Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

A coceira
 

 

Coçar. No princípio era o verbo. Depois se fez carne. No começo era uma comichinha gostosa daquelas de regalar o sujeito e arregalar o olho da rua. De inveja. Uma coceirinha faceira implorando cafunés ou coçadinhas nas costas, e um bicho-de-pé de estimação assistindo a tudo, louco de ciúmes. Aos poucos, foi tomando conta dele por dentro e por fora, feito uma única abelhinha assanhada, as companheiras correndo atrás, querendo acompanhar. Mais tarde, legiões de formigas-de-roça e pragas de pulgas: pulgas de gente, pulgas de rato, pulgas de cachorro, pulando e pululando, primeiro em marolas, a seguir em ondas, vagalhões, preamares, marés crescentes, marés-cheias, mares bravios, maremotos...

Começou pela cabeça e foi mudando de lugar: passou para o pescoço, daí para a ponta da espinhela, espalhou-se pelos peitos, deu uma escapulida até os ombros, desceu pelas costas, perpassou pela cordilheira dos Andes do espinhaço em direção aos Apeninos das nádegas, entrou pelo cu do pinto, saiu pelo cu do pato, senhor rei mandou dizer que parasse nos quartos... Não parou. Saiu pela boca, deslocou-se, para as virilhas desceu por uma perna, subiu pela outra, até estacionar no pinto mesmo. Quem via aquilo, no início morria de rir, mas depois chorava... De rir também.

Não ria, leitor! Esta história não é inventada. E o exagero galhofeiro do parágrafo precedente foi proposital. Uma tela branca num pano de boca encarnado dum teatro preste a exibir uma tragédia para, através dum contraste, evidenciar o ror de sangue a escorrer das múltiplas chagas abertas pela coçadura sem fim. Ou então, uma gargalhada nervosa dum palhaço, trabalhando de dor, diante duma platéia ávida de divertimento, para ganhar o remédio da filha moribunda.

Começou há trinta e quatro anos e as marcas ainda não se despediram. Até hoje, o vazio de tudo ainda pesa que nem chumbo sobre uma plenitude de nada. Os surtos eram espaçados. Passavam um ou mais anos sem se manifestarem e voltavam mais fortes. Aquela intermitência foi-se amiudando. De anual passou a semestral, quadrimestral, trimestral. Mais tarde, o intervalo diminuiu para um bimestre, um mês, uma quinzena, uma semana, até que se tornou de todo dia o dia todo. A doença terminou por incapacitá-lo para qualquer tarefa produtiva. Numa certa manhã, foi atacado subitamente e com uma intensidade nunca vista, não poupando centímetro quadrado de couro. Até as plantas dos pés e as palmas das mãos, comumente não afetadas, neste dia foram acometidas. Desesperado, correu para o Rochedo das Agulhas. Foi lá onde perdeu, e jamais recuperou, a sua poesia.

A cerca de um quarto de hora de caminhada, a partir do vilarejo, havia um rochedo escarpado à beira-mar. Não se tratava de uma rocha qualquer. Era muito alta, quase talhada a pique, de difícil acesso e só tinha sido enfrentada, meia dúzia de vezes, por alpinistas experientes. Além de íngreme, apresentava, da base ao ápice, reentrâncias, nichos, lojas, e anfractuosidades, revestidos por segmentos pontiagudos semelhantes a agulhas. Os alpinistas escalavam sempre pela face Norte, pois esta continha menor quantidade de superfícies aguçadas. Ele escolheu o lado Sul. Inicialmente, se atirou contra o sopé do penedo com a violência autodestrutiva dos desesperados. Friccionou as costas contra as agulhas e começou a escalada. Quanto mais as extremidades do pedregulho penetravam na carne, mais se esfregava. E subia, subia, subia... Havia momentos em que parava para descansar um pouco, mas era em vão: só sentia a dor das carnes sendo dilaceradas, como se feras famintas o estivessem devorando. E um desejo enorme de acabar depressa aquele tormento. Pela primeira vez, pensou em se matar.

Depois destes instantes de dor, a comichão voltava com uma força muito maior, e a vontade de se atritar contra a rocha superava o impulso de morte. E ele tornava a subir e a friccionar o corpo, com uma volúpia compulsiva, contra as áreas corrosivas e perfurantes do penhasco. A meio caminho do topo, a crise amainou outra vez e ele se examinou superficialmente. Nem sequer os dedos das mãos e dos pés possuíam mais fragmento de pele. As pernas, os joelhos, os cotovelos não passavam de ossos expostos a sangrarem. Os braços, o ventre e os genitais, em carne viva.

Pela dor, adivinhou o estado das costas e da face. E a coceira voltou mil vezes mais voraz. Tinha vontade de resistir àquele suicídio literalmente involuntário, mas era em vão. Continuou a subida. Prosseguia, impotente, a se destruir contra as agulhas impiedosas das pedras. Seguia travando aquele combate inútil entre o desejo de não sentir dor e a compulsão de se coçar. Ansioso por atender àquelas exigências conflituosas. A se debater entre dois impulsos antagônicos. Thanatos e Eros exigindo, cada qual, o seu quinhão...
 

 

 

 

 

25.10.2005