Raymundo Silveira
Insight
Nasci em Rapa-Nui. Sou filho de Moais.
Minha mãe foi pulverizada sob o jugo de Uwala Waili, o Tirano. Meu
pai não viveu. Sobrevivemos. Tentaram fazer com ele como fizeram com
minha mãe, mas não foram capazes. Pesava demais. Ainda assim,
deixaram-no avariado para sempre. Pessoas estranhas invadiram a Ilha
e nos trouxeram para cá. Os tormentos do meu pai secaram-lhe tanto a
alma que o coração virou fruto de mandacaru. E o corpo de pedra, um
imenso cacto recoberto de espinhos. Com uma diferença: eram
invertidos. E em vez de protegerem, perfuravam-no.
Jamais conheceu qualquer prazer.
Exceto quando, picado por insetos venenosos, sua seiva se impregnava
de estupefacientes e circulava na cabeça, antes maltratada pela dor.
Logo cessava o efeito. E os cardos pontiagudos, aguçados pela
abstinência, o dilaceravam ainda mais. No entanto, sentia um medo
terrível de morrer. Que estranho apego à vida seria esse, cujo nome
inventado pelos homens é tão pequeno, mas expressa uma necessidade
tão intensa? "Instinto de vida”? Mal pode ser comparado a duas
lágrimas salgadas diluídas naquele oceano de angústias.
Como filho de Moais, também sou feito
de pedras. Mesmo tendo sido cinzelado a partir das rochas mais
resistentes, tinha tudo para ter virado pó, como minha mãe. Ou um
vegetal igual ao meu pai. A deusa Indra é minha madrinha. E me
protege. Descontado o desgaste natural causado pelo tempo, estou
íntegro como meus irmãos de Rapa-Nui. A deusa providenciou para que
meu corpo fosse esculpido num granito especial, vomitado pelo vulcão
Rano Raraku, perto do qual vim a existir. Além disso, toda vez que
sou ameaçado, minha madrinha envia emissários para me defender.
Apesar da resistência pétrea e da
proteção de Indra, conduzo minha própria vida. A se esbater como uma
borboleta, nas mãos semicerradas em forma de conchas. Desconfio que,
embora sendo feito de pedras o meu corpo, trago as mãos acolchoadas
pelo veludo dos ternos sentimentos. Talvez a borboleta se sinta
antes protegida do que ameaçada. Ou não. Quem sabe, sou eu mesmo que
a retenho, com as minhas mãos rochosas. E ela, apesar do desespero,
não logra escapar...
Travei muitas batalhas. Todas em
legítima defesa. Mal pus os pés neste solo, contraí um inimigo que
tentou me escorraçar. Dizia que Moais não foram feitos para conviver
com gente. Então, acertou-me um golpe de picareta no meio da testa.
Estremeci, mas não caí. Nem revidei. Embora ainda traga a cicatriz,
consegui sobreviver. Enquanto ele já se preparava para desferir mais
um golpe, surgiram no céu objetos luminosos que subiam e desciam.
Foram trazidos por criaturas voadoras, com os olhos imóveis, do
tamanho de focinhos de focas. Eram emissários da deusa. Então, um
deles se aproximou e me disse: "Indra te envia, para a vitória, esta
carruagem afortunada, exterminadora de inimigos, e o grande arco
feito por sua mão, e esta couraça de fogo, e estas flechas feitas de
raios de Sol. E esta lança de ferro reluzente”. O adversário bateu
em retirada.
É curioso: ao contrário do que
aconteceu a Laoconte, foram duas serpentes que socorreram, a mim e a
meus filhos, durante uma das mais ferozes batalhas que enfrentei.
Acredito que isto só aconteceu porque nunca usei a minha lança para
sondar ventres de cavalos de madeira, como fez o sacerdote de Apolo.
Provavelmente à cata de fáceis tesouros. Não! Tirante a proteção de
Indra, nada me foi dado. Tudo o que sou e o que tenho foi
conquistado a duras penas... Ou a duras pedras. Como aquelas de onde
fui tirado.
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