Rodrigo Petronio
Teatro de maravilhas
Em uma das curiosas anotações de seus Cahiers, o
poeta Paul Valéry se indaga se haveria a possibilidade de criarmos
uma estrutura que pudesse sintetizar em si a completa
reversibilidade entre determinados conteúdos e continentes. Segundo
ele, tal estrutura teria que nos mostrar a conexão possível entre as
dependências recíprocas que fazem de um conteúdo um continente e de
um continente um conteúdo, já que estamos em um mundo que está em
nós, encerrados no que encerramos, produtos de tudo que entre as
mãos formamos e entretemos. Se é possível fazer um recuo drástico,
ponderando as distâncias de tempo e espaço que esse recuo mobiliza,
podemos encontrar um tipo de preocupação semelhante, porém levada ao
mais alto grau de paroxismo, engenhosidade e jogos de artifícios, no
Sermão de Nossa Senhora do O, do padre Antonio Vieira, pregado na
Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia, em 1640. Talvez não seja
exagerado dizer que esta é uma das melhores peças em prosa da língua
portuguesa. Conta com uma teia argumentativa muito rica e complexa,
toda ela centralizada na figura do círculo, que contempla diversos
sentidos e é passível de muitas associações, desde as mais imediatas
e previsíveis, como a semelhança entre esse símbolo e os O da
Senhora na expectação do parto, até outras pouco plausíveis e, por
que não, mirabolantes, como a sua comparação à imagem do ventre
divino de Maria na concepção do Verbo Encarnado.
Vieira o inicia com considerações em torno da
perfeição do círculo, o objeto mais bem-acabado dentre os quais a
natureza já produziu. Em seguida expõe sua tese, defendida ao longo
de toda a obra: assim como o círculo do ventre virginal, na
concepção do Verbo, foi um O que compreendeu o imenso que é Deus,
também o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro
círculo que compreendeu o eterno. Passa então a armar uma série de
relações entre esses elementos. Diz-nos do milagre que é a concepção
da virgem, pois sendo Deus imenso, um círculo cujus centrum est
ubique, circunferentia nusquam, ou seja, cujo centro está em todas
as partes e a circunferência em parte alguma, frase geralmente
atribuída a Pascal e a Nicolau de Cusa, mas que, na verdade, já tem
variantes anônimas desde a Idade Média. Aquele que está ao mesmo
tempo dentro e fora do mundo, lhe é transcendente e imanente ao
mesmo tempo, como poderia o útero materno de Maria comportá-lo,
senão por um milagre? Como, se o mundo está para Deus assim como o
mar para o dilúvio? O milagre é ter existido um imenso maior que
Deus, e por isso imensíssimo, argumenta Vieira, e ter o próprio Deus
podido se deixar cercar, ele que não pode ser apenas conteúdo sem
ser continente. Assim chega Vieira ao silogismo (note-se: ele também
circular) ternário, aristotélico: o círculo criado que cerca o mundo
é o céu, o Incriado que cerca o céu é Deus, e o círculo imensíssimo
que cercou esse Deus foi Maria.
Na parte IV do Sermão Vieira nos remete a outros
aspectos de sua tese. Explica-nos que Deus, quando falou a João, não
o fez em hebraico, sua língua materna, mas em grego, pois só o grego
tem a circularidade do alfa ao ômega e termina, por conseguinte, com
essa letra, cujo formato é justamente circular. Expõe-nos a
Astronomia de Manílio, segundo a qual quem nasce sob o signo de
Virgem tem tamanha fluência e graça no escrever que, para este, uma
letra conta como uma palavra. Cristo nasceu sob o signo de Virgem, e
herdou do Pai o Verbo, a suma palavra sobre a terra, e da mãe o O:
ambos, palavra e letra, coincidindo numa mesma essência.
Inspirado nos egípcios e caldeus, que representavam a
eternidade por um O, Vieira especula: qual a relação possível entre
o O do desejo da Senhora e a eternidade? E, se há relação, como
explicar a eternidade desse desejo circunscrito à duração de nove
meses, da concepção ao parto? Basta que desconsideremos o tempo
linear, e pensemos em um tempo puramente qualitativo. Não importa a
duração, mas a intensidade. Não há desejo que, sendo grande, não
traga também em si algo de eterno – vaticina. E, para corroborar sua
hipótese, toma como exemplo a carruagem de Ezequiel, emblema da
Virgem, cujas rodas duplas simbolizam o tempo e a eternidade: a roda
da eternidade é imensa e a do tempo pequena, e, no entanto, a roda
do tempo contém a da eternidade. Por quê? Porque qual seja a vida
terrena de cada um assim será sua vida eterna. O tempo de gestação
de Maria foi breve na duração, mas eterno no desejo.
O desejo de Maria multiplicou infinitamente o tempo
finito da gestação, e assim o O se associa ao zero e a seu valor
aritmético progressivo. E eis que Vieira nos coroa com a bela
metáfora da pedra (Cristo) que, lançada ao mar (Maria), produz
círculos concêntricos, proporcionalmente maiores quanto mais
distantes de seu centro. O mar se turva, perturbado. Quando se
acalma, os círculos dos O de Maria começam a se formar em seu
coração, e a crescer e multiplicar à proporção de seu amor. O desejo
cresceu assim em proporção ao amor, e o tempo em proporção ao
desejo. Nesse ímpeto progressivo Vieira nos diz que, quanto mais
próximo está o objeto de nosso desejo, tanto mais o desejamos. Assim
foi a história humana: nos tempos de Adão, os momentos eram dias;
nos de Abraão, os dias eram anos e nos de David, os anos eram
eternidades, pois cada um deles estava, respectivamente, mais
próximo da vinda do Salvador, e por isso se lhes alongava cada vez
mais o tempo à medida do desejo da revelação.
Mas, podemos indagar, qual o motivo do desejo de
Maria? Ela já não trazia em si o objeto querido? Então Vieira esboça
sucintamente uma ética relacionada às categorias temporais. Diz-nos
que o bem, o supremo bem, se manifesta de três maneiras possíveis em
relação ao sujeito: se é presente, causa gosto; se é passado, causa
saudade e se é futuro, causa desejo. O filho que Maria trazia dentro
de si, por não se dar à vista, era em verdade uma ausência; por
trazê-lo em si, em verdade não o possuía, pois só possuímos o que
podemos apartar de nós. Vieira exemplifica com o mito de Narciso,
que nunca pôde ter a própria beleza senão espelhada e alheia. Por
conseguinte, comenta a passagem da bíblia na qual São João diz que
Cristo estava junto ao Pai, não nele. A justificativa dessa aparente
heresia está no fato de Deus ser sumamente bom e infinitamente
comunicável, só pode, portanto, se comunicar infinitamente com um
seu igual. E por ser sumamente beato, é indisposto à solidão, o que
lhe exige a companhia de alguém diferente dele. Nisso reside a
unidade e a distinção entre o Pai e o Filho. Ora, o mesmo ocorre com
Maria que, já tendo o filho de Deus em si, enseja tê-lo consigo.
Vieira faz uma pequena digressão sobre o significado da hóstia e o
seu ritual, estabelecendo algumas homologias entre Maria e os fiéis
que trazem, cada um a seu modo, Cristo em si e, cada um a seu modo,
anseia tê-lo consigo, dando por terminada a pregação.
O que mais nos impressiona nesse sermão é a maneira
vertiginosa de Vieira expor seus argumentos, e multiplicar as
referências e comparações ao seu primeiro objeto, o círculo. Este
funciona como mote, ou cânone musical em torno do qual outros
referentes vêm, como na arte da fuga, se agregar, estabelecer
contrastes, jogos e depois sumir, ou reaparecer sob outra forma ou
sentido. No entanto, por mais esdrúxulas que nos pareçam às vezes
suas comparações, em nenhum momento ele perde o eixo do pensamento.
Ficamos assim presos à própria circularidade de seu discurso, que
oscila entre a incorporação de informações novas, ainda não marcadas
no texto, e uma espécie curiosa de retorno a um mesmo, à matriz de
onde ele deriva, por contigüidade, todas as demais idéias e
dispositivos da sua composição. Essa maneira engenhosa de amarrar os
lugares do discurso a partir daquilo que a arte retórica poderia
chamar de derivatio ad nauseam, que tem por objetivo multiplicar os
referentes mantendo um único ponto de vista, já está devidamente
exposta no Sermão da Sexagésima, quando compara o sermão a uma
árvore. Assim como a árvore, o sermão tem raízes, tem tronco, tem
ramos, tem varas, tem flores, tem frutos. Há de ter raízes fortes e
sólidas, porque fundado no Evangelho. Há de ter um tronco, porque
abrange um só assunto e trata de uma só matéria. Deste tronco hão de
sair diversos ramos, já que são diversos discursos, mas nascidos da
mesma matéria e continuados nela. Estes ramos não hão de ser secos,
mas cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e
ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a
repreensão dos vícios. Há de ter flores, que são as sentenças. E por
remate de tudo há de ter frutos, já que é o fruto o fim a que se
pretende o sermão.
É curioso notar como essa partição do sermão,
inspirada na metáfora da árvore, coincide quase que literalmente com
as clássicas partições da arte retórica, balizada pelos antigos:
invenção, memória, elocução, disposição e ação. Invenção que é o
tema, o motivo, a matéria de que tratará o sermão, sempre colhido no
Evangelho. Memória que é a faculdade que o orador mobilizará para
fazer presente em sua oratória esses temas. Elocução, porque é
aquela que diz respeito à estrutura maior da obra sacra, composição,
porque discerne e organiza as partes menores desta mesma peça: a
fatura de suas frases, palavras, ordem, sentenças e vocábulos. E
ação: aquilo que o sermão produzirá no fiel, mobilizando sua paixão
em consonância com a paixão e o sacrifício de Cristo, dilatando e
fortalecendo a fé e, com ela, o império. Raiz, tronco, galhos,
folhas e frutos. No caso do Sermão de Nossa Senhora do O a raiz é
igualmente o Evangelho. O tronco é o círculo, eixo do discurso. Os
ramos, as várias associações a que aquela figura geométrica é
submetida: os O do desejo de Maria, o eterno caldeu e egípcio, a
astronomia de Manílio, o ventre da virgem, Deus, o mundo, a
aritmética, e por aí afora. As varas, as sentenças morais a respeito
do rito da hóstia. As flores são as palavras e o fruto é a
conseqüência final da pregação para o ouvinte ou o leitor.
Entretanto, esse sermão tem uma peculiaridade, compartilhada com
muitos outros sermões de Vieira, que é a de se ater especialmente ao
tronco e seus desdobramentos, e neles mirar seu foco e atenção.
Quando isso ocorre, notamos o interesse irrestrito de Vieira pela
capacidade do delectare, de deleitar o ouvinte por meio de uma
ornamentação frondosa, cuja função muitas vezes não vai além da
celebração e da festividade, já que o sermão pertence ao gênero
epidítico, aquele que visa mais o prazer do ouvinte do que a sua
instrução. Podemos então divisar dois grandes blocos temáticos a
partir desse núcleo de interesses, ou dois procedimentos, se
quisermos: um deles é o das etimologias falsas, que consiste em dar
uma origem inverossímil a um conceito, e a partir dela arranjar uma
série de argumentos que se justificam, de uma forma restrita, em sua
função, mas que estão, também eles, sustentados em um chão movediço
que pode a qualquer momento ruir. Em outras palavras, Vieira utiliza
o recurso retórico que hoje chamamos de interpretação forçada, o ato
de tirar de um texto, de um conceito ou de uma idéia mais do que
eles nos são capazes de oferecer. Isso está evidente em sermões como
o Santíssimo Nome de Maria onde o nome de Maria ganha uma série de
interpretações, dentre as quais a derivação (falsa) do plural latino
de mar, pelo epíteto de amarum mare, mar amargoso. Com a convicção
de que o nome de Maria foi criado por Deus, e por isso deve fazer
sentido em qualquer língua, Vieira prossegue: a língua hebréia, a
caldaica, a siríaca, a arábica, a latina, todas conspiram em suas
respectivas derivações de raízes e origens, por onde não é só uma,
mas muitas as etimologias deste profundíssimo e fecundíssimo nome, e
o mesmo nome, conseqüentemente e segundo a propriedade de suas
significações, não só um, mas muitos nomes. Outro processo de
derivação de significados é o de explorar a anatomia das palavras.
Ele consiste basicamente em dissecar palavras, frases, às vezes até
mesmo fonemas, e fazer o ouvinte atentar para a sua novidade e a
importância semântica que eles trazem em si. Assim, a palavra Non,
pronunciada por São Mateus, foi tomada por Vieira para demonstrar o
poder simbólico contido no fato de ela poder ser lida,
invariavelmente, da esquerda para a direita e vice-versa. Da mesma
maneira a dissecação das letras de Maria e a especulação em torno
dos O por ela emitidos na expectação do parto.
Esse procedimento de etimologias falsas não é
propriedade de Vieira e muito menos do século XVII. É algo que, se
for possível a generalização, pertence a toda a produção intelectual
da cristandade. Na medida em que o Verbo insuflou o mundo e o
produziu em seu nível metafísico e cósmico, a linguagem humana tem
também o poder de reconduzir e dar seqüência à graça desta criação,
em seu nível histórico, humano, sublunar. Há paralelismo e
reversibilidade entre o Signo com que Deus criou e investiu o mundo
e os signos humanos com os quais os homens o recriam e o reinvestem.
Não há positividade ou premissa mais ou menos certa no trato com as
palavras, mas apenas mais ou menos eficazes do ponto de vista
teológico e argumentativo. Já lemos essas falsificações lingüísticas
fartamente na Legenda Áurea de Jacoppo de Varazze, por exemplo, no
século XIII, e mesmo as Etimologias, de Santo Isidoro de Sevilha,
obra enciclopédica e referência básica para toda a tradição letrada
desde o século IX, está eivada de impropriedades e abusos de
sentido. O que pretendo dizer com essas considerações de importância
aparentemente relativa, é que esses procedimentos retóricos ocupam
em Vieira um espaço central e imprescindível. É por meio de
artifícios como esses, entre outros, e da circularidade de seu
discurso, que ele prende a atenção de seus ouvintes e desperta neles
os afetos que pretende despertar em benefício da política de
expansão do Império e da unidade do corpo místico da Coroa. Por esse
motivo, é difícil concordar com a opinião do grande crítico
português Hernâni Cidade, em uma passagem de seu livro O Discurso
Engenhoso, a despeito de todos os acertos e até dos pontos
brilhantes que seu trabalho tem, quando relega ao Sermão de Nossa
senhora do O uma posição subalterna dentro da obra de Vieira,
chamando-o de formalista. E aqui talvez caiba uma pequena digressão.
Esse conceito de formalismo, em oposição a um
pretenso conteúdo veiculado pela obra de arte, é uma disjunção
criada pela lingüística do século XX. Se teve papel importante para
legitimar algumas criações das vanguardas, acabou criando uma série
de mal-entendidos quando aplicada retrospectivamente às produções
artísticas do passado. Não se trata de dizer que Vieira enaltece a
forma do sermão, já que para ele, as palavras eram sempre atos
lingüísticos revestidos de potência divina, referem as coisas ao
mesmo tempo em que são índices da Coisa, são signos que mapeiam o
mundo e, simultaneamente, desígnios da inteligência de Deus que se
manifestam na consciência humana. Nesse ponto, vale a pena lembrar a
bela e pertinente relação que o preceptista Frederico Zuccaro, no
século XV, em seu tratado Idea, estabelece entre as palavras signo,
desígnio e desenho: sendo todas provenientes de uma mesma raiz
latina, guardam ressonâncias semânticas e metafísicas em seu bojo,
já que o desenho (disegno), parte mais intelectual e abstrata da
pintura, só pode ser instilado na mente do pintor por Deus, como
desígnio, centelha de consciência, no sentido tomista, que o conduz
à composição da tela e converte esses seus afetos e volições, por
fim, em um signo pictórico. Assim, o signo seria um desenho que Deus
perfaz na inteligência humana, provando assim o estatuto
providencial que guia o artífice e o desígnio divino a que ele se
submete quando se entrega ao exercício de sua arte. Encontramos uma
formulação semelhante sobre a dimensão metafísica da criação
artística também em Portugal na obra de Francisco de Holanda, Da
Pintura Antiga, um pouco posterior, de 1548. Portanto, a cisão entre
forma e conteúdo mostra-se totalmente impotente diante do estatuto
desse tipo de criação. A teologia passa pela retórica, o divino é
mediado pela linguagem, que é, antes de tudo, uma instituição da
esfera política. No pensamento de Vieira todas as instâncias estão
urdidas indissoluvelmente. Se o problema é a falta de referências
imediatas a acontecimentos epocais, tais como os temos fartamente na
série dos Sermões do Rosário e no sermão sobre o conflito entre
Holanda e Portugal travado em Pernambuco, onde se mostra com mais
clareza o espírito pragmático de Vieira, então, por essa lógica,
também o Sermão da Sexagésima, obra-prima da literatura doutrinal,
deveria ter seu valor repensado, o que creio que não seja o caso.
Desse modo, e pensando em termos da sua fatura, aliada à dimensão
teológica, o próprio movimento do sermão pode ser descrito de uma
forma circular e ternária: apresenta uma tese, mostra sua
contrapartida, confrontando-a com elementos de procedências e
valores variados, e a conclui com um retorno ao ponto de partida,
agora mais forte do que antes, pois comparado, questionado e
redimido. É um tipo de discurso fechado, característico de uma
sociedade fechada, ciosa da reposição do Mesmo e do controle das
singularidades e das diferenças, e é justamente isso que lhe confere
poder persuasivo. Não é o tipo de raciocínio que admite vazios ou
ambigüidades que não sejam as criadas pelo próprio autor com uma
finalidade específica e cunhadas a partir de técnicas específicas.
Estas técnicas são exemplificadas e explicitadas no próprio sermão,
já que não há oposição entre a dimensão normativa e performativa da
arte. Nesse caso, mais uma vez o Sermão da Sexagésima continua sendo
o exemplo clássico: a tábua doutrinal que ele expõe e as virtudes
que ele elenca, necessárias a todo sermão, se apóiam, por
contrafacção, na crítica aos dominicanos, cuja pregação, segundo
Vieira, por ser muito aguda, afetada e obscura, desmotivava o
ouvinte e comprometia um dos principais objetivos da arte sacra:
fortalecer a fé. Se o Sermão da Sexagésima exemplifica de que forma
a matéria deve ser arranjada, o da Nossa Senhora do O nos mostra,
indiretamente, de que forma o pensamento deve encarnar essa mesma
matéria.
A alegoria do círculo remonta a tempos imemoriais,
quase sempre ligada a categorias metafísicas, como Deus, eternidade,
tempo, infinito, ou então a grandezas naturais, como o cosmos, o
mundo, o universo, entre outras. Para os cabalistas, o círculo,
quando inscrito em um quadrado, representava a energia divina e
incorruptível que se concentrava no interior da matéria, ícone que
está presente até na famosíssima estrutura visual do homem de
Leonardo da Vinci. Os alquimistas tomaram como divisa de sua ciência
o Uroboros, a cobra que morde a própria cauda e significa em grego:
aquilo que está em si mesmo. É interessante pensar que, na arte, o
círculo é uma figura tipicamente ligada à proporção, à centralidade
e ao volume, sendo produto da antiguidade e, só muito depois, dos
séculos XV e XVI. As primeiras cidades italianas renascentistas
foram planejadas com base nessa figura: todas as suas partes eram
eqüidistantes em relação a um centro, geralmente uma praça ou um
parlamento. Baseado nessa constatação, o escritor cubano Severo
Sarduy vai propor uma curiosa definição cosmológica e arquitetônica
do período barroco, correspondente ao século XVII: é quando temos o
advento e o subseqüente império da elipse, que é um círculo sem
centro, ou, pelo menos, cujo centro se encontra deslocado e
duplicado. Sarduy vai explicar todo o dinamismo da arte seiscentista,
em oposição e derivação à arte renascentista, apoiando-se nessa
metáfora. E se as cidades perdem o seu centro gravitacional, em
termos de urbanismo, as obras arquitetônicas perdem a sua
centralidade, como ocorre com a cúpula do duomo, da igreja de Santa
Maria Del Fiori, de Filippo Brunelleschi, e a pintura faz o ponto
cêntrico do século XVI fugir ao infinito, provocando um jogo brutal
de massas e volumes de claro-escuro, como vemos em Caravaggio e
Velázquez, entre outros, na cosmologia a figura perfeita do círculo
cederá enfim à estrutura adelgaçada e elíptica pelas mãos de
Johannes Kepler. Essa hipótese estrutural aventada por Sarduy é
interessante, e pode ser espraiada para todas as outras produções
artísticas do século XVII, onde se tem essa deformação do círculo.
Vieira não entra na questão da elipse, já que isso
introduziria um ruído em seu núcleo argumentativo. Atém-se a glosar
o círculo e suas associações inusitadas. No que concerne à pregação,
concentra sua atenção na racionalização e resolução do que nos
pareça discorde em um futuro que é imediato na pregação, porque
anunciado como uerbum, como palavra urdida pelo seu engenho poético,
mas longínquo no tempo, porque só há de advir sob a forma de verdade
revelada, quando a res, as coisas e o estado de coisas terreno
coincidirem com a vontade da Providência, até então encoberta e
acessível apenas aos sábios e aos místicos. O resultado desse seu
projeto político, teológico e retórico não está apenas nas duas
obras proféticas deixadas por ele, O Livro Anteprimeiro da História
do Futuro, na verdade um projeto de livro, onde, inspirado nos
versos do sapateiro Bandarra, defende a tese de que o Quinto Império
do Mundo seria dos portugueses, e o Clavis Prophetarum, mas
dispersos pelos seus Sermões. No próprio Sermão de Nossa Senhora do
O encontramos laivos desse Vieira profético, quando nos fala da
dilação do tempo. Para tanto, usa a alegoria hermenêutica e o método
de correspondência bíblica, de espelhamento do Antigo no Novo
Testamento, cujo precursor é o sábio alexandrino Fílon, no século
IV, em seu estudo do Gênesis. Assim, quanto mais de perto tocava o
bem-supremo Cristo aos homens, tanto mais crescia, com o desejo de
conhecê-lo, a dilação. Na antiguidade remotíssima de Adão, diz-nos,
os momentos eram dias; na menos remota de Abraão, os dias eram anos;
mas na mais próxima, e já vizinha, de David, os anos eram
eternidades: Et annos aeternos in mente habui. Tudo isso sucedia
segundo aquela regra natural, que quanto o bem desejado está mais
vizinho, tanto maior é o desejo. E mais uma vez estamos diante da
relação proporcional entre a eternidade e o desejo, a proximidade de
vê-la consumada e a sua conseqüente amplificação para aquele que
vive em função desta expectativa.
Vieira identifica a idéia de organização social a uma
lógica da natureza. Ao contrário de muito do que já se disse sobre o
assunto, acredito que essa sua crença tem como objetivo mais a
reposição da ordem do que a sua ruptura: o plano da natureza serve
mais para espelhar e confirmar a diferença social do que para
reformá-la ou negar seus pressupostos. Por isso, acho errôneas as
interpretações que querem vê-lo como um precursor dos ideais
iluministas e dos autores modernos que forjaram a Revolução
Francesa. O papel da multiplicação dos tropos no discurso é um só:
dar ao ouvinte a idéia de progressão no tempo, rumo à consumação (consumatio),
posse do bem futuro, e à cessação, portanto, do desejo, como
progrediu e cessou o desejo de Maria quando teve enfim o filho nos
braços. Mas, nessa escatologia, o que Vieira coloca como corolário
da alma humana sobre a terra? O império português e o catolicismo
como paradigma de organização política. O mesmo ocorre em sua defesa
dos escravos, dada de maneira mais explícita e programática na série
dos Sermões do Rosário. Primeiro a dúvida e o arrebatamento: como
conciliar a idéia de um Deus generoso com a má sina desses povos? E
em seguida nos dá a seguinte justificativa: perdidos estão na vida
terrena, mas salvos na vida eterna, porque convertidos à verdadeira
fé. Melhor isso que a salvação terrena e a perdição eterna. Em outro
ponto, Vieira nos dá a mesma alegoria de progresso e eterno retorno
da semelhança sob a lógica da Identidade divina, mas sob nova
roupagem, agora inspirada no Livro Primeiro das Questões Naturais de
Sêneca. Se por acaso ou conscientemente lançássemos uma pedra no mar
sereno e quieto, diz-nos, ao primeiro toque da água veríamos alguma
perturbação nela. Mas tão logo esta perturbação se sossega, e a
pedra fica dentro do mar, no mesmo ponto se forma nele um círculo
perfeito, e logo outro círculo maior, e, depois deste, outros e
outros, todos com a mesma proporção sucessiva, e todos mais
distendidos sempre, e de esfera mais e mais dilatada.
É claro que em tudo isso o padre está lidando com
questões teológicas e políticas delicadas, referentes ao
livre-arbítrio, à fé, à razão e à judicação da doutrina religiosa em
seu nível prático. No que concerne a liberdade dos escravos, há aqui
uma engenhosa construção argumentativa: escravos no tempo, porém
livres na eternidade, porque partícipes da verdadeira fé e crentes
no verdadeiro Deus. E podemos ver o quão importante era a questão da
liberdade no século XVII. Vieira está sem dúvida sob o influxo da
segunda escolástica, das idéias referentes ao pacto social entre o
monarca e os súditos, e a conseqüente alienação das liberdades
individuais em prol do bem coletivo que esse pacto acarreta, tal
como foi teorizado juridicamente por Roberto Bellarmino, Thomas
Hobbes e Francisco Suárez, entre outros. Nesse sentido, o pregador
português não só está seguindo os passos de Santo Agostinho, para o
qual a Criação, se corrupta e corruptível desde a Queda, só nos
congratulará com a redenção se abdicarmos de nossa vontade e nos
alienarmos em Deus, como está também atualizando a explicação
racional da fé, por intermédio dos sábios que revivem, na Península
Ibérica, as idéias de Santo Tomás de Aquino, e, com ele,
Aristóteles, fazendo delas um escudo contra a Reforma, as heresias
de todas as ordens, da magia às práticas gnósticas, e, em última
instância, contra o maquiavelismo e o pelagianismo, cuja doutrina,
formulada por Pelágio nas eras primitivas da Igreja, pregava que
apenas em suprema liberdade pode o homem amar a Deus, ou seja, que
desinvestir o homem de livre-arbítrio seria o mesmo que atentar
contra a possibilidade de seu amor verdadeiro pelo Criador, e assim
anular a consumação dessa aliança, que se tornaria então
inexeqüível. Idéia bastante heterodoxa, tendo em vista que aqui a fé
é subsumida à vontade humana, e não o contrário.
Sob outro aspecto, há a presença forte da doutrina
eucarística perpassando todos os seus sermões. E por meio dela
chega-se a um problema central de todo o cristianismo: a Encarnação.
Pois é basicamente dela que tratam os sermões, dos mais didáticos e
festivos aos mais fortemente marcados pela doutrinação teológica e
política: o milagre do Verbo e a visão unitiva na qual ele se
fundamenta, de complementaridade e integridade, palavras caras à
religião cristã, será sempre a chave de acesso às matérias expostas
e o eixo em torno do qual gravitarão todas as demais questões, sejam
elas desenvolvidas no gênero que for e tratadas sob o ângulo
deliberativo, epidítico ou judiciário, como Aristóteles e
Quintiliano prescrevem que deva ser tratada toda a matéria de um
orador. Além do sermão do O, esse aspecto eucarístico e a doutrina
da encarnação podem ser vistos de maneira mais marcante na série que
compõe os Sermões do Mandato e no Sermão do Santíssimo Sacramento,
além de outros, esparsos, dedicadas a celebrar a figura da Virgem.
Nos Sermões do Mandato, Vieira concentra a pregação
em um tema muito passível de mover o ânimo dos ouvintes e despertar
a sua paixão: as finezas de Cristo. Fineza, no entanto, mais do que
o adjetivo palaciano ou cortesão que atesta civilidade, argúcia de
inteligência e delicadeza nos tratos, é um conceito teológico que
tenta dar conta do grau de complexidade que um ato humano pode ter
em suas ressonâncias divinas, aquele intervalo existente entre o
fato empírico e sua dimensão alegórica, onde ele se abre para um
feixe infinito de significações. Fineza também é, nesse sentido, a
espessura espiritual que reveste uma atitude humana e falível, como
o foram as atitudes de Cristo, enquanto homem, e o são as de todos
nós. Toda a pregação vai se desenvolver sobre a seguinte questão:
foi maior fineza de Cristo, sendo Deus, ter sofrido como homem para
redimir os homens ou, sendo homem, ter renunciado a seu poder divino
e assim morrido humanamente, como morreu, para se igualar aos
homens? O enunciado pode parecer tautológico, mas não é. Corre
grande diferença entre a renúncia à divindade de quem já se sabe
Deus e a entrega à mais completa humanidade, com tudo o que ela tem
de falível e contingente, operando-se assim a cisão entre o homem e
Deus em benefício do primeiro, não do segundo. Como Deus, Cristo
morreu na cruz para redimir os homens. Como homem, Cristo morreu na
cruz para ser finalmente apenas homem. Entre a potência da conversão
e aquele que se converte por meio da renúncia a seu antigo estado há
uma longa discussão teológica. No primeiro caso, ele é intercessor,
enviado, e sua morte, o emblema do Deus que encarnou para sofrer
como homem e assim se aproximar dos homens para poder redimi-los. No
segundo, é o homem que renunciou a Deus, foi mais fundo em sua
descida, porque seu amor pelos homens foi tanto e tão divino, que
por ele renunciou à sua própria e original divindade.
Há em todo esse sermão uma discussão teológica sobre
os limites da humanidade e da divindade de Cristo, discussão esta
que esbarra, mais uma vez, na liberdade humana diante de Deus, ponto
crucial de toda a doutrina religiosa. Essa distinção do Cristo como
intercessor ou como sendo o próprio Deus remonta aos debates entre
os arianos e os atanasianos, os partidários dos padres Ário e
Atanásio, já no século VI da nossa era, mas não cabe desenvolvê-la
aqui. O curioso é notar como esse sermão motivará, em 1695, ou seja,
mais de quarenta anos de sua pregação, a inexplicável e
idiossincrática censura da poeta mexicana Sóror Juana Inés de la
Cruz, por meio da sua famosa Carta Atenagórica. Nela Sóror Juana
critica o pregador português por estreitar o livre-arbítrio humano
em sua argumentação. A crítica da freira é dura, e lhe rendeu
problemas com a censura do mosteiro das Carmelitas Descalças, onde
era residente, e com o Tribunal do Santo Ofício, tendo o episódio
repercussão internacional, e, para ela, conseqüências graves: teve
de se retratar e adjudicar, sendo dali em diante proibida
sumariamente de se dedicar às letras profanas, maior atividade de
toda sua vida.
Esse fato, e o motivo que levou a poeta a perpetrar
uma crítica tão dura sobre uma obra depois de um lapso temporal como
este e de maneira tão descontextualizada, ainda continua sendo um
problema para exegetas e críticos. Mas o que é interessante notar
aqui é a importância do debate sobre a Encarnação e,
conseqüentemente, sobre sua correspondente ritual, a Eucaristia,
para vermos como os meandros e labirintos da arte sacra do padre
português gravitam em torno desses eixos e encontram neles seu
prumo. Do milagre do Verbo que se fez homem se ramificam e se
desdobram o tronco, os galhos, as flores, as folhas e os frutos
desta copa frondosa que é a obra do imperador da língua portuguesa,
como quis Fernando Pessoa. E nesse emaranhado, não há distinção
entre a parte mais doutrinária e sistêmica de sua obra e aquela mais
ligada à celebração de eventos sacros, mais episódica, festiva,
epidítica e ornamentada.
Mas voltemos à questão da temporalidade, explícita no
Sermão de Nossa Senhora do O. A tópica do paraíso perdido, sempre
ligado ao passado e a uma nostalgia do Éden, é revertido
drasticamente com o cristianismo, que o projeta em uma vida futura.
No futuro é que se dará a redenção ou a condenação universal das
almas, nos jardins de Josafat, onde todos cabem, vivos e mortos,
pagãos e cristãos, pecadores e virtuosos. Ao futuro é que Deus
reservou o estágio de prosperidade absoluta, superação e fim de
todas as tensões, e é nesse sentido que Nietzsche a considerou, com
muita justiça, uma religião da decadência e da negação da vida, já
que transforma o mundo, com tudo o que ele tem de potência vital e
de transformação, em uma espécie de vestíbulo do Além. Paralela e
subterraneamente, corria a mensagem do cristo místico, que mais
tarde assumirá a forma do marxismo científico, para o qual as
relações de poder, contidas na estrutura capitalista, engendrariam a
sua própria superação dialética, que culminaria, segundo suas
previsões, naturalmente num sistema igualitário, alijado e à margem
das relações de troca e da propriedade privada, o que atesta a
familiaridade existente entre esta tese e o messianismo milenarista
de extração cristã. O curioso é que coube também ao pensamento
positivo, que caminha, sem qualquer constrangimento, lado a lado com
a avant gard do capitalismo, fornecer subsídios ao imaginário
popular e dar formar a um novo conceito de felicidade, terrena e
futura. Obviamente, não mais ligada a um projeto social ou a uma
utopia, mas sim a necessidades estritamente pessoais e imediatas.
Assim, a partir do século XIX a tecnologia assume a função de um
novo deus, instrumento que elidiria o terrível vazio que havia se
criado entre o ser humano e o mundo circundante.
Aqui a promessa de longevidade e os domínios
irrestritos da ação do acaso e do tempo tornam-se os objetivos
máximos que norteiam os indivíduos. É a mesma lógica da Redenção,
que se dilui e se veicula subliminarmente no anúncio de televisão,
nas modas, nos gostos artísticos, mas agora transformada em
ideologia e esvaziada de seu sentido transcendental, toda ela posta
em função de um narcisismo social que se alimenta de simulacros e
dissimulações, nunca do real. E se o mito continua presente mais do
nunca no mundo da comunicação e em seus dispositivos de domínio,
como já observou Roland Barthes, em seu Mitologias, ele continua
como avesso de si mesmo: se o mito sempre foi o elemento intercessor
entre a plenitude transcendente e o mundo real em sua contingência,
ou seja, sempre foi aquele nada que é tudo, para falar com o vate
português, na era dos mass media, para usar os conceitos da
lingüística e da semiótica, ele é um significante totalmente
esvaziado de significado, uma enunciação sem valor de enunciado e
sem enunciadores concretos, e é justamente aqui que reside seu poder
persuasivo e domesticador. Seu sentido e seu valor podem ser
permutados e transformados indefinidamente, e é justamente esse seu
caráter protéico que lhe confere a maior abrangência possível para
se instalar nos corações e nas mentes dos homens à revelia de seus
horizontes sociais, culturais, econômicos, espirituais. Funciona
assim como uma espécie de motor do capital: se antes era a conversão
em Cristo que amenizava o solo para a posterior, ou concomitante,
submissão econômica e política, hoje é o esvaziamento simbólico do
mundo que perfaz um roteiro semelhante, fazendo terra-arrasada de
todas as singularidades étnicas, culturais, históricas e
geográficas, ou às vezes até se valendo delas, para instaurar o
império do Vazio e do Homogêneo, pois a partir deles planificam-se
as crenças e os gostos, e temos enfim a odisséia sem fim de
metamorfoses do Mesmo, que se atualiza onde quer que ainda haja
resquícios de Diferença, domesticando-a e colocando-a a seu serviço
para gerar com isso mais e mais dinheiro. E aqui pode-se até fazer
um paralelo impertinente, e pensar que a modernidade, tal qual a
conhecemos, foi um paulatino deslocamento de Deus como eixo e
elemento estruturante de todas os valores e práticas que passa a ter
seu lugar ocupado pelo capital, que operou a progressiva,
sistemática e devastadora desterritorialização do sagrado, cujo
ápice talvez vivamos nos dias de hoje. E se a ideologia começa onde
termina a história, para falar também com Barthes, esses
significantes vazios que se enfileiram e se doam à nossa percepção
todos os dias querem tudo, menos mostrar o processo, a finalidade e
o motivo de sua existência. São entidades auto-suficientes e que
subsistem por si mesmas, e nisso exatamente reside seu potencial
doutrinário ou, para ser menos condescendente, sua lógica fascista,
já que é fascista toda a instituição que nos coage
imperceptivelmente, sem que possamos ser donos de sua ambigüidade ou
ao menos optar entre as parcas escolhas possíveis que ela nos
ofereça. Em linhas gerais, isso quer dizer que na vida ordinária de
um mundo que se quer pós-metafísico, Deus, no sentido mais opressor
e mais pobre que essa palavra possa comportar, continua mais
presente e menos evidente do que nunca, e, como congratulação das
conquistas de um mundo onde a crença nos valores transcendentais foi
erradicada pela ciência, temos a coroa de louros de Narciso, o
último dos deuses e centro do mundo possível e visível.
Devemos lembrar que o início do pensamento utópico
tem laços muito fortes com a descoberta da América. Foi a visão de
uma vida paradisíaca, sem conflitos sociais nem disparidades de
bens, direitos e deveres, que os colonizadores tiveram das tribos
autóctones, visão esta, aliás, bastante equivocada, embora
propulsora de algumas teorias sociais que obtiveram prestígio. Eram
muitas as reações ao estilo de vida dos primitivos, a maioria delas
de repulsa. Mas bastavam as palavras de um Montaigne em seus ensaios
clássicos sobre o assunto para erradicar a sua univocidade.
Entretanto, é difícil dizer que Vieira compartilhe desse tipo de
pensamento utópico. Mas podemos dizer que nele já se configuram de
maneira tênue algumas linhas de força que foram incorporadas pelas
interpretações posteriores. O centro desse movimento, o seu ponto
nevrálgico, se encontra na relação que Vieira estabelece entre
futuro e desejo, e na reversibilidade existente entre o divino e o
mundano, à medida que estão ambos imbricados um no outro. Não
saberia dizer até que ponto essa interpretação do milagre de Maria é
exclusiva de Vieira, ou se ela já pertence ao senso comum do
cristianismo. Há muitas idéias extraídas da própria Bíblia ou da
patrologia grega e latina, como é usual nos sermões. Mas ele tinha
certa liberdade para fazer o texto falar, o que nos impossibilita
detectar com exatidão o que é pensamento seu e o que é adaptação.
Para isso seria necessário um trabalho filológico de levantamento
das diversas interpretações desse mito ao qual não me proponho e uma
erudição que não tenho. Quando nos diz que o desejo de Maria,
entidade terrena por natureza, tem por finalidade última o próprio
Deus encarnado, e seu nascimento futuro, está fazendo algo mais do
que exercício retórico: está nos dizendo que Deus é uma
virtualidade, ou a suma potência, para falar com Aristóteles, um
modelo que nos é exterior e que temos que estar sempre buscando
concretizar no mundo. Deus, ou o espírito absoluto manifestado sobre
a terra, é uma potência ideal e perfeita que emana da própria
contingência e finitude de nossa vida terrena e da nossa condição
humana. Por isso, diz-nos que a imensidade de Deus está no mundo e
fora do mundo, está em todo lugar e onde não há lugar. Está dentro,
sem se encerrar, e está fora, sem sair, porque Ele sempre está em si
mesmo. Essa é a melhor definição de um Deus que seja, ao mesmo
tempo, imanente e transcendente, o que esbarra no juízo que
costumamos fazer do cristianismo, como sendo uma religião puramente
transcendentalista, ou que pelo menos almeja sê-lo. Sendo assim,
cabe também a nós construí-lo com o nosso desejo de tê-lo conosco e
não em nós. Não se trata de mero preciosismo conceitual. Há bastante
diferença, vaticina Vieira, entre estar Cristo em mim e estar eu com
ele. Estar Cristo em mim é possuí-lo sem o ver. Estar eu com ele é
vê-lo e gozá-lo. Desse modo e por esse raciocínio concluímos que
devemos querer sempre que surja outro Cristo, que impulsione o motor
da História e faça girar o divino pelas suas artérias. Porque,
estando Deus sempre em si mesmo e sempre integral na Identidade que
lhe constitui, ele continuará sendo o que é, independente daquele
que lhe dê voz terrena. Os profetas, messias e pregadores podem se
multiplicar, o próprio Vieira foi um, Deus não. Sendo Deus em si e
para si, um enunciado tautológico sem valor de verdade, pois fundado
sobre um desequilíbrio entre sua abrangência infinita e sua
manifestação finita, o espaço em branco de seu ser só pode estar
ligado ao Incriado, ao que ainda não existe, à pura potência e ao
horizonte da pura possibilidade, para falar com Aristóteles: o
topos, lugar retórico e edênico do paraíso perdido, é lido então
como utopos, não-lugar do paraíso possível, virtual e potencialmente
prefigurado no futuro. E aqui temos uma breve síntese de toda a
doutrina temporal e histórica de que Vieira desenvolve em suas obras
proféticas e em sua predicação.
O que é o desejo senão a tentativa de identificação
consigo mesmo mediada pelo outro, a conciliação pacífica com a
objetividade externa, a supressão da distância que separa a nossa
vida atual da nossa vida futura e potencial? O desejo de Maria de
conceber o divino no mundo é também o de elidir o hiato que o separa
dela. Essa paz e essa conciliação anunciam um tipo de prosperidade
que sempre nos escapa, porque está sempre em algum outro lugar que
não o nosso, e em algum outro tempo que não o presente. Essa é uma
leitura hegeliana possível, embora repleta de contradições. Uma
delas é identificar o movimento do Espírito e seu processo
fenomenológico de superação dialética e auto-realização no tempo,
tal como foi concebido por Hegel dentro de um ideal iluminista e de
ruptura romântica, ao caráter escatológico, providencialista e
profético de Vieira, que mobiliza no sermão a eternidade de um Deus
que, por ser encarnado, se manifesta no tempo, e que, por isso,
possibilita-nos crer na absoluta reversibilidade entre todos os
tempos. Por maior que seja a importância monumental e inegável do
cristianismo para a filosofia de Hegel, a concepção temporal de
Vieira está ao mesmo tempo aquém e além da concepção do filósofo
alemão. Aquém porque não pensa na superação das contingências como
advento metafísico do Absoluto, mas sim como hegemonia política de
um país: Portugal. Além porque pensa o futuro como prefiguração e
profecia inquestionáveis, porque já pronto na consciência eterna de
Deus, não como materialização do movimento acidental e dialético da
História, construída exclusivamente pelos homens. Dessa forma, vemos
como o seu veio profético se mostra aqui, nesse sermão florido e sem
uma motivação exterior aparente. Porque as coisas sempre estão onde
não estão, como nos ensina o orador, nunca o contrário. Quem duvida
disso ainda não entendeu que a presença, para ser presença, há de
ter alguma coisa de ausência. O objeto da vista, para poder ser
visto, há de ser presente. Mas se está unido à potência que lhe
dimana a possibilidade mesma da visão, se está ligado à mesma zona
produtora do fenômeno ótico, é como se estivesse ausente: há de
estar apartado dos olhos para poder ser visto. Há aqui uma série de
conceitos implicados nesse complexo chamado visão e visibilidade.
Esta é uma das questões cruciais da teologia e da arte no século
XVII, já que a visão, dentre os sentidos, é o mais potente e o mais
potencializável, já que é o elo entre a efetividade do real e a fé,
entre a possibilidade do mundo em sua latência e as manifestações
concretas que habitam este mesmo mundo.
Nesse círculo retórico, microcosmo do círculo que é
Deus, Vieira nos prende, representante que era da Igreja e da
unidade do pensamento católico e político sob a Coroa portuguesa.
Toda forma de superação que ele nos propõe se funda em uma
escatologia providencial, onde devemos encarnar o divino no mundo e
só assim, mais do que escolher o bem, querer o bem, traço muito
característico da ética tomista. Essa visão de mundo é concorde com
a visão política de sua época, havendo heresia só na aplicação que
ele faz dos textos sagrados e da hermenêutica sacra a textos laicos
e profanos, como as trovas do sapateiro Bandarra, lidas em chave
profética. Se essa consumação comporta alguma visão de progresso, no
sentido iluminista do termo, ou de ruptura, no sentido romântico, é
por conta e risco de quem o diz e crê.
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