Rodrigo Petronio
As peripécias de Apolo
Certa vez, um dos homens mais importantes que o
Brasil já teve definiu Ezra Pound como sendo o maior poeta pagão do
Ocidente cristão. Levadas em conta as raízes judaicas do autor dessa
frase, e seus juízos críticos pregressos sobre o grande poeta de
Idaho, seria forçoso convir que há em sua asserção um quê de
despeito e de menosprezo pela sua excentricidade poética e política.
Em um sentido totalmente inverso, ou seja, em uma chave de puro
elogio, despido de quaisquer deméritos implícitos e ignorando as
suas posturas políticas, que não me interessam, é mais ou menos com
essas palavras de Otto Maria Carpeaux que tive vontade de definir
Gerardo Mello Mourão após a leitura de uma só tacada de seu novo
livro de poemas, Algumas Partituras.
Nesse livro estão todos os temas caros a Gerardo,
condensados com tal força e de tal maneira bem amarrados que podemos
vê-lo como corolário e coroa de louros de toda sua obra até então. A
começar pela própria essência itinerante desse poeta que, como Rilke,
sabe que a poesia só nasce depois de conhecermos várias cidades, e
que essa viagem pode ser entendida tanto em seu sentido literal
quanto em uma chave metafísica. No caso de Gerardo, há uma fusão de
ambas as dimensões: é o sertão real e físico do Nordeste e suas
práticas que dão ensejo à primeira parte do livro, Suíte do Couro ou
Louvação do Couro, mas é também toda a saga das famílias que viviam
dessas atividades que lhe fornece a matéria de seus poemas de ritmos
flexíveis e múltiplos, além de dar o ambiente existencial de onde
ele retira o tom dramático e nostálgico desses personagens e tempos
que não existem mais.
Esse espectro temático se expande e se abre no leque
de poemas da segunda parte, De Sibilas e Labirintos. É nela que
Gerardo dá seu salto mortale e dialoga com a tradição literária,
sobretudo a de extração Ibérica, em poemas de metros e temas
variados, e mergulha naquele repertório de mitos e referências
gregas e latinas que lhe é tão familiar. Dentro do labirinto de
enganos que a vida oferta e dos véus sob os quais a verdade se
oculta, é em tons de desencanto e desconcerto que ele põe em cena a
prisão de Camões. O frescor arcaizante e atemporal dos cordéis e da
língua quinhentista e seiscentista são a Eurídice e a Ariadne que
puxam os fios e guiam esse rito primordial, que consiste em nomear
as coisas, aceder à luz e se libertar da cadeia de ilusões e
aparências que simulam o real sem o ser propriamente.
É quando ouvimos a sua lírica por intermédio daquela
voz oracular inconfundível, e a trama do tempo se suspende em várias
linhas simultâneas: ora estamos em Delfos, ora andando pela Atenas
da Antiguidade, ora em uma Frankfurt moderna ou correndo no meio-fio
entre a memória e o instante, naquela margem do tempo imune à
História mas também alheia à circulação da morte, que é a habitação
mesma do Mito. Porque toda a poesia de Gerardo se sustenta sobre
essa verdade primeira, e é o atestado de uma filogênese e de uma
ontogênese: nasce de uma busca ancestral dos nossos princípios
fundadores, quer sejam eles meramente individuais, ligados à
família, ao âmbito da vida privada e aos dados afetivos dos
ancestrais, quer eles sejam telúricos e ontológicos, e tragam em si
uma necessidade urgente de devassar e trazer à luz o esteio
inconsciente e coletivo da memória da humanidade por meio desse
murmúrio dos deuses, que é a palavra poética.
Semelhante àquele poeta que também é um pequeno deus,
como já disse Vicente Huidobro usando essa palavra em uma acepção
laica, alheia a quaisquer gnoses perigosas e ímpetos de Prometeu que
queiram fechar em uma caricatura antropocêntrica e em uma teia de
estruturas conceituais vazias aquela transcendência original que nos
fundamenta, Gerardo conhece essas homologias; sabe que o poema, mais
do que um atestado do Ser, guarda o Ser em si sem o encarcerar ou
matar, pois o seu artesanato verbal é uma partitura e um instrumento
para o sopro da poesia, um trampolim para seu mergulho consciente
nos estados mais profundos da linguagem e do mundo. Eu disse
instrumento, como quem fala flauta. Não estou dizendo que Gerardo
tem uma visão instrumental da poesia, o que equivaleria a dizer que
ele é um mau poeta. Em nada o aspecto pontual e estrutural do seu
artesanato se vê comprometido com isso; ao contrário, essa visão é
que faz dele o grande artista que é, porque não esgota as
possibilidades da vida em um movimento circular onde apenas e
tão-somente a técnica se evidencie e protagonize a sua viagem
existencial. Gerardo prefere a companhia de outras pessoas e a
variedade dos assuntos e dos matizes. Não é homem de uma mulher só,
diria alguém mais malicioso.
A terceira estação dessa viagem é o Oriente, com Lira
da China. Nessa partitura há a música delicada e o som das folhagens
do país onde Gerardo foi correspondente de jornais brasileiros. Há
também traduções de Tu Fu, Li Tai Po e Ts’en Shen, feitas com o
auxílio do Padre Joaquim Angélico Guerra, entremeadas a adaptações
livres dessa tradição milenar que o poeta de Ipueiras verte para o
português preservando suas matrizes imagéticas e sonoras, e aquela
apreensão direta de estados de espírito complexos, bem como a
capacidade de sintetizá-los em um conjunto de traços essenciais, o
que parece ser um dos aspectos mais marcantes da excelência da arte
chinesa. E finalmente temos a última partitura dessa sinfonia ou
desse moteto a várias vozes: Cartões Postais. Nela, como na técnica
da fuga per canonem, Gerardo retoma uma série de temas e lugares, e
como um virtuose glosa o seu repertório de mitos e fábulas,
atualizando-o aos climas das cidades de Nova York, Atenas, Belém de
Judá, Belém do Pará, Praga, Rimini e Istambu. Essa talvez seja a
parte mais pungente e forte do livro. Eis o seu mosaico elegíaco
composto e recomposto sob os mais variados aspectos, e o canto
órfico se valendo da voz humana para dar suporte ao Verbo e dizer
que a poesia é a filha expatriada da humanidade e um dos possíveis
laços de sua união, em um mundo que só se preocupa em acentuar de
maneira inconseqüente e frívola as diferenças, quer culturais,
regionais, artísticas, geográficas ou étnicas. A poesia, nascendo
dessas diferenças e sendo a elas solidária, só pode amá-las de fato
na renúncia, como o poeta que se nega como indivíduo em troca de uma
máscara sem a qual não é possível encenar o drama coletivo da
linguagem e dos homens.
A movência dessa pátria itinerante que nunca sai de
si mesma, porque é a própria Língua Portuguesa, mesmo quando em
confronto com outros povos e com outras línguas, traduzindo e
adaptando motes e poemas que funcionam como pontos bordados no
tecido infinito da literatura, mostra apenas o que é superficial e
transitório na arte de Gerardo, como a superfície das águas de
Heráclito ou a aparência do Ser Imóvel de Parmênides, autor que ele
traduziu. Tudo bem meditado, o problema não é podermos ou não entrar
duas vezes em um mesmo rio. Isso seria simples de resolver. Mas, se
esse rio é sempre outro, talvez não possamos sequer entrar nele. Mas
há algumas vias de acesso a essas águas invisíveis e praticamente
intocáveis, e a essa torrente do Ser que como o tempo nos arrebata e
como o tigre nos estraçalha, mesmo sendo nós mesmos o tempo e o
tigre. Uma delas é a poesia, ponto cardeal dos miraculi e rosa mundi
de esplendor efêmero, que às vezes nos mostra a Verdade para depois
dissolvê-la entre os fatos ordinários, e faz exatamente disso a base
de sua ironia e de suas ciladas. Às vezes ela é o centro que está em
todas as partes, outras a circunferência que está em parte alguma;
no seu ir e vir de um extremo a outro, do que há de divino no homem
ao que há de finito na eternidade, perfaz a figura do círculo
infinito que é Deus. Não sendo nem os fatos nem o puro espírito, não
sendo o noticiário do jornal (embora possa estar nele) nem um
conjunto de abstrações, não sendo necessariamente o que há de mais
elevado no Ser, mas também sem poder prescindir dele em troca de
fórmulas demasiado prosaicas, hoje muitas vezes rasteiras, a poesia
segue o seu curso pela terceira margem desse rio intermitente de
fozes largas e margens ignoradas, sempre prestes a estourar em
alguma forma de música natural. E apenas os pobres de espírito e de
inteligência, que nunca a contemplaram, me chamarão de idealista por
causa dessas palavras.
A poesia de Gerardo sabe auscultar a música dessas
esferas e o marulho misterioso dessas águas, e Algumas Partituras
vem para orquestrar esse concerto dos seres. Com o País dos Mourões,
Gerardo deu à língua portuguesa uma prosódia e um tratamento do
verso livre até então inexistente entre nós; sua inflexão épica,
cuja matéria foi toda colhida no imaginário nordestino e na história
da formação do Brasil, traçada sem qualquer tipo de nacionalismo ou
regionalismo reducionista, também é ímpar no nosso contexto. A maior
parte desse aspecto formal de sua poesia foi aprendida nas melhores
escolas: T. S. Eliot e Ezra Pound. Ambos levaram-no a perceber com
justeza e sabedoria que um verso nunca é livre para quem quer
escrevê-lo bem, e que o chamado verso livre é apenas um deslocamento
de importância, uma passagem do metro para ritmo interno da frase, e
uma mudança na natureza da modulação: ao invés de nos guiarmos por
acentos fortes e fracos, teríamos de pensá-los como uma sucessão de
sílabas longas e breves. Seus conhecimentos de grego e latim o
auxiliaram nesse intuito, e é essa base técnica que lhe deu a
possibilidade de urdir seu amplo mural épico nos livros que se
seguem, Peripécias de Gerardo e Rastro de Apolo, de 1972 e 1977, que
juntos perfazerem Os Peãs, sua trilogia épica, e vir desaguar em
Invenção do Mar, de 1997, compondo assim as peças do panorama da
América a que se propôs construir.
Às margens desse tom maior e do gênero elevado,
Gerardo vem entretecendo sua lírica de fundo elegíaco, seus escritos
políticos, sua ficção e seus ensaios sobre economia, letras e artes,
entre tantos assuntos, reunidos no livro Invenção do Saber, de 1983,
que pede uma reedição urgente. Como ele mesmo diz, hoje os artistas,
ao invés de aspirarem à glória, se estapeiam pela Publicidade, a
deusa cretina. Se o poeta cearense não tem um reconhecimento maior,
é tão-só por não compactuar com essa contingência triste e com essa
vulgaridade gritante do nosso tempo. Olhando para sua obra em um
enquadramento amplo e tendo lido essas partituras recentemente
estampadas, sentimos vontade de modificar a frase inicial. Gerardo é
provavelmente um dos maiores poetas do Ocidente em atividade, e para
ele o paganismo é apenas o sinônimo de uma forma suprema de
liberdade. Sei o quão imprudente é dizer isso, pois pressupõe um
conhecimento de toda a poesia ocidental feita hoje, o que é um
absurdo. Mas também não posso negar que a vontade de dizê-lo é bem
maior do que a prudência.
Rodrigo Petronio é poeta e ensaísta, autor de
História Natural e Transversal do Tempo
Leia a obra de Gerardo Mello Mourão
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