Nelson de Oliveira
Açude para irrigar uma vida
O olhar empático em Infância de Graciliano Ramos
Resumo
A empatia e visualidade como método memorialístico no Infância de
Graciliano Ramos.
Abstract
Empathy and vision as a memoir method in Gaciliano Ramos’ Infância
Há livros que nos ajudam literalmente a enxergar melhor. Dos
escritos no Nordeste poucos dispõem dessa qualidade tão inata quanto
Infância de Graciliano Ramos.
Trata-se de um vasto inventário de Nordeste. Um livro em que a
narração convoca e objetos dizem presente. Ou como diz Jacques
Maritain há coisas que nos cercam e vê-las é conhecer-nos (Maritain:
1953, 3). Essas coisas, esses objetos, desvelados, traduzem, em boa
medida, os usos e costumes de uma região arcaica e orgulhosa –
então, como agora, em franca decadência. Agônica. Como é nascer e
viver a primeira infância num lugar assim? Como é ter de crescer
nessa zona do agrião? E, no entanto, à época em que foi publicado,
1945, ainda era possível surgir nessa região da agonia um escritor
que não só tomasse para si essa tarefa mas também a empreendesse com
tamanha dignidade de meios, que a transformasse em um grande livro
de memórias.
Um par de qualidades faz de Infância um livro único. De prima, a
empatia de Graciliano diante de plantas, bichos, gentes. Mas também
a exuberante visualidade do livro e o modo como ela se encorpa. É
como se o autor partisse de um caleidoscópio para aos poucos fixar
um painel de digital nitidez. E há ainda o episódio em que o futuro
escritor é acometido por uma cegueira temporária – com toda sua
carga alegórica. Assim, Infância constitui um desses documentos
pessoais que falam por todo um povo. Não é à toa que tenha sido um
dos livros brasileiros que mais cativou a poeta americana Elisabeth
Bishop, como de resto ela comenta em uma carta a Ashley Brown:
Infância foi um dos primeiros livros que li – com grande dificuldade
– nos meus primeiros anos no Brasil. Continuo achando que é um livro
maravilhoso, e não entendo como você não conseguiu publicá-lo nos
Estados Unidos. (BISHOP: 1995, 693)
Em Infância, método de Graciliano é o da empatia. No livro, está
muito bem sublinhada a indigência afetiva que cercava uma criança
sensível e curiosa entre adultos excessivamente escolados em
tradições rijas que se perdem nas sombras do tempo. O meio é tão
inóspito quanto ameaçador. E, da leitura, desde seu início, emerge
uma certa sordidez de ambiente. Essa sordidez é ubíqua. Está no
catarro e nos piolhos das crianças. Nos lençóis sujos e nas fraldas
encardidas. Em hábitos higiênicos precários, ineficientes e pouco
difundidos. Nada há no texto que suavize isso – ou ao contrário o
exagere. Mas, ao fim de tudo, o narrador está longe de condenar essa
vida ríspida e agreste. Ou essa sordidez que não é menos espiritual.
Lendo trajetórias análogas a de Infância, como a de Lavoura Arcaica,
se tem bem o espaço que medeia entre diferentes gerações, regiões e
ancestralidades de prosadores provindos do Brasil rural. Se a de
Nassar é sombria num mundo exuberante, a de Graciliano é exuberante
num mundo sombrio. Infância nos entrega a medida do perdão e da
renúncia necessários para fazer emergir o açude de dignidade capaz
de regar uma vida. Há nela um lastro de sacrifício. Ao passo que em
Lavoura Arcaica, do contrário, nos deparamos com a vitimização, o
rancor, e o desespero capazes de esturricá-lo em nome de uma leitura
do mundo decalcada ou rente a uma idéia: a psicanálise:
A construção da memória do passado se desdobra na construção de uma
atenção ativa, que permite intervir no presente histórico. [...] Ao
refletir demoradamente sobre o passado, ao cuidar da memória dos
mortos, ao reivindicar com indignação ‘nunca mais isso’, corre-se o
risco de cair numa discussão ‘politicamente correta’ ‘entre belas
almas’ ou ‘professores de boa vontade’, cujo mérito moral seria,
assim, afirmado e assegurado. (GAGNEBIN: 2000, 102)
Do começo difuso como a recordação de uma louça vidrada ao final em
que, com olhos menos dispersos, o menino é capaz de orientar-se
entre livros, vai uma viagem e tanto nas letras de Graciliano. Uma
viagem do olhar. De um dos avós, que confeccionava cestas e urupemas
bastante sóbrias, não porque as estimasse, mas porque eram o meio de
expressão que lhe parecia mais razoável [RAMOS: s/d, 19]. Graciliano
parece tirar a lição para seu próprio texto. É raro um livro em que
adultos surjam assim tão altos, inatingíveis, cruéis, mas que por
igual não sejam condenados ou proscritos, apenas estejam lá com sua
altura e certa torpeza. E também raro um em que os pais do
memorialista sejam expostos com uma sinceridade tão crua.
A mãe era desgraciosa – feia mesmo –, neurastênica, enfermiça,
excessivamente crédula. O pai, grosseiro, colérico, ameaçador,
intratável. Ambos são praticamente desprovidos de bom-senso ou
qualquer noção mais estável de justiça. Mas, de outra forma também
estão sob os olhos de um menino. E o tocante, aqui, é que mesmo ao
compor esses retratos pouco lisonjeiros, o modo como Graciliano os
enforma não se afasta de amor. Ou do humor. Humor que também não se
ausenta do livro. Num raro momento de ousadia, por exemplo, o
menino, tímido, arredio, deixa-se, no entrecho de uma visita,
embriagar-se pelo licor oferecido pelas amigas da mãe, tornando-se
expansivo e íntimo. Noutro passo, pasmo diante de uma intrincada
sintaxe, tão pouco adequada para uma cartilha – fala pouco e bem,
ter-te-ão por alguém – o menino indaga à irmã mais velha:
–Mocinha, quem é o Terteão? [RAMOS: s/d, 99]
Graciliano escreve com muitos verbos. Sua prosa é infestada deles. E
em sua maioria esses verbos possuem uma elegância justa. A justeza
dessa elegância advém do fato desses verbos ressonarem uma certa
derivação proposicional embutida: encolher, aproximar, diferir,
desforrar, esgueirar, embeber, avivar, etc. Tudo se expande e se
retrai. Verbos assim agregam uma viva impressão de movimento. E o
mundo gira:
A preguiça, chave da pobreza, e outros conceitos ponderosos lançados
na última folha da carta empaparam-se de suor, decompuseram-se,
manchando-me os dedos de tinta – e durante alguns dias pude mexer-me
no quintal, ver a rua, pisar na calçada, associar-me aos filhos de
Teotoninho Sabiá. Inquietava-me, na verdade. [Ramos: s/d, 101]
Seu registro de linguagem tem um travo ibérico e ligeiramente
solene. E isso é alicerçado sobretudo pela colocação do pronome em
ênclise: espantava-me de haver nascido ali de supetão um mamoeiro
carregado de frutos.
Não menos tocante é essa simultaneidade entre a descoberta do mundo
e a da palavra. O caminho é uno e não pode ser vendido
separadamente. E o ritmo das palavras começa a surpreender muito
cedo o menino. São elas os objetos mais aptos para traduzi-lo, a
despeito de uma certa opacidade. Como no episódio em que ele e um
certo moleque, agregado da casa paterna, se põem a especular sobre
quem será um tal cavaleiro que assoma ao longe. O moleque aposta em:
–Seu Ferreira de gibão, no cavalo de seu Afro. [Ramos,: s/d, 77]
O menino discorda. Mediante um exercício de dedução, discorda. E, de
fato, estava com a razão. Não se tratava, no caso, de seu avô no
cavalo de Seu Afro. Mas a música que há no fraseado do moleque
fica-lhe ressonando nos ouvidos. Aquelas palavras unidas para
traduzir uma realidade inadequada logo ganham uma referencialidade
própria e suplementar. Carregam na verdade uma densa e estranha
simetria, que ele não dá conta de explicar: Seu Ferreira de gibão,
no cavalo de seu Afro, sai remoendo. A frase é de fato muito
musical. Na verdade, duas redondilhas perfeitas, cheias de
assonâncias e rimas internas. De volta para casa, segue-a martelando
inúmeras vezes. E mesmo depois de ser advertido pela mãe, não
abandona o matraquear. Prossegue com o exercício: acabei dividindo a
frase em dois versos que a princípio declamei, e depois cantei.
[Ramos: s/d, 77]
Também a memória evade-se por um inventário de coisas e seres que
não tem mais fim – (do tanto que são Nordeste e outros tempos):
alpercatas, arapucas, tabuleiros de gamão, picuás, bicas, esteiras,
imagens bentas, rolos de fumo, abanos, litografias de santos,
candeeiros, cachimbos de barro, trempes, carneiros de estimação,
cavalos-do-cão, papangus, lavadeiras, beatas, vaqueiros, vigários,
etc. E, ainda assim, nada é vendido no balcão do exótico. E seu
vocabulário é tão preciso que se fica sabendo que ‘quinca’ é o nome
exato em português (do Nordeste, da Paraíba) para designar alguém
casado com uma professora.
Essa precisão de vocabulário responde em parte pelo recorte solar do
livro. Tudo está ali, nítido como num roteiro de filme. E porque
Graciliano joga com tamanha precisão como o acervo da língua, as
cenas e os entes não são postos num tribunal mas num fluxo
semelhante ao do tempo, porque espacializados com invejável senso de
cinema. A própria narração, desarticulada no começo, vai ganhando
força e eloqüência ao longo dos capítulos. Como os ossos e músculos,
em crescimento, dotam um corpo de equilíbrio. Ou como olhos que
antes soletravam, confusos em cartilhas, depois lêem/escrevem
romances.
A memorialística de Graciliano em Infância, pela densidade de sua
busca, convoca testemunho. Pode ser aproximada, sem esforço, de
alguns clássicos do gênero no sec. XX – como A Língua Absolvida de
Elias Canetti ou É isto um homem? de Primo Levi. Infância foi
escrito na medida para contraler o Nordeste. Seu poder de imagem e
fabulação inverte a balança: em vez de lê-lo, somos lidos por ele.
Em livros assim flui uma vida.
BISHOP, Elizabeth, Uma Arte (tradução de Paulo
Henriques Britto), Companhia das Letras, São Paulo, 1995
MARITAIN, Jacques, Creative Intuition in Art and Poetry, Meridian
Books, New York, 1953
RAMOS, Graciliano, Infância, Ed. Record, São Paulo e Rio de janeiro,
s/d
GAGNEBIN, Jeanne Marie, “Palavras para Hurbinek”, in Catástrofe e
Representação, (organizado por Arthur Nestrovski e Márcio
Seligmann-Silva), Escuta, São Paulo, 2000
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