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Rodrigo Petronio




O pastor do ser



 

Ariano Suassuna conta uma estória engraçada. Certa vez, dando uma conferência para universitários, perguntou quem ali conhecia Kant. A platéia em peso se ergueu, em um alvoroço típico de quem quer demonstrar inteligência. Depois, indagou quem conhecia Matias Aires. Apenas um braço, hesitante e trêmulo, se ergueu na última fileira. Então o grande escritor arrematou: "Vocês se acham espertos porque conhecem Kant, mas nunca sequer ouviram falar desse paulista que foi um dos maiores pensadores brasileiros do século XVIII e um dos difusores de Kant em língua portuguesa? Muito bonito".

Claro que há nessa brincadeira os ideais nacionalistas de Suassuna, com os quais em geral não concordo. Mas sua graça traz à tona um aspecto de nossa cultura que é simultaneamente também uma causa da nossa burrice. Somos todos como aquele filólogo descrito por Machado de Assis: saímos à janela para tomar um pouco de ar (e contemplar a paisagem do mundo civilizado que se descortina lá fora), e se passar um novo César debaixo do nosso nariz, nem perceberemos – voltaremos correndo para as nossas velharias com a euforia de quem faz delas seu único álibi.
Mas esse fardo talvez possa trazer algum benefício. Porque em um ímpeto de redescoberta, acaba de ser publicada em Portugal, pela Imprensa Casa da Moeda, uma antologia de ensaios do filósofo Vicente Ferreira da Silva, sob cuidados impecáveis de António Braz Teixeira, que também assina um substancioso ensaio introdutório: Dialética das Consciências e Outros Ensaios. Esse acontecimento é de importância incomensurável, já que Vicente participou de um capítulo importantíssimo do pensamento brasileiro, que se desenrolou em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Gilberto de Mello Kujawski já o relatou bem em artigo publicado tempos atrás, mas é sempre bom relembrar para evitar o vício congênito do esquecimento.

Havia na capital paulista basicamente três grupos. O primeiro gravitava em torno do espírito catalisador de Miguel Reale e do Instituto Brasileiro de Filosofia, que editava a Revista Brasileira de Filosofia. Seu espectro era diversificado, e seu intuito, divulgar todas as principais correntes filosóficas mundiais, para projetar o Brasil dentro de uma perspectiva internacional no que diz respeito ao debate de idéias. Aí entravam a fenomenologia, o marxismo, o positivismo, o tomismo, a filosofia antiga e áreas congêneres.

Um segundo se concentrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da rua Maria Antonia, embrião da futura Universidade de São Paulo. O departamento de Filosofia contava com o nome de Cruz Costa entre seus fundadores, mestre de José Arthur Gianotti e Bento Prado Jr, que, por sua vez, formaram a geração de Marilena Chauí e Renato Janine Ribeiro, entre outros. Porém, seus estudos eram bem mais fechados e ortodoxos, poucas vezes saindo do diapasão da crítica de vertente marxista e existencialista, notoriamente francesa, então na moda.
E havia por fim um terceiro grupo: Vicente Ferreira da Silva. A situação algo solitária do pensador, se lhe conferiu dificuldades e foi fruto de desentendimentos políticos e intelectuais, também foi a mola propulsora da autonomia luminosa e radical de seu pensamento e a essência de sua liberdade interrogadora praticamente ímpar entre nós. A universidade de Vicente foi em grande medida a sua casa, onde ele e sua mulher, Dora Ferreira da Silva, poeta maior da língua portuguesa, a exemplo dos primeiros filósofos, recebiam todos que tivessem interesse pelo debate de idéias.

Creio que seja significativo que a maior parte dos seus freqüentadores não tenha sido filósofos, mas sim alguns grandes artistas: Cláudio Willer, Roberto Piva, Wesley Duke Lee, entre outros. À guisa de grupo, Vicente participou, com nomes como Vilém Flusser, Adolpho Crippa e Efraim Tomás Bó, entre tantos outros, da concepção e do debate que se instaurou em torno das revistas Diálogo e Convivium, dedicadas à arte, à filosofia e à literatura.

Do ponto de vista das idéias, o isolamento de Vicente se deveu boa parte a uma virtude intelectual: travando contato direto com a filosofia de Heidegger e Husserl, o filósofo pôde ter acesso à filosofia moderna direto em uma de suas principais fontes, notadamente alemã, o que lhe conferiu base crítica e independência em relação ao existencialismo francês (chegou a brigar com Sartre quando da passagem deste pelo Brasil), que paulatinamente se tornou hegemônico. Aliás, sua filosofia pode ser vista como uma apropriação muitíssimo pessoal e fecunda da ontologia de Heidegger, a tal ponto bem-sucedida, que consegue inseri-la no devir histórico brasileiro e achar uma síntese entre aspectos residuais autóctones de nossa cultura e a visada intencional de Heidegger que, a partir do conceito de ser-aí (Dasein), leva a consciência a desvelar o ser-no- mundo (Weltenwurfe) e, a partir desta operação, a se aventurar na abertura para a reformulação de toda a metafísica.

O pensamento de Vicente pode ser dividido em três fases, como assinalou Ricardo Vélez Rodríguez, em uma excelente análise publicada há pouco no site educativo www.ensayistas.org. A primeira diz respeito às questões lógicas e matemáticas, e Vicente chegou a ser assistente de Quine nessa área, estudioso norte-americano de reputação internacional. A segunda é de teor mais fortemente fenomenológico e existencial, no sentido heideggeriano do termo, e gira sobretudo em torno do seu ensaio A Concepção de Homem Segundo Heidegger e das análises que faz do humanismo, com base na famosa carta que o filósofo alemão enviou a Jean Beaufret. Já a terceira pode ser descrita como de cunho mítico e religioso. É a sua fase mais madura, das ousadas formulações acerca da estrutura do mito, do sagrado e do profano, que encontra formulação cabal sobretudo no belíssimo ensaio A Origem Religiosa da Cultura, de 1962.

Podemos dizer que o nome de Vicente coloca o Brasil dentro da maior tradição do pensamento metafísico mundial, ao lado de estudiosos como Mircea Eliade, Karl Kerényi, Walter Otto e Enzo Pacci. Para Vicente, boa parte da miséria da humanidade advém do império da técnica e da violência ontológica que nos fraturou e ao cosmos. Para falar com Heidegger, é quando o homem passa a querer ser "senhor dos entes" e não mais "pastor do Ser". O alicerce de sua filosofia é a recusa da ciência positiva e a divinização do mundo, animado pelo Fascinator (espécie de Demiurgo), e se assenta na hipótese de uma teologia não-cristã. Também visa negar ou ao menos relativizar o papel positivo da escatologia e da soteriologia que, a partir de um discurso teleológico e salvífico, foram responsáveis pela criação de um mito de progresso indefinido, bem como a conseqüente hipnose que ele gera, impedindo o homem de contemplar o Ser que o funda e a todas as coisas criadas, crítica que se dá de maneira consumada no seu ensaio Para uma Moral Lúdica.

Oswald de Andrade chegou a afirmar que Vicente era, não só o maior, mas único filósofo brasileiro. Curiosamente, sua obra vem sendo ignorada de maneira tão sistemática que parece até fruto de uma articulação premeditada. Desde que alguns pálidos professores se auto-conclamaram filósofos e reduziram a história do pensamento brasileiro a um departamento francês de ultramar, transformando um debate milenar em uma questão de ponte-aérea (muitas vezes às expensas do uso racional de dinheiro público para poltronas de primeira classe), é visível o constrangimento que tomou conta do meio intelectual.

No mês de julho último, acaba de fazer 40 anos de sua morte trágica em um acidente automobilístico. Mas ele continua sendo uma espécie de estrela que, embora solitária, goza de luz forte demais para ser apagada pelo descaso ou a malícia. Quem sabe nossas viseiras eqüestres não se voltam uma hora dessas para Portugal, e possamos, ainda que por puro narcisismo, redescobrir o pensamento de Vicente Ferreira da Silva, refazendo no espelho alheio uma imagem de nós mesmos mais fiel que a própria face. Assim poderemos ter de volta um pensador genuíno, como tantos outros que devem estar esquecidos, e ter outras opções que não a de navegar à deriva, de velas pandas, pela rive gauche do rio Tietê.