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Jornal do Conto

 

 

Raymundo Silveira


 

O prêmio da loteria

 

“Madalena, ou você arranja um lugar onde pôr este velho, ou quem vai embora daqui sou eu!” “Mas o que posso fazer? É meu pai. Pensa que também não me irrita a presença dele dentro desta casa? Quem limpa as beiradas do vaso que ele molha todo sou eu; tenho medo que qualquer dia ele mije no sofá que pretendo trocar no final deste ano e o dono da loja não o queira receber como entrada. Além do mais, quem lava e passa a roupa dele sou eu. Tá certo que é somente uma calça e uma camisa, mas tem a maldita cueca que só fede a mijo; não tenho mais paciência nem saco pra isto. Será que não encontraremos um asilo de velhos...” “Para eu pagar? Querida, não estou agüentando nem a despesa desta maldita casa cara, comprar comida e remédio pra gente que não é nada minha, imagine pagar mensalidade de asilos. E mesmo que fosse meu próprio pai, eu...”

Só suportou escutar até aí. Tapou os ouvidos para não ouvir o resto e se retirou para o seu quarto que antes era o de empregadas. Tinha setenta e cinco anos, era viúvo e recebia um benefício da Previdência Social no valor de um salário mínimo. Entrou no banheiro, trancou-se por dentro e chorou muito, tendo antes o cuidado de retirar as dentaduras e pôr na boca um lenço já muito usado e encardido a fim de abafar os soluços e não ensopar com a sua baba a ponta da toalha branca e limpinha que a filha havia trocado há pouco e de economizar papel higiênico.

Ao se deitar já havia liberado a maior carga de depressão e angústia causada pela humilhação e se preparou para passar a noite em claro, diria melhor no escuro, pois já ouvira o genro reclamar do “absurdo da conta de energia elétrica”. Todo o passado da filha única foi-lhe projetado na memória. O dia em que nascera, as madrugadas em claro quando se encontrava doente, as festas de aniversário, os Natais, a primeira ida à escola (quando chorou tanto que foi obrigado a ir buscá-la de volta), os folguedos juninos, os parques de diversões, os circos, os teatros mambembes, a chegada da puberdade, os namoros, o noivado, o casamento, o nascimento do seu neto. Sentiu vontade de chorar mais, porém não havia lágrimas.

Esforçou-se desesperadamente a fim de encontrar um meio de superar, pelo menos em parte, aquele vexame da conversa dela com o marido. Subitamente se lembrou de um pequeno resíduo do seu fundo de garantia que estava guardando no Banco para uma emergência. Foi o único consolo que teve. Iria sacar aquele dinheiro e doar ao neto, um menino que completaria catorze anos no próximo sábado, pois cogitou que se oferecesse diretamente à filha esta talvez interpretasse como se fosse uma tentativa de pagamento pela sua hospedagem e isto pudesse irritá-la ainda mais. Levantou-se, como de costume, às sete da manhã, tomou o café, disse a ela que ia visitar um amigo e saiu de casa, embora soubesse que o Banco só abriria às dez.

Sem saber bem para onde ir, decidiu visitar antes o túmulo da esposa, assim além de evitar o tédio, aproveitaria para “conversar” com ela e desabafar a sua mágoa. O cemitério ficava a cerca de seis quilômetros de onde estava; mesmo assim resolveu ir a pé, pois além de ajudar a passar o tempo economizaria a passagem do coletivo. O túmulo pertencia ao genro e somente ela estava lá enterrada desde aquela triste tarde de 1968 – há mais de 15 anos, portanto. Ele só tinha estado ali outra vez, no Dia de Finados de 1973. Entrou pelo portão principal e se dirigiu, sem nenhuma hesitação, para o túmulo da mulher. Lá encontrou um letreiro: “Este jazigo está vazio. Os restos mortais que nele se encontravam sepultados foram trasladados para um ossuário numa vala comum, em virtude da falta de pagamento da taxa de manutenção...”. O velho só suportou ler até aí. Saiu dali trêmulo, quase enlouquecido pela dor e se dirigiu ao setor da administração cujo único funcionário lhe indicou a tal vala comum. Sentou numa pedra que havia à margem da sepultura coletiva, chorou mais do que na noite anterior; rezou, depois disse palavras sem nenhuma coerência e saiu.

Foi ao Banco, sacou o seu fgts, e saiu para uma casa lotérica onde ainda trabalhava, para complementar a aposentadoria, um antigo companheiro de profissão; conversou um pouco com este e voltou para casa pouco antes da hora do almoço. À mesa não disse nada. “O que houve pai? Por que está tão triste?” “Nada, minha filha é que me sinto um pouco resfriado e sempre fico com esta moleza no corpo quando estou assim”. “Pois cuidado para não espirrar à mesa ou contaminar qualquer objeto, pois se algum de nós pegar esta gripe vai ser um ‘“Deus nos acuda”’. Já estamos tendo problemas e despesas demais”. O genro não estava. Raramente se sentava à mesa junto com o sogro. Este, geralmente, comia as suas refeições sozinho, antes ou depois do resto da família.

Pouco mais tarde chamou o neto ao seu quarto. “O que é vô?” “Filho, tome este envelope e guarde. Talvez fosse melhor pedir a uma pessoa para depositar na poupança. Mas escute bem: se alguém quiser saber como o conseguiu, diga que ganhou na loteria”. “Posso pedir à mamãe para fazer isto pra mim?” “Sim, desde que não diga que fui eu que lhe dei”. “E se ela insistir e quiser saber de onde tirei este dinheiro?” “Vá ao ‘Center UM’, procure a casa lotérica e fale com o ‘seu’ Lourival. É um velho mais ou menos da minha idade. Ele irá garantir que foi lá onde você ganhou. Aliás, foi lá onde eu ganhei mesmo, só que não estou precisando de dinheiro e preferi dar a você como presente de aniversário”. “Ta bom, vô, “brigado”. Tem certeza que num vai precisar desse dinheiro nem pro seu enterro?” E se riu.

“Pai, que história é essa de dar dinheiro ao Marquinho?” “Quê? Ele disse isto?” “Claro que disse, ainda tentou me enganar com uma história de loteria e ‘seu Lourival’. Fui conferir. Seu Lourival morreu ontem. Ninguém sabia de prêmio algum que o Marquinho tenha ganhado. Chamei-o para as “conversas” e ele teve de confessar. Tome o seu dinheiro. Guarde-o. Vai precisar dele no Abrigo”.