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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

Torrente

 

O rio que passa pela minha aldeia não tem nada a ver com o Tejo, mesmo porque ele começa na encosta de uma serra à qual minha aldeia serve de sopé. Ademais, ao contrário do Tejo, que parece eterno, o meu rio nasce e morre; morre e renasce, como se estivesse condenado a eternas “reencarnações fluviais”, cuja periodicidade varia com a mesma freqüência com que as lágrimas rolam no rosto dos sertanejos, a quem ele deveria servir de consolo e de esperança.

Quem percorrer os caminhos do sertão nordestino durante os meses de agosto a dezembro, ou em qualquer outra época, nos anos de seca feroz, vai deparar com uma paisagem lunar. O panorama - se é que se pode chamar assim a tamanha desolação - é mais angustiante do que o de um deserto, uma vez que ali os ecossistemas praticamente estão ausentes. Tudo aquilo que antes era vegetação, se resume a um cipoal ressequido, sem o menor vestígio de clorofila. A fauna se restringe a pequenos répteis e escassos roedores que a população esfaimada devora, no afã de obter um mínimo de suprimento de proteínas em sua dieta. O solo sugere o rescaldo de um incêndio de proporções apocalípticas.

A secura nos olhos do sertanejo dura, por conseguinte, muito mais do que o seu pranto. Mas, de vez em quando, as lágrimas são tantas que, paradoxalmente, transformam num verdadeiro mar, aquela planície ressequida. Quando isto sucede, o sofrimento daquela gente não escasseia nem um pouco, apenas muda de perfil. O tormento, portanto, é o mesmo; a única diferença é que na primeira circunstância trata-se de uma dor cansada, seca, ardorosa, prolongada; uma dor tipicamente crônica, constante, sempiterna. Quando a inundação das lágrimas prepondera, ela se torna aguda, lancinante, urgente, parecida com aquelas crises dolorosas que requerem ajuda imediata – uma questão de vida ou de morte.

Foi numa destas enchentes que o barraco de Justino Teixeira foi levado de roldão. A inundação surgiu subitamente. Toda a família sucumbiu nas profundezas das águas e os seus corpos foram carregados pela correnteza. Não houve tempo sequer para se abraçarem. Somente ele logrou, a muito custo, sobreviver. A princípio pensou em se deixar afogar também, porém o instinto de sobrevivência fora mais forte. Depois de muito lutar contra a força das águas, deixou-se flutuar e ser carregado por elas. Aonde aquilo findaria, nunca poderia prever; como acabaria aquela caótica corrida para o nada, não tinha a menor idéia. Simplesmente se deixou levar ao sabor da corrente.

Durante o percurso deparava com toda sorte de complicações. Ora, eram as águas que se tornavam mais turbulentas e rodopiavam com o seu corpo esquelético sobre alguma depressão no leito do riacho; ora, eram escolhos pontiagudos dos quais por pouco conseguia se esquivar; ora, eram répteis venenosos que tentavam atacá-lo; ora, era o cansaço, a desesperança, a falta de vontade de lutar. Não enxergava nenhuma perspectiva de solução imediata. Não visualizava as margens, um galho de arbusto onde pudesse se amparar, um caule que lhe servisse de embarcação provisória, alguma pessoa que lhe prestasse um socorro qualquer, enfim, não existia nenhuma expectativa de ajuda espontânea ou motivada. Somente quando já se encontrava exausto e depois de dois dias de distância do lugar onde existira a sua casa, surgiu um tronco de árvore a flutuar.

Justino se atracou a ele como um náufrago em desespero, que de fato era, e continuou o seu percurso. Havia feito a sua parte; esgotara todas as energias. Ultrapassara de longe os seus limites; ou aquilo que julgara ser os seus limites. O acaso, portanto, que se encarregasse do que haveria de vir. De repente surgiram relâmpagos e trovoadas e mais chuvas continuaram a desabar.

A luta entre o homem e as forças da natureza é sempre desigual. Apesar do desequilíbrio que aquele intenta lhe impingir, ela sempre sai, afinal, vitoriosa. Não obstante a insistência com que os humanos procuram se opor às suas leis, a natureza leva sempre a melhor e é a senhora absoluta do seu destino. Atracado ao seu tronco de árvore, Justino Teixeira se sentia cada vez mais ameaçado pela tempestade e pela violência crescente das águas revoltas. A certa altura daquela travessia do nada para o desconhecido ele cochilara um pouco e chegou a sonhar brevemente que a água doce do rio teria se transformado em salgada. Não era sonho. Justino já se encontrava em pleno mar e avistou, ao longe uma nesga de terra. Desesperado, nadou naquela direção e foi ter a uma praia.

Tratava-se de uma ilha deserta - sem qualquer indício de vida vegetal ou animal. A angústia de Justino diante da solidão naquela terra de ninguém, não era menor do que a que sentira durante os minutos em que sua casa fora invadida violentamente pelas águas do rio da minha aldeia. E assim permaneceu até o término dos seus dias.