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Jornal do Conto

 

 

Rodrigo Petronio


 


Colóquio dentro de um ser


 

Acordei no momento em que a luz do sol se liquidava em riscos esparsos na persiana, ao meu lado. Pensei em me mover, mas acabei desistindo; estava tudo imerso em um silêncio tão aprazível, tudo tão tranqüilo que preferi ficar assim, parado, contemplando as linhas retilíneas do quarto que, do encontro das paredes, nasciam do chão, mais ou menos da altura em que me encontro, e iam suaves se encontrar no teto em cone que se perdia de vista numa espiral esfumada. Tudo está calmo hoje; mal posso ouvir o barulho das pessoas que trafegam na rua, que vão e vem circundando esse obelisco. Então deixei-me assim, quieto, ouvindo o barulho inócuo de minha própria respiração, a paz que só encontramos quando de súbito descobrimos, ou melhor, nos lembramos que estamos vivos. Um ruído ao longe se interpõe à minha meditação. Quem seria? Vinha do lado direito, de fora, do corredor que leva à saída do obelisco e à escadaria que vai dar, para baixo e para cima, nos compartimentos ascendentes e descendentes, já que essa é uma construção que tem o mesmo número de andares sobre e sob a terra. Mexem na maçaneta; ergo metade do corpo, precavendo-me. À medida que a porta range seus dentes vou me lembrando que é o dia da faxina, e já entrevejo a luva branca da senhora Max procurando o interruptor. Contenho-me, e volto à posição anterior.

A senhora Max é muito gentil. Um misto de tartamudez, discrição excessiva e gestos de pluma que tornam sua presença algo quase totalmente insignificante. Olha-me, e, como alguém que ameaça esboçar um sorriso, desvia o olhar e se volta para os apetrechos que carrega consigo para a limpeza. Seu gesto é semelhante ao daquelas pessoas que, não sendo tímidas, nem carrancudas ou muito menos introspectivas, nutrem diariamente um tipo de ausência, uma falta, uma necessidade de não ter contato direto com nenhuma pessoa ou coisa que esteja na sua zona de convivência, mas, na impossibilidade disso, acabam criando estratégias de se eximir de qualquer olhar ou contato de pele além do imprescindível. Vem em minha direção; já sei os passos daquele ritual diário. Fecho os olhos, ela me pega com cuidado, ergue-me no ar e me coloca cuidadosamente sobre o criado-mudo. Assim dá seqüência a seu trabalho: espana, limpa, lustra, enxágua as plantas que pendem informes dos vasos no canto do quarto, e cujas folhas caem escorregadias e se propagam em dezenas de braços delgados e raízes pelo assoalho. Sinto de repente uma pontada em uma parte do meu corpo; não consigo precisar ao certo onde. Percebo que a senhora Max espana a superfície do criado-mudo, o que me provoca cócegas e comichões engraçados. Ela me toma nas mãos, retém mais uma vez o seu sorriso inexistente, coloca-me de volta no meu lugar, recolhe suas tralhas e some. De onde a vejo cruzar a porta, seus pés parecem maiores que todo o seu corpo, e sua imagem vai decrescendo, até chegar à cúpula da cabeça, fina como a de um alfinete. É curioso pensar nas pessoas; elas se acham o que há de mais perfeito sobre a Terra, e não vêem o quanto são cômicas na maioria das situações de seu dia a dia. Mas todas as coisas têm sua dignidade, e devem ser vistas a partir do ponto de vista que lhes diz respeito; se inventamos de julgar o inseto pelas leis do tigre, matamos a ambos, pois se o primeiro é uma espécie de borrão animado que morre com um simples peteleco, o segundo não tem o dom aspirado por todos os seres vivos terrestres, a capacidade de voar. A senhora Max só pode ser medida pelos atributos das senhoras, e, mais precisamente, das senhoras Max além dela que haja por aí a fora. Aproximar coisas distintas foi uma espécie de sono lúdico que inebriou a humanidade durante séculos e séculos, e lhe deu em troca nada mais que ficção, nunca um entendimento aprofundado dos fatos.

Reclinei-me lentamente e comecei a meditar, sobre nada, sobre alguns acontecimentos do passado, a exercitar aqueles pensamentos que mais parecem uma nuvem mental. Lá fora já ouço o passo dos homens que marcham em direção à fábrica. Seu ritmo cria uma melodia de ecos estranha em meu quarto; circundam o obelisco, a meia dúzia de metros de seu diâmetro, e parecem mais fazer uma roda e cercá-lo por todos os lados do que ir atrás de algum objetivo. Ouço passos na escadaria que dá acesso aos pavilhões inferiores. A porta se abre e de súbito o senhor Max adentra o cômodo, um pouco ofegante e com movimentos bruscos; depõe o chapéu e o sobretudo no cabide e some no primeiro umbral. Estimo que hoje ele não deva estar em um dos seus melhores dias. O dono do obelisco andou pressionando-o a pagar os aluguéis atrasados; o senhor Max está numa fase muito complicada em seu trabalho, a filha hospitalizada, muitos gastos e outros problemas de ordem sentimental que não sei dizer exatamente quais são. Ei-lo de volta; desgruda o bigode do rosto e o põe com cuidado na pequena escrivaninha à janela; tira a perna mecânica, lançando-a para dentro da escuridão de um armário com as portas abertas; solenemente se desfaz da peruca, dos supercílios, da barba, do braço esquerdo. Aproxima-se de mim, alternando a mão espalmada no piso e o joelho deslizante e cantarolando uma canção eslava em um tom que oscila entre o melancólico e o fatigado; recolhe alguns papéis caídos, entre os quais eu continuo imóvel. Pega-me; aproxima seus olhos muxibentos de mim com a ternura que lhe é peculiar de vez em quando. Tenho a impressão que ele vai derrubar uma lágrima, tamanha a comoção que transparece nas duas órbitas que tapam o horizonte da minha vista. Sinto medo. Mas logo ele se afasta, abre o catre pequeno instalado em uma das paredes, leva-me em sua mão direita até ele e me confia a seus lençóis. Livra-se das roupas e lança o corpo nu sobre a cama. Ao barulho de seu impacto no colchão se segue a ressonância quase automática entre seus lábios. Enfim, o mesmo ritual de sempre.

Não notei quanto tempo o senhor Max repousou; às vezes parece-me uma fração de minutos, às vezes algumas horas. Há muito meu contato com os fenômenos da translação e da rotação foi obstruído; intuo o fluxo do tempo pela intensidade com que a luz vaza das linhas da persiana, que nunca foi aberta. O senhor Max já se põe em pé, munido das peças que havia despido, cada qual em um canto do quarto. Vai a uma das extremidades; ao espelho penteia religioso os fiapos de bigode que saltam de seus lábios superiores, quando, num volteio de mãos desastradas, acerta o vaso sobre a cômoda que cai e se espatifa... Ai! Uma dor lancinante percorre todos os nervos do meu corpo, e me contenho para não estourar em um grito. Vejo o senhor Max com os olhos esbugalhados em minha direção, uma cara de bobo, sem saber o que fazer. Corre desordenado até a outra parede e, olhando pra mim, acaricia a pátina esverdeada que nasceu ali em decorrência de alguma infiltração. Isso contém minha dor, me dá uma sensação de alívio, mas não a elimina totalmente. Sinto-me reconfortado com seu gesto, e meus nervos de novo relaxam sob a intervenção daquela carícia inábil. Toma o guarda-chuva, o chapéu, o sobretudo e sai. É engraçado como o senhor Max anda pelo corredor do obelisco, os pés como duas raquetes marcando quinze para as três, pisando em falso e com passos de aberturas diferentes, pois já consegue calcular os locais do assoalho que estalam com o simples peso de uma criança. Atravessa a trigésima porta à esquerda do nosso saguão e ganha a rua. Segue pela calçada da esquerda, no contra-fluxo, sem perceber, tão absorto nos seus pensamentos. Pensa na pequena Max, internada naquele lugar fétido, e se lembra ressabiado que ainda falta muito para a hora anual que tem disponível para visitas. Cumprimenta alguns conhecidos por pura cortesia, já que gostaria de desaparecer, de se extinguir e ser todo pensamento, sem se comunicar com ninguém. Pelo menos naquele dia, era isso que desejava.

Não sei muito bem qual é a história desse lugar em que vivo. Há muita lenda e folclore que correm por conta de pessoas exageradas. Dizem que os pavilhões inferiores eram destinados aos amotinados da época da guerra, e que ainda hoje, passadas cinco décadas, eles ainda acreditam que estamos em litígio, e boa parte dos moradores dos pisos superiores não trabalham, vivem do tráfico de armas e mantimentos produzidos pelo povo do subterrâneo em suas alcovas e indústrias improvisadas; já se sucedem novas gerações no ofício, que provavelmente vão morrer sem conhecer a luz do dia ou saber que a bandeira branca já foi hasteada há muito. Não os conheço, porque nunca saí daqui, e, mais ainda, nunca saí de mim mesmo, mas imagino que haja muita mistificação nessa conversa. O fato é que os superiores publicam panfletos e jornais dando notícias diárias aos subterrâneos da situação do conflito e da lástima que se passa no nível do solo, alimentando ainda mais o seu instinto revolucionário e bélico. Vivem dentro de uma ficção que esconde a paz quase mórbida em que nós todos, sobre a terra, vivemos.

Ouço risos; passos desordenados vêm em direção ao quarto. Que diabos está acontecendo que ninguém me dá sossego? O jovem Max vem porta a dentro às gargalhadas, puxando uma mulher robusta pela mão. Ambos parecem bêbados e alegres; não notam minha presença, pois jazo no catre em surdina. O jovem Max arranca a saia da moça beijando seu pescoço, enquanto ela se desfaz de suas calças e de sua camisa. Mal posso ver tudo o que ocorre entre os dois, rindo, estendidos na cama. Percebo apenas a fricção juvenil do corpo do jovem Max que, como um pêndulo, sobe e desce, aparece e desaparece do meu escopo de visão. O quarto aos poucos começa a tremer, ao ritmo dos gemidos dos dois. Uma sensação estranha vai subindo pelo meu corpo, vindo da parte esquerda inferior, mas não consigo precisar ao certo de onde. Nunca senti coisa parecida; fico receoso. À medida que o jovem Max se agita, a sensação se torna mais intensa e nítida: sobe pelas minhas laterais, faz tremer os meus nervos num contínuo. Parece que vou perder a razão... Já não entendo... Ah! Estouro em um berro que abala a estrutura do obelisco como um terremoto. Os dois saltam assustados e, envolvidos em um lençol, correm até mim. O jovem Max se desculpa, diz que não haviam me notado ali. Vestem-se em um piscar de olhos e somem no primeiro umbral. Desfaleço, como se minhas energias tivessem sumido sem saber o porquê.

Sinto passos leves e velozes sobre meu corpo. Imagino que sejam os gêmeos do trigésimo sétimo pavilhão inferior. Eles devem estar brincando de pega-pega, puxando seus caminhões e tanques de ferro enormes por uma corda. Uma coceira estranha me pega o flanco direito; a senhora Max desempoa com sua vassoura meticulosa o alpendre que dá para a rua. O ir e vir de seus quadris segue um ritmo binário e milimétrico. A menina do terceiro pavilhão superior risca o solo com seus passos num balé delicado; salta e gira como um flamingo de um canto a outro. Isso me causa grande prazer. Mas um prazer ainda maior é contemplar o funcionamento do obelisco como um todo. Sua arquitetura é muito singular: tem a forma de um cone que sobe até se perder de vista no azul do céu, imagem que se espelha na parte subterrânea; todos os compartimentos são ligados pela escada circular que vai unindo-os como uma linha em que se grudassem infinitas contas de cristal. Mas, o que é isso? Uma umidade gelatinosa me lava por dentro. Só poderia ser o patife do Leopoldo, o cão do apartamento contíguo. Sim, é ele mesmo, agora esguichando seu líquido fedorento por todos os lados. Já o criador de pássaros do subsolo alimenta suas crias. É a única coisa que fez durante toda sua vida: manter aquela floresta de gaiolas que é seu quarto, em cujo centro há uma pequena bacia de água para sua higiene e uma cama que mal comporta seu corpo atrofiado. É o Paolo, o Pássaro, como costumam chamá-lo. Ele olha para cima e sorri; é a única pessoa deste obelisco que nota minha presença, onde quer que eu esteja.

A porta se abre mais uma vez. Será quem imagino? Parece que sim. Uno-me estão às fibras do vento e de novo sinto latejar em mim o sangue que corre como rios caudalosos em veias cada vez mais reais. Sinto a campina, o prado, o movimento quase imperceptível que tange as folhas de um salgueiro. Os passos dos operários repercutem em meu peito mais verdadeiros do que nunca, enquanto o mecanismo do obelisco e seus habitantes se infundem em mim com uma graça e uma leveza até então desconhecidas. Cada detalhe compõe esse cenário vivo e me dá, cada qual, a sensação nítida de sua singularidade. É bom sabermos que estamos vivos e que todas as coisas que existem conspiram para a ordem e a felicidade delas próprias. A persiana se inclina com o influxo da brisa, chega ao ponto de se abrir, deixando seus lábios finos rasgados de luz de um extremo a outro. A senhora Max pára à porta, encosta-se no seu batente, largando o balde e a vassoura no chão. Tem uma aparência exausta, como se estivesse sofrendo há anos em silêncio. Sei que ela está farta de tudo isso, e entendo seus motivos. Seu semblante se contorce em rugas e começa a chorar; um misto de revolta, nojo e tristeza sulca sua cara. Ela tenta me evitar, desvia inutilmente os olhos. Não consegue. Vem então cambaleando, ergue a mão espalmada para o alto e a desce com toda a força de seu braço.