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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

O Best-Seller

 

Aparício era funcionário da Câmara Municipal da sua terra - uma pequena cidade do interior do Nordeste. Redigia as atas das sessões, escrevinhava petições, a conversa fiada de “suas excelências” os vereadores e, nas horas vagas (que eram quase todas) lutava para “escrever” textos sérios. Tinha, portanto, veleidades literárias. Aliás, “veleidade” não é exatamente o termo adequado, ele tinha certeza absoluta de que seria mesmo um autor famoso, pois escritor ele já achava que era há muito tempo. Quem incutiu isto na cabeça dele, a princípio, foram os pais e os irmãos, mas depois outras pessoas também o faziam. Algumas por puro deboche, a fim de ridicularizá-lo e outras porque tinham um conhecimento medíocre sobre literatura e acreditavam que aquelas escrevinhações ridículas tinham, de fato, muito valor. Para completar, ele não tinha o menor senso de autocrítica.

A princípio escrevia para o único semanário de sua terra, “O Farol de Serro Bravo”, onde as suas matérias sempre eram aceitas porque não existia nada para editar em seu lugar, mas ele entendeu aquilo como uma demonstração da excelência da sua escrita. Eis um pequeno trecho de uma das suas hebdomadárias colunas: “O Brasil é um país muito rico, mas parece pobre por causa da falta de iniciativa dos seus políticos. Suas riquezas são tão incalculáveis que seria impossível calcular. Além do mais, a nossa população é constituída de gente analfabeta porque a sociedade nunca se preocupou em instruí-la convenientemente. Vejam os exemplos da França, da Inglaterra, da Escandinávia, dos Estados Unidos da América e de tantos outras nações do primeiro mundo, onde este descaso para com a educação do povo não ocorre porque são nações civilizadas.” E continuava com esta peça de originalidade e de profunda reflexão sobre as causas e as conseqüências da precariedade intelectiva do seu povo. Prometeu que numa próxima edição discorreria acerca da sua proposta a fim de corrigir tão grave e criminoso descalabro que seria, sobretudo, resultante da “malverçação” dos recursos e do assalto praticado por alguns políticos, aos cofres do “erário público”.

“Muito bem Aparício. Gostei demais da sua crônica no ‘O Farol’ desta semana; segue em frente amigo. Tens um futuro brilhante”, disse no dia seguinte um advogado que morria de rir às suas costas quando se encontrava com outras pessoas maledicentes, que, por sinal, eram o maior “patrimônio” de Serro Bravo. Esta turma de fofoqueiros se reunia todas as noites, a partir das nove horas na Farmácia São Vicente de propriedade do boticário Chico Fortuna. O homem se danou a escrevinhar. Na edição seguinte abordou “com muita propriedade”, segundo disse a ele outro integrante da rodinha da qual fazia parte o tal advogado, a questão indígena. Não resistiu quanto a não inserir uma epígrafe famosa abaixo do nome dele. Mas tinha de ser uma epígrafe em língua estrangeira, por dois motivos: primeiro para dar um cunho de erudição ao artigo; depois porque sabia que os seus conterrâneos mal liam o português, imagine um idioma adventício; assim ficava mais fácil porque ela podia escrever lá o que bem quisesse, atribuir a citação a quem mal entendesse e, então, engabelar os idiotas.


“A Questão Indígena

Por Aparício Montezuma”

Seu nome real era Aparício da Silva, mas um dos membros do “clube da farmácia” falou para ele que este nome era pouco compatível com o do homem de letras que ele já era e com o beletrista famoso que ele um dia, certamente, viria a ser e sugeriu o “Montezuma” no lugar do Da Silva.


«“A Questão Indígena

Por Aparício Montezuma

“Le bonheur est un mythe inventé par le diable pour nous désespérer.”

Gustave Flaubert” “

 

“Discordo completamente de Flaubert”, dizia na primeira frase da sua crônica, como se o fato do mito da felicidade que o diabo teria inventado para desesperar os homens tivesse alguma coisa a ver a ver com a “Questão Indígena”. E prosseguia: “Certamente, a única explicação para o que ele afirma é o fato de que na França nunca existiram índios, exceto aqueles raros tão covardemente aprisionados e levados para lá, à força, por Villeigagnon. Aliás, nunca entendi por que o povo europeu se arvora no direito de dar palpites sobre a nossa política indígena se todos, inclusive os seus intelectuais, são completamente ignaros do que se passa com os nossos silvícolas

A crônica continuava malhando grandes nomes da Antropologia européia, entre estes, Claude Lévi-Strauss, Marcel Mauss, Émile Durkheim e Bronislaw Malinowski, nomes estes que ele pescou numa enciclopédia, mas de cujas obras e biografias não tinha a mínima noção. No dia seguinte foi cumprimentadíssimo. A maioria destes louvores partia de gente inocente que, de fato, se deixara impressionar pela sua falsa erudição, mas quando a “curriola” maledicente se reuniu naquela noite na farmácia do Chico Fortuna, as gargalhadas ecoaram até às altas horas da madrugada.

Entretanto, Aparício estava absolutamente convencido do seu valor literário. Certo dia alguém disse para ele que nenhum escritor digno deste nome poderia deixar de ter um livro publicado. O homem incutiu isto na cabeça a ponto de se tornar um sintoma obsessivo-compulsivo.

Toda idéia fixa é ridícula, perigosa e de difícil extirpação. Mas quando uma pessoa põe na cabeça que é artista e, principalmente, escritor tal idéia não acaba jamais; vai com ela para a sepultura. Foi precisamente o que aconteceu ao ”escritor” Aparício Montezuma. Além da sua própria obsessão, tinha a incentivá-lo a família, os amigos que acreditavam mesmo na sua “literatura” e os gaiatos do “clube da farmácia”. O homem só pensava nisto. Fez daquela idéia o seu café da manhã, o seu almoço, o seu jantar, a sua ceia e o próprio ar que respirava. Como não tinha dinheiro para editar a sua “obra prima” passou a assediar o prefeito, desde a segunda até o domingo, das sete da manhã à meia noite durante meses a fio. O chefe da edilidade não sabia mais o que fazer com ele. Até que um dia não suportando mais, teve de desviar uns recursos da merenda escolar a fim de financiar o ”tratado” do “escritor”, seu cabo eleitoral.

Aparício procurou, através da Internet, um autor conhecido para prefaciar o seu “compêndio” e teve a incrível sorte de encontrar uma escritora razoável com quem entrou em contato. Esta, como nunca tinha visto seu nome impresso num papel, também se deslumbrou. Ajuntaram a vontade de mastigar com a vontade de engolir. O “livro” foi, enfim, editado, com uma tiragem de quinhentos exemplares, tendo sido a verba contabilizada como se fosse destinada à compra de material didático. Como havia poucos alunos para tanto papel, cada um deles recebeu, no mínimo, três exemplares. Era papel demais. E o pior: não havia espaço para armazená-los. Foi feito de tudo para “esgotar” a edição. Ninguém queria mais receber tantos “livros”. Os pais dos alunos acabaram utilizando os exemplares restantes à guisa de papel higiênico. Só assim a obra do “escritor” Aparício Montezuma ficou, de fato, “esgotada”, embora tivesse de ser requerido o esforço conjunto de todos os encanadores do lugar para dar um empurrãozinho.