Rachel de Queiroz
Morreu João Cabral, poeta
Morreu um poeta. Toda morte é um
prejuízo, mas a morte de um poeta representa uma agressão ao
patrimônio humano. Morrer um homem, já é um prejuízo. Mas o poeta,
com ser poeta, além de ser homem, amplia enormemente a perda.
Não é só a saudade não é só a pessoa
que se perdeu. O poeta era em si uma riqueza, mas não riqueza comum,
porém única e insubstituível.
Aquela voz que deixou de se ouvir não
tinha similar, não tinha companheiros, não se fazia em coros. Era
uma voz de nota única pessoal e solitária. Ninguém podia cantar por
ele, ninguém poderá cantar por ele. Aquela voz se acabou.
É isso o que representa a perda de um
grande poeta. O espaço ocupado por ele fica para sempre vazio. Podem
brotar dezenas de poetas, novos, até mesmo de grandes poetas: o
espaço ocupado por João Cabral de Melo Neto será para sempre dele.
Uma vez que ele morreu, que não produzirá poesia nova, esse espaço
ficará em branco, inocupado.
Quando morre um poeta como João Cabral
cria-se um rombo, um vácuo. A gente fica sem ter o que dizer pois
era ele que preenchia a nossa necessidade de expressão.
Como vou falar de angústia, se eu
procurava na poesia dele a expressão da minha própria angústia? O
poeta é na verdade a nossa língua. Não para tudo, mas no que a era
parte dele dentro de nós. Nossa tristeza, nosso amor, nossa
consciência do mundo - íamos procurar nele, nosso intérprete
pessoal.
Sempre sentimos isso quando perdemos
um grande poeta que ao mesmo tempo fosse o nosso poeta. Ele que
falava por nós, que preenchia nossa falta de inspiração. Como iria
fazer, dar forma, feitio e expressão literária, se me falta o poeta
que dizia isso por mim?
De repente nos sentimos mudos. Verdade
que ficou a obra escrita, ainda é o que nos salva. Mas já não temos
as invenções do poeta que iriam dar corpo vivo às nossas invenções.
Com ele calado, nós também nos calamos.
João era um silencioso. Mas tinha uma
maneira sutil de exprimir a irmandade com um toque de mão, com um
sorriso calado. Ele estando junto era como se nos dissesse: "Conte
comigo, eu estou aqui. Já passei tudo que você está passando." Isso
que estávamos passando poderia ser a angústia de um momento, uma
tristeza sem voz.
Engraçado a dualidade que se
estabelece entre os silêncios do poeta e tudo o que ele é capaz de
dizer até com esses silêncios. É que, em poesia, as pausas também
falam.
Você ou eu, que escrevemos prosa,
temos de falar tudo bem explicado, bem correto; prosa clara, define
os mestres. Já o poeta pode se esconder em obscuridades. Nós
seguimos procurando o fio da meada, já que a poesia é sempre um
desafio. O que ela sugere a você não sugere a mim.
E pode mesmo ter um terceiro segredo
escondido. A poesia é um mistério, com todo o direito às suas
nebulosidades. Cada leitura, ou cada leitor de um poema podem
descobrir nele um sentido oculto, que varia a cada interpretação.
Aliás, creio que será esse o grande
segredo do poeta. O que ele fala ou o que ele canta procura os
sentimentos, não propriamente a inteligência.
Os poestas antigos cantavam os seus
versos e os poetas populares de hoje ainda os cantam. Será que o
hermetismo de um João Cabral poderia ser expresso em música? Claro.
A sua obra mais conhecida Vida e Morte Severina é toda musicada. E
talvez não pudesse ser entendida se não fosse a cantoria. E talvez
João a tivesse recebido com surpresa pois não a concebera para
cantar.
Leia João Cabral de Melo Neto
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