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            Raymundo Silveira 
   
            Mané Butão
 
 “Qué Cumpá Pão”? 
            Todo santo dia pela manhã esta frase era escutada à porta das casas 
            onde arrematava o seu ofício de padeiro. Era, simultaneamente, o 
            dono da única padaria do vilarejo, o assador, o entregador e o 
            vendedor de pães. A voz era, ao mesmo tempo, grave, gutural, 
            anserina, baixa e se assemelhava mais ao som resultante da percussão 
            de um bombo cujas peles, mal esticadas e envelhecidas, não mais 
            obedecessem ao comando dos parafusos de afinação. Ninguém sabia como 
            ele se chamava; chamavam-no Mané Butão. Vivia com uma irmã, mas esta 
            nunca se preocupou em esclarecer a sua real identidade. “Qué Cumpá Pão?” 
            Esse refrão cotidiano e matinal alegrava os famintos, irritava os 
            dorminhocos, tranqüilizava os expectantes, consolava os preguiçosos 
            e assustava as crianças. Dava conta daquela faina rotineira do dia a 
            dia quer chovesse, fizesse sol, diluviasse, “nevasse” ou caíssem 
            bombas incendiárias como estava acontecendo em Londres exatamente 
            naquele mesmo sete de setembro de 1940. Ele ignorava este episódio e 
            muito mais. Não sabia também, por exemplo, que aquele dia 
            representava uma data festiva porque se comemorava a independência 
            da sua pátria (aliás, ele desconhecia o significado de ambas as 
            palavras: pátria e independência), não sabia como nem por que se 
            encontrava no mundo, enfim, não sabia sequer o que era mundo. E não 
            estava nada preocupado com isso. Ele só queria fabricar, entregar e 
            vender os seus pães; nada mais importava. “Qué Cumpá Pão”?” Parece que 
            aquilo a que chamam dom da consciência o qual dizem só possuírem os 
            humanos, antes de ser um privilégio, trata-se de um castigo da 
            natureza. O Mané Butão tinha este dom, porém jamais o havia 
            utilizado. Contudo, vivia mais feliz do que os homens ditos 
            instruídos. A ignorância, sim, parecia ser a sua verdadeira dádiva. 
            Naquele 1940 ele já tinha vinte e dois anos; isto, porém não foi 
            suficiente para deixarem-no em paz os paladinos da educação que 
            encetavam uma campanha contra o analfabetismo de adultos na sua 
            aldeia e ele foi um dos primeiros recrutados para servir como alvo 
            da dita campanha. Ensinaram-lhe a 
            ler e a escrever; ministraram-lhe rudimentos de geografia, história, 
            aritmética, língua portuguesa e incentivaram nele o hábito da 
            leitura. Essas sementes foram como o grão de mostarda da parábola 
            que caiu num terreno mais do que propício. Desde que aprendeu a ler, 
            estudava compulsivamente do instante em que terminava de cumprir os 
            deveres do seu ofício até a alta madrugada. Lia tudo o que lhe 
            caísse nas mãos, porém o que mais o fascinou foi a filosofia e a sua 
            história. Dormia apenas três a quatro horas por noite. Depois de 
            pouco mais de cinco anos Mané Butão jamais foi o mesmo e o seu mundo 
            também era outro. Conhecia todos os filósofos. Dos pré-socráticos 
            aos iluministas; de Aristóteles a Immanuel Kant; da escolástica 
            tomista ao existencialismo sartriano; de Santo Agostinho a 
            Schopenhauer. Desde então 
            nunca mais soube o que era paz. Queria uma resposta para todas as 
            suas indagações; as angústias existenciais se tornaram suas eternas 
            companheiras. Seu questionamento primordial sobre a vida era: “Para 
            quem eu existo?” Sentia necessidade de uma explicação para isto do 
            mesmo modo que um viciado sente falta de um gole de aguardente. 
            Incomodava-o ter de responder assim: “para mim mesmo”, pois o 
            egocentrismo embutido nesta resposta o fazia sofrer. Experimentava 
            uma inexplicável ansiedade se assim raciocinasse porque considerava 
            tal resposta além de egoísta, insatisfatória, irracional pouco 
            efetiva. Sabia que, pelo contrário, na prática cotidiana, deveria 
            interagir com os seus semelhantes, não apenas se comunicando com 
            eles, mas também participando ativamente das suas próprias vidas e 
            eles da sua.  Acreditava que 
            os verbos “ser” e “estar” eram diferentes entre si apenas pela 
            ausência de um complemento. “Estar” é o mesmo que “ser”, mas isto só 
            se torna possível quando ao primeiro for acrescentada a expressão 
            “junto ao outro”. Ou seja, ninguém “é” ninguém se não “estiver” 
            junto a alguém. Contudo, essa idéia, em vez de apaziguar o seu 
            espírito, o angustiava cada vez mais. “Como posso estar sempre junto 
            do outro se os grandes conflitos humanos resultam exatamente dessa 
            condição?” O próprio Sartre era dono de uma expressão que fez 
            escola: “O inferno são os outros”, cogitava. Tinha de reconhecer 
            que, para conviver com as pessoas, havia necessidade de alguma 
            reciprocidade, embora os objetivos de ambas as partes não fossem 
            sempre os mesmos e, portanto, tal reciprocidade não teria de ser 
            necessariamente de todo perfeita. Em outras palavras, mesmo que as 
            metas dos indivíduos sejam pessoais, se estes se concentrarem a fim 
            de obter o êxito individual almejado, as conquistas coletivas 
            poderiam ser alcançadas mais facilmente apesar da diversidade dos 
            interesses particulares, pois os resultados de todas as aspirações 
            humanas são divergentes, mas complementares.  Passava horas 
            pensando nisto e tentando explicar às outras pessoas com quem 
            convivia que, por sua vez, eram donas de outras preocupações. A 
            irmã, os amigos, os companheiros, os vizinhos ou simples conhecidos 
            estavam mais interessados no seu pão do que na sua filosofia de 
            almanaque. Elaborou o que chamava a sua “teoria dos 
            ouriços-cacheiros” para com ela conquistar adeptos. Dizia para uma 
            assistência entre atônita, indiferente e irônica: “Uma manada de 
            ouriços habitava uma região que, subitamente, foi castigada por um 
            frio intenso. Vários deles, flagelados pelos efeitos da baixa 
            temperatura, morriam ou adoeciam em virtude de não serem capazes de 
            construir um abrigo ou lograr qualquer fonte de calor em tão curto 
            espaço de tempo. Os animais nunca se haviam aconchegado uns aos 
            outros temendo o traumatismo causado pelos acúleos dos companheiros. 
            Como a temperatura baixasse cada vez mais, o desespero levou-os a se 
            ajuntarem, mesmo correndo o risco de se ferirem. Com isto, o calor 
            dos corpos uns dos outros fê-los sobreviver, pois os traumas 
            causados pelos espinhos eram menores do que a catástrofe determinada 
            pelo frio”. Essa parábola produziu pouco ou nenhum resultado. Mané Butão parou 
            de fabricar pães. Não sofria frio, mas passava fome. E mesmo não 
            sendo dotado de espinhos, ninguém quis compartilhar com ele a teoria 
            do seu estranho mutualismo filosófico, o qual ele insistia em 
            pregar. “Venham escutar a história dos ouriços”, bradava nas ruas e 
            praças públicas. Era quiném São João, o Batista – clamava no 
            deserto. A molecada o acompanhava e fazia assuadas: “Mané Butão, 
            conta a história dos ouriços qui nós qué ouvir também. Mas tu tem 
            qui mostrar eles se não é tu qui vai ficar co’corpo coberto d’ispim, 
            seu mentiroso.” E caíam na gargalhada. Alguns adultos mais cruéis 
            convocavam-no para dentro de suas casas a fim de se rirem e se 
            divertirem à sua custa. Passou a viver da caridade espontânea dos 
            seus conterrâneos. Ele e a mana só se alimentavam se lhes dessem o 
            de comer. Suas angústias existenciais cada vez mais o atormentavam. 
            Acabou enlouquecendo e tendo de viver o resto dos seus dias 
            enjaulado dentro de casa numa cela que a irmã mandara construir 
            especialmente para ele.  |