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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

"O escritor"

 

De um modo ou de outro, todos os vícios capitais dão algum prazer ao pecador, exceto a inveja. O soberbo goza a sua vaidade ou o seu orgulho, quer possua ou não as qualidades que se auto-atribui. O avaro não chega a usufruir a sua fortuna, porém o simples prazer de a possuir não deixa de ser um ideal concretizado. O luxurioso é, sem dúvida, aquele que imediatamente melhor se beneficia do seu pecado, porque, dos prazeres materiais, é o carnal aquele que mais gratifica o pecador. O irado, conquanto sofra mais tarde as conseqüências da sua ira, não deixa de extravasar uma violenta emoção que o estava a consumir e, portanto, pelo menos em curto prazo, sentirá um certo alívio. O preguiçoso sobrevive, de uma maneira ou de outra, sem o menor esforço físico ou mental. Todavia, o invejoso sofre para sempre os gravames e as seqüelas do seu pecado e, paradoxalmente, o personagem alvo da sua inveja é, na verdade, o verdadeiro beneficiário. Afinal, se há motivos para despertar inveja, obviamente há qualidades a serem invejadas.

Alberto Camurupim sentia uma vontade louca de escrever. Passava horas, manhãs, dias inteiros debruçado sobre a sua Remington, último modelo, tentando redigir uma página que fosse. Mas nunca passou do título. Quando tentava esboçar as primeiras frases, estas não se materializavam, não tinham nexo algum, eram sentenças, no mínimo, ridículas, cheias de solecismos, cacófatos, lugares comuns. “Quando o sol raiou...” E não saía mais nada. Retirava a folha; amarrotava-a, punha outra. “Quando os primeiras réstias do sol d’aurora penetraram no meu quarto, pensei na mulher querida e vi do quanto sou capaz por amar ela...” Somente depois de muito ler e reler esta sentença, despertou para o cacófato e para o erro gramatical na colocação do pronome. Retirou o papel, amarfanhou-o com raiva e pensou em tentar mais uma vez.

Depois achou que tivera uma excelente idéia: “Como não pensei nisto antes? Por que não citar um trecho no original do ‘Romeu e Julieta’ na epígrafe?” Além de achar que estaria a salvo de erros, teria a chancela de ninguém menos do que o maior poeta de todos os tempos. Mas não sabia os versos de cor. Procurou na estante, abriu gavetas, desarrumou livros durante mais duas horas e nada de encontrar o trecho do vate de Stratford-on-Avon. Decidiu, então, citá-lo de memória. Os versos que ele escutara alguém declamar num sarau onde esteve de penetra eram estes: “But soft! What light throug wonder window breaks! It’s the east, and Juliet is the sun!” Mas o que saiu foi isto: “Bala soft! What leite wonder o índio disse! Isto é a Julieta my son!” Achou que estava muito bom. Afinal de contas, pouquíssimas pessoas em sua cidade liam mesmo qualquer coisa em inglês. Até que enfim conseguira produzir algo digno de um escritor e já imaginava o seu texto, com o nome dele acima do de William Shakespeare, impresso no maior jornal da sua terra. Mas precisava de algo mais original para o texto em si. Estivera lendo Machado de Assis e o impressionou particularmente esta frase: “Não imagina como eu aborreço as cópias. Fazer o que muita gente faz, que mérito há nisso?” Matutou durante umas duas horas e então uma idéia luminosa apareceu. “Por que nasci homem? Que circunstância aleatória teria feito de mim um ser humano e não uma barata? Talvez sendo um inseto minha vida tivesse mais sentido...” Excelente! Cogitou. Com um pouco mais de imaginação estarei construindo uma imagem originalíssima de que somente Kafka seria capaz.

Gastou o resto daquela tarde, todo o dia seguinte e parte da noite a pensar, a queimar as pestanas, a buscar inspiração. Ao se recolher estava exausto. E as suas malogradas tentativas não passaram daquilo mesmo. Sobreveio-lhe então uma frustração intensa. Um profundo sentimento de autopiedade e de revolta contra escritores que, segundo ele, não teriam a metade do seu talento. Jurou se vingar e concluiu que a sua vingança não poderia jamais chamar atenção para a sua inveja. Teria de ser sutil, respeitável, elegante. Teria de se concretizar sob a forma de uma imparcial Crítica Literária.

Não suportou esperar que “as primeiras réstias do sol d’aurora penetrassem no seu quarto.” Escolheu, ao acaso, um texto numa página literária de um jornal e matraqueou na Remington: “Falsos Escritores: Uma Praga Nacional” por Alberto Camurupim. “Certos indivíduos petulantes se metem a escrever sem o menor pudor; sem a mínima consciência de que estão a cair no ridículo. Atentem para este texto. Para início de conversa o autor escolheu um título macabro, espalhafatoso, certamente por acreditar que uma pretensa originalidade atraísse a atenção dos leitores. Pois o título desta matéria digna do pior pasquim é nada menos que ‘Cemitérios’. E começa com esta frase óbvia, digna de uma ‘obviedade ululante’, parodiando o nosso Nelson Rodrigues e de uma pasmaceira acaciana, parafraseando o genial Eça de Queiroz. ‘“Nada conheço mais lúgubre do que a cidade dos mortos ao pé do Cairo, na base de Mokattam. É um cemitério”.’ Ora, não contente com a obviedade já referida, o escrevinhadorzinho ainda tenta se passar por “globetroter”. Quer dizer que já esteve no Cairo. Que conhece o Cairo. Quanta petulância, presunção, cabotinismo! Talvez nunca tenha posto os seus pés além dos arredores do lugar onde nasceu. Certamente ele quer se passar por viajado por ouvir dizerem que ser viajado ‘é mais importante do que ser culto, mais interessante do que ser inteligente e quase tão bacana quanto ser rico.’

Prossegue o nosso ‘eminente’ escrivão de viagens imaginárias, letras mortas e pretensões vivíssimas: ‘As novas pedras tumulares, brancas e lisas, assentam ao pé das velhas sepulturas históricas dos Mamelucos, dos Xeques respeitados na tradição, e dos Príncipes.’ O que será que este panfletário prepotente de aldeia quer dizer? Se acaso as novas pedras tumulares não fossem brancas e nem lisas fariam alguma diferença? Apenas uma mente estéril, ociosa e com a imaginação de um símio seria capaz de criar imagens tão insípidas e insignificantes. Mas isto não passa de sinal dos novos tempos. Hoje em dia, todo pé de chinelo que mal sabe desenhar o próprio nome, se diz escritor. Ninguém mais neste país sabe fazer outra coisa. Isto aqui virou uma nação de ‘literatos’ que pensam ser o ofício de escrever um passatempo de vagabundos ou uma vulgaridade. Todavia, o que chama mais atenção em ‘Cemitérios’ é a tragicomédia da conclusão. Demais das obviedades já mencionadas no início deste texto, surgem também palavras incompatíveis umas com as outras. Os substantivos são inimigos figadais dos adjetivos: ‘beleza bárbara’, ‘violências imóveis’, e o mais hilário de tudo, ‘o peso do sol’. Seria cômico, se não fosse da mais pura imbecilidade. Vejam o trecho: ‘“Tudo ali é impenetrável, quieto, mudo, eterno: o ar, o céu, os túmulos. (...) E tudo está morto e imóvel como uma grande violência (SIC). (...) Caminhamos calados sob o peso do sol”’. Presumo que seria insultar a inteligência dos leitores se me metesse a comentar estes disparates.”

Camurupim retirou o papel da máquina, releu, corrigiu pequenos erros de pontuação, assinou e levou ao jornal. Como este não aceitava publicar a menos que se tratasse de matéria paga, ele despendeu uma fortuna, mas exigira que o seu texto saísse na primeira página com o título da matéria e o seu nome em destaque. Não dormiu naquela noite. Esperou de olhos arregalados que as “primeiras réstias do sol d’aurora penetrassem no seu quarto”. Levantou-se ainda com escuro a fim de apanhar com o porteiro do prédio, o seu exemplar do “Jornal Do Comércio”. Acendeu a luz do abajur e, casualmente, viu o recorte da página onde estava estampado o “Cemitérios”, por ele tão duramente criticado. Só então tomou conhecimento do nome do autor, inserido em letras miúdas no final do texto. Tratava-se de ninguém menos do que Eça de Queiroz.