Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Raymundo Silveira


 

Insanos
 

 

Sempre fui uma pessoa normal. Descobri, de repente, que sou a única normal neste lugar. Até ontem, bem ou mal, me comunicava com alguém. Embora boa parte me evitasse. Não por minha culpa, evidentemente. Hoje todos amanheceram insanos. Acordei cedo e desci à portaria do prédio. O porteiro estava petrificado. Sequer esboçava, na fisionomia, algo que denotasse qualquer emoção ou sentimento. “Não está me reconhecendo?” Falei. Confirmou com três inclinações da cabeça. “Está doente?” Outros três meneios laterais: que não, que não, que não. Só!

Abro a caixa do correio abarrotada de correspondências. Nenhum dos remetentes existe. Jogo tudo fora. Saio para caminhar. Sempre detestei caminhadas. Faço-as para não parecer mais diferente do que já me acham, os anormais. Rua deserta. Logo mais, surgem três homens vindo em sentido contrário ao meu. Caminham como robôs. Lentos passos que repasso na memória e associo a um passado tenebroso. E inclinam os ombros para um lado e para o outro. Como pingüins.

Mais tarde encontro outras pessoas. Nenhuma me dirige palavras. Se as interpelo, nunca falam. Limitam-se a reagir como o porteiro do prédio. Todos concordam com o que digo. Quando afirmo qualquer coisa, respondem com gestos de lagartixas: que sim, que sim, que sim. Quando nego, como um gato enxugando a cabeça.

Por volta de meio dia, sinto fome. Entro num restaurante. Enfim, alguém disposto a falar comigo. Certamente, por causa da expectativa de vender. De lucrar. Todos são assim. Mas estou enganado. O garçom chega à mesa e me estende o cardápio. Sem pronunciar um cumprimento. Pergunto se ali não se fala aos clientes. Que sim! “Então fala comigo?” Que não! Sempre como a lagartixa e o gato. “Por quê?” Enfim, um gesto diferente: um dar de ombros. E se retirou, levando o menu.

Continuo sentado à mesa. Uma hora depois vem o gerente e me manda ir embora. Assim: sacudindo as mãos. “Quero comer. Estou com fome. Posso pagar”. Que não! Retiro o dinheiro do bolso e lhe estendo. Que não! Insisto e ameaço. Enfim ouço um som de voz humana: “Você não é gente!” Indignado, vou até à porta e aceno para dois transeuntes. Que me olham assustados. “Por favor, me ajudem. O gerente deste restaurante acaba de dizer que não sou gente. Digam pra ele o que sou”. Olham-me, agora, com indiferença. Imploro. Afinal, concordam em entrar.

“Senhor, aqui estão duas pessoas que podem provar que sou gente”. O gerente as interroga apenas com uma expressão inquiridora. Ambos meneiam as cabeças: Que não! E saem, imediatamente, caminhando naqueles passos de pingüins. O gerente me encara, ameaçador. Mímicas de “cai fora”. Estou morto de fome. Saio para o meio da rua. Agora, além da fome há um vento gélido a soprar. E tremo de frio.
 

 

 

 

 

25.10.2005