenhum! Eu não quis dizer isso! Só estou negociando! Por
favor, eu não fiz nada. O que você quer!?
– Sim... As
pessoas nunca fazem nada, e é justamente isso que me enoja em todas
elas. Você, por exemplo, no que você difere de um verme? Talvez os
vermes tenham mais dignidade, pois não fingem ser humanos nem usam
essas roupas ridículas.
Vladin apaga o fósforo, sorve uma longa tragada e levanta,
circundando o corpo nu do velho pendurado que pende e balança em
movimentos quase imperceptíveis, como em um açougue.
– Qual é a razão
da sua existência, velho excomungado?
– Eu já falei...
Tenho família, filhos e netos. Sou industrial. Minha vida é limpa e
clara, nunca me meti com nenhuma falcatrua. Pago impostos e meus
funcionários. Meu patrimônio é limpo. Que que eu fiz, por favor!? Me
diz!
– Não estou
perguntando o que você faz da vida, ou o que ela faz de você, nem
quero saber se seu dinheiro é sujo ou limpo. Você não entendeu a
minha pergunta, e ela é bastante simples, qualquer criança a
entenderia. Não me faça desconfiar da sua inteligência. Não quero
saber qual é a ocupação com a qual você preenche seus dias e suas
noites, seu trabalho e seu lazer. Quero saber qual a razão de você
estar vivo.
O velho rangeu
algumas frases desconexas, voltou a falar em dinheiro e titubeou
diante da pergunta. Irritado, Vladin suspende o castiçal e faz
correr a chama por dentro das suas cochas, queimando seus pelos e
tingindo de um vermelho vivo o grito fino e retinto que soava como
uma sirene rouca na noite e escorria das entranças de suas pernas;
aproximou enfim o fogo de seu saco escrotal que se retraiu até o
desaparecimento, mas se conteve quando notou que ele estava prestes
a desfalecer.
– Pode gritar.
Ninguém o ouvirá. A noite pesa sobre tudo seu manto infinito de sono
e miséria. Todos estão dormindo, e mesmo se não estivessem o senhor
ainda assim perceberia que está só. Há mais de dois anos observo os
seus hábitos, sei de toda a sua rotina, de todas as suas roupas, de
todos os acontecimentos desses dois anos da sua vida. Dei tempo ao
tempo, e chances e mais chances para você se reerguer e se
retificar. Mas você só afundava cada vez mais em sua estupidez e se
arrogava cada vez mais na sua presunção vil. Agora chega; não há
mais conserto. Sei do seu passado e sei dos seus negócios, que não
há nada de errado com eles. Pode gritar: ninguém colocará seu rosto
na espessura da noite interrogando de onde e de quem vem o
estampido. Sua família está aí ao lado. Mas eles não podem te ouvir,
eles não querem te ouvir, e se ouvirem, provavelmente vão pensar que
é outro que grita, não um dos seus, e vão tratar de ignorar. Você
não fez absolutamente nada de errado em sua vida meu amigo, e é por
isso que você está aqui. Você me enoja mais do que a mais vil e
rasteira das criaturas, é execrável como nenhum assassino ou
homicida jamais o foi. Por isso: você não faz nada. Tive que ver o
seu risinho abominável durante todo esse tempo, aturar sua placidez
de cachorro, porque tudo é matéria de aprendizado e eu me interesso
muito pelo ser humano. Diversas vezes quis romper o pacto que travei
comigo mesmo, ir até lá e acabar com esse espetáculo risível. Minha
paciência finalmente chega ao fim. E eu volto à pergunta: o que
justifica sua vida?
As sombras do
corpo balançavam suavemente no teto de madeira fazendo formas
inusitadas de nuvens e cabeças que se distendiam e minimizavam
oscilando ao eco de uma multidão que andava à frente da casa e ria.
Vladin suspende a vela até o rosto do velho que franze os cenhos com
o calor, sua e revolve os olhos tentando manter-se lúcido. As mãos
grossas acariciam seu semblante e corre o dedo polegar sobre seus
lábios finos com um sorriso de prazer.
– Já que você
não quer falar, eu falarei no seu lugar. Há motivos o bastante para
os homens se odiarem mutuamente, e se isso não ocorre todos os dias
no grau que deveria ocorrer é mais por causa da hipocrisia do que da
tolerância. Cada vez que encostava a testa no vidro da janela e por
ele via essa sua nuca nojenta, transpirando vermelha como a cara de
uma criança obesa, tinha vontade de vomitar. Por pouco não fiz isso
várias vezes; minha retidão de espírito não me permitia. E também
porque estava esperando a sua recuperação.
– Mas o que eu
tenho? Não entendo nada!
– Você é uma
pessoa comum, e nisso está o mais ameaçador do seu caráter. Todo
criminoso traz consigo a lepra moral de seus delitos, e muitas vezes
a expõe em praça público querendo angariar um único olhar de
misericórdia ou a atenção de um único vagabundo que abençoe com os
olhos a sua imagem contorcida pelo fogo, ou outras vezes, essas bem
mais costumeiras, guarda-a consigo, sob seu casaco, bem discreta em
sua manga, misturada ao silêncio com que relembra seu passado e
mastiga enojado cada um de seus crimes, sabendo que está errado, mas
que o fato de saber disso não significa nem um primeiro passo rumo a
uma possível redenção. Olhe ao seu redor seu estúpido, veja, ou
imagine, quantas bocas mordendo o vazio ou limando os dentes com o
ódio não estão agora, nesse exato momento, enterradas no travesseiro
querendo dormir sem desanuviar de si a imagem de algo que lhes falta
ou o fantasma de alguém que as oprime; veja todo esse espetáculo
miserável, onde cada um aprende desde cedo a encenar seu papel e
burlar o titereiro. Todas essas pessoas fingem se respeitar
mutuamente e são todas santas dentro de sua moralidade rasteira;
fala-se em paz e há sempre um primeiro imbecil a hastear a bandeira
e bradar o grito animalesco de uma raposa devidamente adestrada para
isso. Estamos todos vigiados em nosso trabalho, em nossos quartos,
até nossos sonhos seguem regras já combinadas e não vão nunca além
dos limites em que a fantasia poderia contaminar a realidade e
transformá-la, pois isso já não seria lícito nem justo para com
aqueles que não sonham, ou que não querem fazê-lo, aqueles cuja
mordaça já se colou à cara e esta já se engessou em uma máscara
inamovível. Me diz quantas pessoas no mundo podem se dizer
verdadeiramente felizes, a não ser pelo auxílio da demagogia?
Quantos seres racionais não toleram os hábitos de seu vizinho, mas
no fundo de si o matam todos os dias? Quantos maridos não degolariam
suas esposas se houvesse uma segunda vida? Quanto é preciso ignorar
da situação geral do planeta para ter o direito a um riso amarelo
que não nos exponha ao ridículo da falta de decoro? Cada um traz em
si suas cicatrizes e as mostra, ou as omite, tanto faz, conquanto
saiba que as possui, e que para legitimá-las, ou para apagar a
lembrança recente que elas causam quando querem perturbar nossa
consciência, é preciso um esforço maior que o de reverter o tempo e
a sucessão dos fatos encadeados dentro de uma ampulheta e quebrar o
tonel dos instantes que se infiltram gota a gota pela parede. Não
falo das guerras, nem das atrocidades, nem do pai que degolou os
três filhos e depois foi à primeira igreja fazer suas genuflexões.
Não estou falando de bombas, de homicídios, da pretensa e suposta
maldade intrínseca dos homens. Estou falando de algo aparentemente
muito mais simples e mais grave; me refiro à violência cotidiana do
grito que tantas vezes se engole e daquele menear de pestanas que
acusam um ódio postergado, falo daquele apelo dos ombros que tantas
vezes o senhor conheceu, mas que evitou e esqueceu, daquele dia em
que o senhor se sentiu injustiçado e optou pelo mais cômodo, que é
sempre confundido e tomado como o mais racional. É isso, o bom senso
faz de todos nós covardes, animais domésticos trazendo sua
medalhinha brilhante reluzindo sob o pescoço que atesta nossa
capacidade de nos sujeitar às adversidades para então reforçar com
isso laços coletivos que nunca existiram. Pode gritar, mais alto.
Você compreenderá, com a garganta, o que estou dizendo. Quem me
garante que essa é a vida mais palatável e sensata? Quantos não
poderiam estar agora exercitando suas técnicas de ilusionismo, e me
tomando pelo grande tolo que eu, com ou sem ilusões e picardias de
mágicos vulgares de trupes mambembes, sempre fui e nunca vou deixar
de ser? De quantas opiniões se faz um consenso? Geralmente apenas de
uma, a primeira, que emitirá suas sílabas sobre um monte, no que se
seguirá uma multidão de ecos intermináveis de seres que também
querem disputar seus lugares nas primeiras fileiras do espírito,
arvorando-se de pertencerem, por que não?, também eles à nossa
belíssima e unânime e genuína civilização. Ai! Que beleza! Parece
que já sinto o cheiro dos salões ou das simples congregações
familiares, onde os fracos, mesmo não querendo, se juntam porque é
natural de toda a fraqueza não ter escrúpulos quando se trata de se
fortalecer em um grupo, e onde os fortes se unem porque só assim
poderão continuar a sê-lo. Vamos assim reproduzindo, passo por
passo, essa caravana encantada de hipocrisia, nos encostando uns nos
outros com o mero intuito de não sermos únicos, e, por fim, ao
denominador comum desses medos conjugados chamamos sociedade! Que
maravilha! Chega a me dar comoção esse espetáculo! Sinto as lágrimas
me baterem às pálpebras, como diria um poeta árabe da Andaluzia!
E empurrou o
corpo do velho que foi para um lado e para outro, projetando
fantasmas fugidios feitos de sombras no teto do compartimento
minúsculo, os olhos estourados e aflitos.
– Qualquer um
que se preze arca com a conseqüência dos seus atos, só os
sentimentais, e são a maioria dos homens, vivem naqueles que
executam o serviço sujo o gozo privado e secreto de seus desejos
mais íntimos. Cada um com a sua atadura de gesso maleável e com os
seus bons-dias, seus rituais espúrios, sua cópula asséptica e seus
devaneios matinais querendo convencer os outros daquilo que todos
sabem em suas consciências, mas em seus nervos temem a desaprovação
das palavras quando interadas da verdade. Os saqueadores, os
assassinos, os loucos de todas as latitudes, o que eles fazem, a não
ser cavar com as próprias mãos os seus respectivos infernos? A não
ser nos lembrar que somos todos descendentes de uma natureza
corrompida e corruptível, todos bonecos animados da mesma lama que o
vento fustiga tentando decifrar a face original que dorme sob a
carapaça calcária de sono e fuligem que a história tratou de nos dar
como herança? Quem são esses sujeitos, senão aqueles que nós
abominamos por nos mostrar, sem que peçamos, em cada um dos seus
gestos, a busca desesperada e violenta da nossa primeira inocência
destruída? E não temos razão em abominá-los? Ou por acaso é justo
conceder prêmios a quem nos lembra que o sol é uma estrela que se
levanta todos os dias e a todos os dias imola vidas em seu louvor
para que ele continue se levantando e nos dando o milagre da vida?
Mas só em uma coisa as pessoas ordinárias que vão e vêm pelas ruas
se diferenciam desses ratos: elas tiram suas vidas, e vão aos
jornais e fazem manifestações contra eles e cospem toda sorte de
metafísica da fraternidade na defesa de seus semelhantes, mas eles
sabem, eles têm certeza que ao menos em uma fração de segundo que
seja foram o espelho e os mártires nos quais os rostos de milhares
de anônimos tomaram forma e identidade, e se concretizaram num só
rosto. Se Deus nos dá a medida do que em nós é leveza e
desprendimento, deve caber a alguém ser a imagem refletida a
contragosto de nossa miséria. E você? O que cabe a você? A sua
pequena violência privada, que se chama, pela boca da polidez,
descontentamento? Seu suicídio coletivo e incógnito, onde você e
seus pares festejam suas pequenas vitórias e brindam à sacada suas
porcarias e peripécias amorosas recendendo a naftalina? O que cabe a
você, senão atestar a sua existência insignificante sobre esse
glóbulo de lama, esse grão microscópico perdido no cosmos, que se
cognomina planeta, poeira de poeira insignificante e anêmica, e
ainda se crer no direito de rir à toa do que quer que se ofereça à
sua contemplação? No que você acredita, seu rabugento inútil, se é
que acredita em alguma coisa? No progresso, na sua indústria e no
crescimento que a merda da sua indústria pode dar ao país? Na
unidade da família? Ou é um velho porco comuna encarquilhado
precisando de alguns sacolejões pra pegar no tranco e voltar à
ativa? Fala seu filho da puta!
E Vladin achegou
mais uma vez a vela aos seus colhões e começou a cuspir
incessantemente sobre o abdômen que chorava em sons finos e
demorados ao longo de sucessivos espasmos; andou enfurecido pelos
quatro cantos do sótão e com um chute rompeu um barril de diesel que
correu toda a extensão do piso e desceu engatinhando lentamente os
degraus de madeira que davam para a sala.
– Evoé a todos
os suicidas e a todos os suicidados! E um brinde a todos os patifes
e mercenários que correm sobre essa película calcária fazendo suas
patifarias! – gritou girando e sorrindo com os músculos do rosto
trêmulos e o castiçal suspenso na mão direita, e foi logo chapando
cara a cara com o velho que o olhava de cima, a papa repousada sobre
o peito molhado de suor.
– Vou te dizer
que já esbarrei com banqueiros corruptos que conheciam melhor a
natureza humana do que todos esses frangos filósofos e homens de
saia de todas as academias que já pipocaram por essas bandas. E
disso, o que eu infiro? Nada, apenas que não é dada a nenhum ser que
habita, comunga e compartilha dessa nossa existência uma compreensão
sequer parcial dos fenômenos que correm com o vento, e das leis que
se transformam como a água do rio e seu curso irrefreável que muda a
cada momento e é sempre outro. Está tudo por ser feito e entendido,
tudo por ser descoberto; a vida é e sempre será para o sábio tão
virgem quanto uma folha em branco, e um mapa minucioso e pessoal
para os idiotas. Sabe o que digo? Consegue entender, seu energúmeno?
Você consegue compreender que os planetas apenas giram, ou isso é
uma observação muito complexa para o seu entendimento flácido? E que
nossas vidas, a minha e a sua, são um suspiro, uma palpitação dentro
do coração do universo? E que não possuímos o ar que respiramos,
ainda que possamos domesticar outras pessoas e até escravizá-las? As
leis são insignificantes, uma quimera estúpida disso que pessoas
como você chamam de civilização. Os homens se amam e se esfolam no
escuro, andam desenvoltos nos subterrâneos das cidades e fazem seu
tráfico de costumes e invenções mirabolantes; depois jovens frangos
que não entendem nada de nada vão advogar em cima daquilo e querer
dar forma ao demônio, dar coerência à ordem multifacetada da vida
que lhes escapa porque talvez somente no leito de morte vão perceber
enfim que nunca tiveram uma. Imprestáveis! Isso que eles são e toda
sua laia! Imprestáveis! Bonecos ridículos de estopa, sem nada
dentro, uma pantomima que ganhou vida por irresponsabilidade de
alguma meia- dúzia de imbecis que acreditam ainda na velha fábula da
beleza e da justiça, e que a harmonia dos opostos, de suas condições
e de suas oportunidades, gera necessariamente o bem comum.
Estúpidos! Canalha execrável!
E atira o
castiçal de lado ao gemido demorado e fino do velho pêndulo que
oscilava de um lado pro outro.
– Sabe quantas
vidas são necessárias para a manutenção de uma vida como a sua? Não
quero defender a igualdade ou a fraternidade entre os homens! Quero
que todos se esfolem! Mas você sabe quantas vidas são necessárias?
Como você justifica a sua vida? Ainda que você tivesse escravos, não
quero saber como sustenta o seu ócio e o seu trabalho. A moral é a
doença do espírito, a cárie da inteligência, muito pior que todas as
doenças do corpo, e vejo em cada humanista um moralista e uma
alimária parasita que se regozija com a própria bondade e quer ver
na prosperidade alheia um fruto do gesto pródigo e narcisista de seu
altruísmo. Estão todos ungidos de antemão, porque já pertencem ao
reino divino do desprendimento e da graça. Ó corpos de luzes!
Harmonia diáfana de mentes esclarecidas! Por que será que o
exercício do desapego só nasce em quem já tem algo? Por que será que
também eu não fui congratulado com esse dote supremo? Espúrios! Não
é isso que eu quero saber. Quero saber apenas o que o senhor faz
daquilo que lhe foi dado, como transforma o milagre de abrirmos os
olhos todos os dias e contemplarmos o mundo que se oferece no nosso
transcurso sobre a Terra. É simples, seu boçal. Um brinde ao
silêncio dos inocentes! Fábula perversa! Porcos disfarçados de
ovelha! Ah! Que espetáculo esses fantoches dão querendo omitir o
fato óbvio de que todos são culpados desde que se prove o contrário!
Vai seu nojento! Fala alguma coisa e para de chorar sua franga! Vai!
Seu monte de barro que brotou por acaso de uma noite mal dormida de
amor! Vocês não acreditam na culpa? Vocês não trancafiam seus
monstros nos presídios? Vocês não acham que a ética é um padrão de
tolerância sem o qual não há vida possível além das cavernas? Vocês
não inumam seus próximos e preservam suas vidas além túmulo? Não têm
seus templos e seu folclore? A nossa natureza não é decaída, como
vocês nos ensinam? Não há a sucessão precária do tempo que brinca
com nossas vísceras no interior de ampulhetas? E o pecado original?
Por acaso vocês esqueceram dele? Ou mudaram de time? Ou mudaram de
idéia? Ou simplesmente não pensam no assunto? Hein? Cultivaram uma
mentira durante dois mil anos e agora que ela não serve mais vocês a
jogam no lixo? Coisa do passado? Por que então esse riso abominável
de todas as manhãs se o mudo é tão precário e tão podre como vocês o
pintam? Por que não inventaram então uma filosofia do esplendor e da
afirmação de cada segundo que granjeia de glória as criaturas, não
que as afasta cada vez mais do Supremo perdido numa idade de ouro
remota e intangível? Não tinham força o suficiente para afirmar a
vida tal como ela é e então resolveram nos dar como herança um
remorso do qual vocês mesmos não compartilham? E quem é que levará
adiante essa encenação, seu dejeto imundo, monte de merda? Ou por
acaso é possível que um mito se esgote assim repentinamente depois
de dois mil anos? Ah! Comadres malditas! Velhas ensebadas que querem
abolir o passado com a maquiagem! O passado é mais vivo do que todos
os pedestres que vão e vêm por essas ruas! Ele voltará sempre e
sempre surpreenderá vocês no sono, e corroerá o fundo de suas
consciências até estourar o dique e fazer vazar sua pestilência!
Tudo ainda está por vir e tudo retornará seu desgraçado! Não é o
tempo que passa que nos mata, mas o tempo que retorna e descobre o
tapete mofado de nossas salas cristalinas! Quero fazer um hino ao
tempo! E a todas as criaturas e coisas que retornam, retornam e
retornarão indefinidamente através do tempo para a nossa miséria!
Ah! Um brinde às estátuas que emergem e nos puxam para o ventre da
terra! Ah!
E Vladin gira,
grita e gargalha enquanto as chamas se somam às manchas da parede e
galgam as hastes e colunas de madeiras, subindo e subindo pelas suas
calças até chegar ao teto. E em toda a noite só se ouve o estalo de
galhos em combustão dentro do círculo de fogo que já toma a extensão
da esquina e vibra vivo, maleável e sozinho no silêncio de ruas
completamente vazias.
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