Ruy Vasconcelos
Pequena conversa sobre tom e
tradução
Aspectos da tradução de poesia do inglês para o português: os casos
específicos de Elisabeth Bishop e Robert Creeley
Resumo:
Breve comentário introdutório que antepõe e comenta as principais
teorias contemporâneas de tradução de poesia. Breve excurso sobre o
caráter dos idiomas inglês (americano) e português (brasileiro),
especialmente no que tange à diferença de registros do oral para o
escrito. Questões tais como toponímia, referências históricas,
localismos, idioletismos, desconstrução e flutuações de modas
acadêmicas também estão na ordem do dia - assim como a estilização
do coloquial pelo literário - e girando em torno da questão central:
o que é o tom de um poema? Segue-se uma análise de caso de traduções
de poemas - editadas comercialmente no Brasil - de Elisabeth Bishop
e de Robert Creeley. A parcial conclusão é a de que a questão do tom
- cuja definição é circulada em fuso e sucessivas paráfrases ao
longo do ensaio - compõem um dos mais indispensáveis índices para
aferir distâncias e perspectivar dimensões sobre a tarefa ( ou
proeza) da tradução - ainda que a maioria dos tradutores se abstenha
de tecer teoria a respeito.
“ne placidis coeant immitia”
[“para que não se mesclem ferocidades e doçuras”]
Horácio
Homero, que compôs em grego - e ao que se sabe jamais traduziu, ou
segundo certa hipótese, sequer escreveu1 - foi, não obstante, também
o primeiro grande tradutor do Ocidente. Do fato, nos dá testemunho o
pseudo-Longino. O autor Do Sublime, à certa altura, nos diz que, na
Ilíada, o bardo cego fez aos homens parecerem deuses e vice-versa.
Ou seja, Longino entende a tarefa de Homero como uma sorte de
tradução: do comportamento divino, no humano; do comportamento
humano, no divino: “fez dos homens que foram à Tróia, à medida que
pôde, deuses, e dos deuses fez homens. Mas a nós, na infelicidade,
resta um refúgio a nossos males; é a morte; enquanto os deuses, não
foi tanto sua natureza quanto sua miséria que Homero fez eterna”.2
Essa miséria eterna também é a do tradutor. E, em especial, a do
tradutor de poesia. Ou seja, aquele que se propõem uma tarefa já, de
antemão e renovadamente, maldita: reproduzir em outro idioma os ecos
do indizível.
A questão da tradução está na ordem do dia. E a questão da tradução
de poesia em seu centro mais hermético. Ela está sucessivamente
posta, por diferentes prismas, na obra dos principais filósofos do
século que recém-expirou. De Heiddeger a Benjamin, de Wittgenstein a
Derrida, todos se debruçaram sobre a questão. E naturalmente esses
debruços projetaram, desde as luzes, sombras de diferentes
intensidades e matizes sob o pano e do teatro-chinês da tradução.
No seu corpo-a-corpo com a tradição metafísica, Heiddeger chega ao
paroxismo de propor todo o pensamento gestado no Ocidente nos
últimos dois milênios como uma má tradução de conceitos do grego
pré-clássico para o latim. Uma tal que adstringiu-lhe seiva,
ressecou-lhe vigor. Algo que já estava prenunciado em Nietzsche.
Ainda nessa senda seria a língua alemã aquele filtro nobre que mais
se adequa à tradução do grego arcaico e que, portanto, é capaz de
ressoná-lo na pós-modernidade e exclusivamente. Há uma instância de
humour percorrendo esse reivindicado exclusivismo.
Em Wittgenstein, a questão da tradução é muito mais implícita mas
não menos decisiva e anti-exclusivizante. Ela se autoriza na
analítica do emprego de certas expressões e jargões cotidianos (
chamados por ele de “jogos de linguagem”) deslocados de seus
respectivos eixos e sinalizando para modalidades de tradução, aporia
e exílio dentro de uma mesma língua. De resto, o próprio pensamento
de Wittgenstein enforma-se no divisor de águas de dois idiomas: o
alemão de sua infância e primeira juventude e leituras, e o inglês
de sua formação acadêmica e ulterior exílio. Mas também na linha
delicada e lábil que compõem as tradições de pensamento judaica e
cristã.
Benjamin foi, sem sombra de hesito, o mais ressonante teórico da
tradução do século que se foi. Seu ensaio ‘A Tarefa do Tradutor’ (
que talvez mais acertadamente devesse ser traduzido - preservando a
densa ambigüidade do termo alemão Aufgabe (tarefa mas
simultaneamente vexame) - por ‘A Proeza do Tradutor’) não conhece
rival em densidade e exegeses. Nele Benjamin reivindica a tradução
como forma ou gênero literário independente e próprio. E o modo como
a autonomiza - apesar de pontos polêmicos e não raro mal-entendidos
(como, por ilustração, a afirmação da intradutibilidade da tradução)
- é, em simultâneo, denso, convincente e plástico.
Quanto a Derrida, varia algumas claves de Benjamin com certo tempero
próprio. Reivindica - possivelmente em equívoco - a tradução da
tradução (talvez por não atentar para o quanto há de metafórico
nesse interdito de Benjamin - que encara tradução sempre como uma
experiência modal, como uma relação, como uma tarefa única que se
esgota no próprio embate do traduzir). E, em especial, tece algumas
considerações detalhísticas de importância: a questão da resistência
dos nomes próprios, a reinscrição da metafísica, a “traduction
anasémique”, etc.
Como vemos, há muitos roteiros por onde derivar e descontinuar
conceitos. Há muitas claves sobre as quais recompor e divagar. E, no
entando, em ambos os lados do Atlântico, o idioma europeu que
primeiro aventurou a globalização na modernidade não produziu um só
teórico de verdadeiro renome no campo da tradução.
No caso brasileiro, justiça a tempo, há, em atenuância, a ênfase
posta na tradução pelos poetas do grupo concretista de São Paulo,
epígonos de Pound. Os concretistas produziram um prolífico conjunto
de boas traduções e apresentaram um elenco de autores - até então
inéditos - à língua. Houve um arejamento. Uma abertura para tudo que
não vinha da tradição francesa mais castiça. Mas ensaios,
investimento em criação de conceito são - não obstante importantes e
reveladores - episódicos. Aparte não haver uma teoria propriamente
inovadora. Uma que já não estivesse pré-anunciada em rasgos e traços
por Pound de uma das margens e, da outra, Oswald de Andrade. Além do
que, a antropofagia de Andrade sequer repõem a questão da tradução
entre suas primeiras tarefas (uma omissão de todo grave e muito
pouco comentada).
No caso português, de mais ressonante, há Pessoa - sempre ele - como
poeta bilingüe e exclamando considerações sobre tradução tão
graciosas quanto epigrâmicas e eventuais. Mas, de outro modo, nenhum
outro caso de voz ressonante além-fronteiras. E há muitos aspectos
específicos e relevantes só tangencialmente tocados. Em especial, os
espectros com os quais se depara o tradutor de ficção e,
particularmente o de poesia, para o português. Algo como a distância
que não se pode medir a gritos entre o português falado e o escrito
- especialmente no Brasil e em África; mas também a musicalidade e
caráter vogal do idioma que ameaça transformar em plena música
projetos de poesia tão áridos e aliterativos quanto os de um Gerard
Manley Hopkins ou de um Seamus Heaney.
E são raros os bons tradutores. Da cepa mais honesta, daqueles que
procuram tirar suas conclusões a partir dos procedimentos adotados
no próprio corpo a corpo com a tarefa - ou proeza. Não possuímos
muitos. Daqueles que não desprezam o que pode assomar de
surpreendente nessa empiria. Paulo Rónai foi um deles. Mas, no
geral, a linhagem em que se possa aperceber os que buscaram
identificar questões mais recorrentes na tradução de outros idiomas
especificamente para o português é bastante escassa
Quer dizer, antes de se tirar os noves fora em prol de uma
sistematização mais geral e ordenada sequer nos empenhamos até o
momento em reconhecer os noves. E os noves, aqui, seriam
precisamente esses pequenos empecilhos práticos - redundando em
ganhos e perdas - com os quais o tradutor se defronta antes de repor
aos olhos do leitor uma tradução editada comercialmente.
Entre esses “empecilhos”, um que salta à vista - e, melhor, também
ao ouvido - trata-se do que diz respeito a tom.
E o que seria o tom de um poema? Seria mais que o registro em que
está posto. Um seu aspecto mais abstrato, uma certa aproximação do
eixo (ou contexto) exato no qual esse poema clama por ser ouvido.
Sua voz. Sua voz mais íntima. Mas voz em conversa, em movimento. Não
o matiz da voz - e isso estaria mais para registro. Não uma amostra
dela. Mas ela em conversação. Se o registro varia entre, digamos,
uma resenha, um solilóquio, uma onomatopéia, um canção de bêbados,
um refrão de jingle, uma tese acadêmica, um coro de torcida de
futebol, rimas para ninar - ou mesmo tudo isso junto, alternando, no
entrecho do mesmo poema -, o tom seria aquele algo mais indefinível
em que somente nele o poema pode ser expresso em sua justeza, em seu
segredo mais contido. O tom seria a mais forte insinuação de leitura
de um poema. Sua melhor forma de ser conversado. Algo que se ouve
mesmo quando não se lê em voz alta. E isso é muito mais abstrato (e,
portanto, menos teleológico) que seu registro - este sim, algo mais
palpável e roçando esteriótipos.
Mas o tom também se constrói expressamente pela ordem das palavras.
Talvez essa ordem seja mesmo o mais forte esteio de tom, em termos
de palavra escrita - sem suporte de voz, de gesto. O que implica
pensar também que sintaxe - especialmente em poesia - é algo menos
cerebral do que imagina o senso-comum. E não é acaso que Benjamin
pague tanta importância à ordem das palavras quando trata da
tradução. Ele nos garante mesmo que a limpidez da verdadeira
tradução “não vela o original, não tolda sua luz, mas permite à
língua pura, como se recomposta em si, rebrilhar sobre o original
ainda mais intensa. Isto é alcançado, sobretudo, pela versão literal
da sintaxe, o que prova ser as palavras em vez das sentenças o
primeiro elemento do tradutor. Pois se a sentença é o muro ante a
linguagem do original, a literalidade é o arco”.3
“Se alguém deseja mover-se para uma experiência além, é preciso a
sintaxe, uma nova sintaxe. Uma nova sintaxe é uma nova cadência de
desvelamento, uma nova cadência de lógica, uma nova cadência de
música. ‘Uma nova estrutura de espaço’”4, nos informa o poeta
norte-americano George Oppen, numa frase em que cadências e tons - a
partir da mesma radicação musical - talvez queiram dizer tão-só e a
mesma coisa.
Nosso esforço então, após essa rude definição de tom, é o de,
mediante análise de dois poemas traduzidos e publicados por duas
importantes casas editoriais paulistanas, detectar, na prática,
alguns “empecilhos” à tradução - em especial os que surgem da
dificuldade de ouvir zonas de conversa “na leitura”. Isto é, da
dificuldade de apreender tons. Os autores escolhidos tratam-se de
dois já aplaudidos poetas norte-americanos do pós-guerra: Elizabeth
Bishop e Robert Creeley. Os tradutores escolhidos também de dois
poetas e tradutores contemporâneos já bem estabelecidos no Brasil:
Paulo Henriques Britto e Régis Bonvicino.
A ressalva é que, a despeito de eventuais restrições, as traduções
compõem, em si e a priori, um ato de coragem. E, em tempo, é melhor
que haja traduções, ainda que com eventuais derrapagens no que toca
ao achamento do tom do que o contrário.
No caso, e propositadamente, Bishop e Creeley pertencem a momentos e
tendências literárias ligeiramente diversas no panorama fecundo da
poesia norte-americana do sec. XX. Foram contemporâneos, mas só
instavelmente. Bishop, que precedeu Creeley, sempre esteve ao centro
do cânone e tida como herdeira de um tradição que evadia-se por
Eliot e Auden. Já Creeley sobrevêm dos que estavam à margem e foram
cavando seu espaço ao longo das décadas. Seus anteriores são Pound,
Williams e Zukofsky. Ou seja, poetas que, de um ou de outro modo,
sofreram fortes doses de rejeição ao longo de suas trajetórias.
Embora haja uma carga de muito esquema nesse comentário.
Vejamos como se dá a tradução do seguinte - e famoso - poema de
Bishop:
The Shampoo
The still explosions on the rocks,
the lichens, grow
by spreading, gray, concentric shocks.
They have arranged
to meet the rings around the moon, although
within our memories they have not changed.
And since the heavens will attend
as long on us,
you’ve been, dear friend,
precipitate and pragmatical;
and look what happens. For Time is
nothing if not amenable.
The shooting stars in your black hair
in bright formation
are flocking where,
so straight, so soon?
—Come, let me wash it in this big tin basin,
battered and shiny like the moon.
O Banho de Xampu
Os liquens — silenciosas explosões
nas pedras — crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado com
os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.
E como o céu há de nos dar guarida,
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
— Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nessa bacia
amassada e brilhante como a lua.5
O poema, visto a partir de sua soma, é de um registro de todo íntimo
e ligeiramente solene. Uma declaração de amor em envieso. Escrito,
como se sabe, por Bishop para sua amante brasileira, Lota de Macedo
Soares, com quem partilhou a cena paradisíaca de uma casa serrana em
Teresópolis.
Mesmo dito por um poeta de leitura absolutamente plana e sem cor,
este poema ainda seria iridescente, precariamente sentimental em sua
elegante dicção de um confessionalismo retraído, vagamente
envergonhado. É que se trata de um bilhete de amor tão íntimo quanto
impressivamente bem faturado. Seu tom é, algo, explícito. Embora
nunca em voz alta. É como se entredetesse uma partitura. Como se se
expandisse na cifra mesma. Ele tenciona sua própria forma de ser
conversado. Não a ataca, como usa ser tão comum nos diascorrentes. É
desinteressado quanto a isso. Não a desconstrói. Não a parentetiza.
Não a ashberyza. Seu jogo não é esse. Não a desmancha, em piruetas,
diante do leitor, e, ao fim, clama por aplausos - como os epígonos
de John Ashbery o fazem sem atingir metade da graça do mestre. É
mais generoso e gentil consigo mesmo. Está menos interessado em
demonstrar inteligência porque é, em si, uma declaração tanto de
amor quanto de inteligência e graça.
Assim, mesmo quando tão-só visto no papel, ele ressoa no ouvido esse
precário equilíbrio entre solene e íntimo. Como, aliás, sugere essa
alternância - entre abstratos e concretos, desmedidos e mensuráveis
- dos entes glosados pelo poema: rochas, liquens, halos de luar,
memórias, os céus, o Tempo (em maiúscula e abstração mais ampla,
quase uma alegoria), estrelas cadentes e, tudo enfim, se
concentrando nos cabelos da amiga, que, por sua vez, rebrilham como
tais estrelas, até serem lavados sobre essa prosaica bacia de
flandres - que conhecemos tão bem cá no Brasil - e que até a década
de setenta do século passado consistia num utensílio emblemático,
presente em nove entre dez lares. Sim, a bacia de flandres é um
emblema de lar. Uma espécie de lareira à brasileira e que só alguém
com a sensibilidade de Bishop e seu enorme empenho por enfronhar-se
com o ‘outro’ poderia convocar para um poema sobre amor doméstico.
Não lembro de um poeta forte brasileiro que tenha recorrido a essa
imagem prosaica. Em Drummond há, quando muito, uma “canequinha de
folha-de-flandres” - que trai algo mais boêmio, mais da bodega, do
botequim, que da casa, do lar. Algo mais esteriotipadamente
masculino, enfim. Mas essa bacia de flandres é também a lua, que, de
alguma forma apaga as estrelas - poeira láctea nos cabelos da amiga
- durante a lavagem: ablução, batismo, aliança. Mas também feminino
auto-circunscrevendo-se em amor.
É claro que essa imagem inicial dos liquens, das explosões nas
rochas, dos choques concêntricos e convergindo para os halos da lua
tem a ver com uma xampu. E especialmente com uma xampu que se dá
sobre essa bacia de flandres “amassada e esplêndida como a lua” (“battered
and shiny like the moon”).
Mas, desde início da tradução, as perdas são evidentes. E já começam
no título mesmo, pois em português a palavra xampu pode ser
suficientemente repuxada para abranger um banho com xampu. E, se não
está no dicionário mais corrente nesta acepção, um poeta bem pode
pressentir o caso. E assim empregá-la. Daí a não necessidade de
explicitar tanto (“O Banho de Xampu”), pois o próprio eixo do poema
convida a se ler xampu também nesta acepção.6
A tradução principia atando os liquens inarredavelmente às
“silenciosas explosões”, quando no original há uma sutil imprecisão.
Já que a sentença pode também ser lida de maneira mais enumerativa,
inventariada, do tipo: “as quietas explosões nas rochas, os
liquens(,) crescem”, etc. Além disso esses “liquens”, tão
magistralmente em retardo no original são antecipados na tradução. O
verbo “grow” é traduzido por “crescem e engordam”, um tanto
adiposamente. O termo “concussões” está, de todo, fora do registro,
algo, de um cloquialesco epistolar e elegante - de nenhum modo
erudito - do poema. Mas a ausência da “nossa memória” (6, I) é não
menos grave. “Momento”(6º, I) é um termo que trava a solução
coloquial e bem estilizada dos dois últimos versos desta estrofe no
original. Possivelmente, neste contexto, seria mais bem representado
por “agora”. Assim como o tempo verbal “tenha mudado”, em tradução
literal para o português, por igual, soa também desajeitado, no
mínimo. A métrica quase sempre não é a mesma. Seria possível
reproduzi-la em tal grau de condensação no português? Pouco
provável. E, no entanto, se no inglês ela segue por uma alternância
intermitente de versos mais longos (oito sílabas - ou quatro pés) e
curtos (quatro sílabas - ou dois pés) de uma para outra estrofe, no
português já não se pode dizer o mesmo - e, em especial, nas duas
primeiras estrofes (em que não há essa alternância e os versos tem
quase a mesma extensão - algo entre oito e dez sílabas).
Na segunda estrofe, o termo “guarida” - embora nem de longe tanto
quanto o “concussões” da estrofe precedente - está ligeiramente fora
de prumo - entanto compõe uma bela solução de rima, métrica e
equilíbrio, que abrange os três primeiros versos. Talvez mesmo a
melhor parte do poema em português. O esquema de rimas tão-só toa,
ao contrário da estrofe anterior e com algum evidente problema no
último par de rimas (“precipitou/contemporizador”). E, quem sabe o
“For” do penúltimo verso fosse mais efetivamente vertido por algo
como “Pois” ou “Pois que”, já que moderadamente anti-coloquial, como
no inglês. Ao final, há essa jóia rara de aliteração inversiva:
“Nothing if not”, que, de resto, o tradutor nem se atreveu a abordar
- e haveria mesmo como? O final desta estrofe é simplesmente um
tanto penoso com esse “contemporizador” tão longo, desajeitado
ritmicamente, e tão distante do tom gentil que o termo “amenable”
ajuda a estear, em inglês, e para o qual - com seu encontro brando
entre vogais e consoantes, não faltariam sucedâneos mais lacônicos e
foneticamente adequados em português: “ameno”, “dócil”, “suave”?
No início da terceira estrofe, o sujeito da oração (“estrelas”) se
subordina. A repetição do mesmo estratagema do parafrasear dúplice e
lasso da primeira estrofe (“crescem e engordam”) se repete
(“cadentes, arredias”), sem falar que nem de longe repõem o impacto
lucente do original (algo como “em formação esplêndida”). Mas
“resolutas” trata-se até de uma boa saída para “so soon” - apesar de
um pouco empolada. Em contrário - bem menos feliz - “irão” (3º
verso, III) é demasiado prosaico diante do “flocking” original.
Em suma, o poema soa bastante desajeitado em português. E por quê?
Em especial porque mal consegue encontrar seu registro no idioma.
Uma linguagem moderadamente coloquial filtrada por uma solenidade
branda, algo íntima, e parente daquela eventualmente usada em certas
cartas, notas, recados ou pequenos bilhetes pessoais. E eis porque a
leitura do poema no original nos lega uma idéia de unidade, de fala
corrente e transitiva. Não há altos e baixos, como na tradução.
Há bons momentos na tradução, no entanto. O melhor deles é sem
dúvida os três versos iniciais da segunda estrofe. Agora, passemos à
tarefa de Bonvicino ao traduzir este que é um dos mais famosos
poemas de Creeley:
The Flower
A Flor
I think I grow tensions Penso que cultivo tensões
like flowers como flores
in a wood where num bosque onde
nobody goes. ninguém vai.
Each wound is perfect, cada ferida - perfeita -,
enclosed itself in a tiny fecha-se numa minúscula
imperceptible blossom, imperceptível pétala
making pain. causando dor.
Pain is a flower, like that one, Dor é uma flor, como aquela
like this one, como esta,
like that one, como aquela,
like this one. como esta.7
Se no caso de Bishop, pela extensão e escopo da peça, alguns
percalços quanto à tonalidade são eventualmente desculpáveis, no de
Creeley - de condensação e metareferencialidade ainda mais pungentes
- ameaçam sufocar de vez o minimalismo extremo da peça. O delicado
balanço entre conversa e escrita.
E essa ameaça já assoma no primeiro verso. Ao invés de “Penso”,
portanto, solução mais efetiva seria “Acho” (1, I). Mas, ainda aqui,
louve-se a supressão do pronome, uma decisão acertada. “Grow”, em
inglês, não resguarda tanta proximidade com escrita quanto
“cultivar” em português. Um equivalente mais apropriado talvez
viesse por “planto”. Mas isso é ainda conjetura. “Bosque” (3º verso
I) um termo inadequado - que talvez fosse mais bem reposto por
“mato”. “Blossom” (4º verso, I) traduzido por “pétala” é equívoco
tanto em métrica quanto em sentido (“botão”) - mas não pela ênfase
sonora na bilabial. “Esta” (2º verso, III) seria melhor glosado por
“essa”. E este detalhe aparentemente reles diz muito quanto ao sutil
equilíbrio entre fala e escrita no original. Sua coloquialidade
habilmente estilizada e que não encontra bem o seu espaço na
tradução.
De mérito, há também a engenhosa supressão do verbo auxiliar ( “cada
ferida - perfeita - ” (1º verso, II)) para manter a métrica. E, no
entanto, “minúscula” (3º,II) parece ser um termo excessivamente
longo para fazer as vezes do compresso “tiny”.
Aqui, seria preciso mais atenção, insistimos, justamente pela
extensão e propósito tão estruturalmente mínimos do original. Pois
cada quase inexpresso equívoco na tradução vai ressoar muito mais
fortemente que no caso de Bishop. Embora, via de regra, o modo
direto da expressão do poema torne-o, numa revista apressada, mais
especiosamente fácil de repor em português que no caso anterior. O
que, em parte, se deve a certa acese e generalismo empírico da peça
original. Porém em suplementaridade há o inequívoco e sofisticado
senso de medida de Creeley. O mesmo que levou Ezra Pound a declinar
que Creeley possuía o “mais justo senso de medida de sua geração”.
E, de fato, Creely nos fornece a medida de um lirismo possível, numa
época em que tanto já se decantou seu fim.
Senso de medida literalmente referindo à extensão do verso. Basta
reparar com que habilidade o pensamento vai estacando ao fim de cada
linha na primeira estrofe. Para então ressurgir em surpresas. Hábil
seqüência. Tensões são comparadas a flores. O que se segue a “onde”
é lacunar. Se escrito em jargão médico, “A Flor” bem poderia ser um
tratado sobre câncer. Mas é um poema. Também sobre a espécie de
câncer que irrompe entre vida e escrita. E tonificado por uma voz
serena, gentil mesmo. E nada como esse final: tudo ressoando, em
reticente sugestão, que é mesmo possível ouvir - apianando-se em
fade - mesmo depois que já não se está lendo. Sábia sínquese.
Entender o que Pound imputa a Creeley como ‘medida’ pode ser, de
modo imperfeito, traduzido pela assertiva de Creeley segundo a qual
“num poema, tendo a ouvir aquilo que pode ser chamado sua melodia
bem antes de alçar-me a uma compreensão de tudo aquilo que pode
significar”.8 Algo que passa pela experiência do olho, do ouvido, da
mente. Em certo senso, a melodia de um poema é extensão e seqüência
de suas palavras. “O possível melhor que o perfeito”, segundo a
concepção do próprio Creeley.
De outro modo, é minimamente suspeito que, ao verter poesia não
rimada e sem métrica regular, o tradutor brasileiro, no atacado, não
pague atenção definitiva à extensão dos versos. Bonvicino, do
contrário, teve essa cautela. Menos para o verso inicial, contudo,
pois toda sua extensão já está contida em “Penso que cultivo”. No
entanto, louve-se a extensão dos demais - que, de modo mais ou menos
regular - devolvem a fluidez métrica do original.
“A Flor” trata-se de um metapoema de extrema eficácia. É mais ou
menos óbvio que Creeley dispõem sobre sua própria tarefa. As
tensões, cultivadas como flores, são também poemas - no senso mais
clássico do florilégio e da antologia. E, ao final, essa graciosa
alternância de pronomes sugere conhecido jogo de bem-me-quer,
malmequer. Há um favor estóico exalando. Uma espécie de gentileza.
Há melancolia mas não miséria. Há uma resignação quase coerente. E
uma ampla e complexa aceitação de vida enquanto escrita. De escrita
traduzindo vida. Essa possibilidade. Há sutil equilíbrio entre a
filosofia em voz alta - ao modo de um devaneio (daydream) ou de um
desabafo soliloquial - e uma dicção tão expressamente coloquial.
Embora de um coloquial difícil de achar no corriqueiro. E, portanto,
habilmente reprocessado. Há dignidade, enfim.
E no entanto, todas essas vias só escassamente são encontradas na
tradução de Bonvicino, que, na mesma medida da de Henriques Britto,
pouco se sustentaria na página autonomamente, desacompanhada do
original. E justamente por pagar tão pouco apreço ao tom da peça.
A questão do tom de um poema é misteriosa. Deve ter a ver com uma
certa invulgar capacidade para ouvir conversas “na leitura”. Mas
também para “ler” falas. Uma cifra. Trata-se de um equilíbrio que
poucos tradutores sabem apreender em sua equivalência mínima, em sua
complexa sutileza - o que demanda que seja não só um intelectual mas
- e por princípio - um artesão, um homem prático, que sabe ouvir
desde rádio a conversas de elevador, passando por discursos
políticos, narrações esportivas e arengas enamoradas. Embrenhar-se
nelas com afeição, mas também com espírito crítico. Ouvir enquanto
ocupado em trabalho lento e repetitivo, que também é o tempo
clássico de quem escreve livros. Ou, como bem diz o Eclesiastes:
“não se põem termo a multiplicar livros, e meditação freqüente é
tristeza da carne”. Ouvir em sábia entropia.
Mas tudo isso, bem entendido, ainda resvalaria para registro. Pois
tom, no caso, seria tão-só mais a afecção com que isso é dito,
conversado. O grau de afetividade com que isso foi misteriosamente
raptado para uma zona de verdade. Algo menos apreensível. Muito
difícil captar o tom de um poema em sua amplitude máxima. Coisa que
as duas traduções só de raspão tocam, sem deixar marcas de dente ou
mesmo lábios; tão-só esboçam, em seu corajoso malogro. Gesto
interrompido.
O tom, por sua inapreensibilidade, por seu caráter etéreo e pouco
didático, pelo que nele há que dificilmente se pode aprender mais
ortodoxamente, é justo aquele algo mais que faz dum amontoado de
linhas um poema. Que faz de quem as arranja em afio, um poeta. E se
um poeta é aquele que cifra contra o tempo, o tom é sua mais forte
instância de cifra. Trata-se da mais estável tradução da afecção
possível de ser posta em cifra. É a dignidade do poema em seu
lampejo mais saturado de verdade. É algo capaz de simultaneamente
safar-se do esoterismo tacanho de um lado, e do belo-marketing de
outro. Enfim, algo que por si já enforma uma instância de
resistência não só ao tempo, mas também ao espaço vincado de
diferentes línguas e matizes culturais.
Assim, bem se pode dizer que tom é a parcela mais fácil de
identificar e mais difícil de se conversar sobre, em um poema. É a
que menos se entrega à paráfrase. E a que mais resiste a ser
decupada por uma teoria. Em um poema, o tom é o núcleo misterioso em
que afecção, inteligência e acaso se fundem em verdade numa zona a
meio caminho entre ouvido e olho. Um pulsar.
Porém na lábil divisa que há entre tom e registro, é possível
perceber que o tom - embora bem menos que o registro - trata-se de
um aspecto também condicionado pelos diversos idiomas. Daí que
canções de ébrio saiam tão mais sincopadas e aliterativas nas
línguas anglo-saxãs. E, que, por seu turno, as baladas de amor
gentil sejam mais bem repostas nas neo-latinas - afinal, o próprio
doce modo novo foi algo originalmente provençal e toscano. Há um tom
que se estende aos gêneros. Mas, bem entendido, só em parte é
determinado por gêneros ou épocas ou estilos, porque também os
transcende.
No Brasil, em digressão, os escritores do Nordeste até o Rio,
passando por Minas, são devedores de uma sensibilidade tonística
muito mais ibérica, mediterrânea, moçárabe, marrana, moura. Arcaica
e fusa. Mestiça para todos os fins. Enquanto os do sul estão mais
inclinados para a Europa do Norte e do Leste, ou para a Itália, o
Mediterrâneo Oriental e um veio de imigração aberta ainda recente.
Tateiam em busca da própria voz. E nesse tatear se pode adivinhar a
novidade. O que os do sul ainda não perceberam é a hibridez que
surge do vero fato de se expressarem num idioma que está longe de
repor a contento seus anseios atávicos mais imediatos em relação à
própria ancestralidade: italiana, alemã, judia asquenázi, suiça,
eslava e mesmo árabe e oriental. O que pode surgir de novo e
composto dessa antinomia sulista? Muito. E até porque, por uma
ironia histórica, o português brasileiro concentrar ainda mais de
arcaico - no senso do cosmopolitismo luso-atlântico do Quinhentos -
que o de Portugal. Daí a preservação do gerúndio, das vogais e de
uma lassidão orgânica, melíflua e macerada na fala brasileira - bem
mais pausada que a lusitana.
Não é à toa que um poeta consciente das limitações de seu meio, como
o paraense Age de Carvalho irá se enfronhar com Paul Celan. Celan
foi um que bateu-se contra toda uma tradição confirmada de
literatura em alemão. Talvez “para que não se mesclem ferocidades e
doçuras”, como, de resto, nos diz Horácio em Ad Pisones. Celan
entreviu o tanto que as melhores promessas, as primícias, a
urbanidade, gentileza e ponderação dessa tradição, apenas
escamoteavam crime. Assim, Carvalho parece nos sugerir que o
português brasileiro - e especialmente o do Rio a Norte - está
excessivamente macerado, esfiapado, ralo. Excessivamente cúmplice,
em outras palavras. Que nada nele se produziu de tão impactante
depois de Machado, Rosa, Drummond, Graciliano e Lispector. Há
inércia e cansaço no ar. Quando opta por esse auto-exílio, por essa
instância judia de Celan para auto-renovar-se,9 Carvalho está
sinalizando para a vital necessidade de arejamento da língua
brasileira. Uma que confirmou demais injustiças de escala épica
para, de repente, poder enfrentá-las sem, antes, retorce-se de bunda
canastra. Logo, um dos antídotos contra esse estado de coisas viria
da contaminação e do exílio. Da necessidade de enxergar novamente
com olhos descalços - uma empreitada, de resto, radicalmente
poética. Se Carvalho consegue dar conta dessa tarefa ou apenas a
frustra é já uma outra conversa.
O paralelo que se pode traçar, pontualmente, é com o futebol da
seleção. Ao modo do português brasileiro quanto a expressão, nosso
futebol se encontra em suspenso e inércia. E por burocracia,
acomodação. Perdeu o tom. Falta atrevimento, improviso. Volantes que
sejam mais que destruidores. Toque de bola. Drible. Triangulações.
Toda a sintaxe do ataque rápido em toques avulsos e envolventes.
Espaço para expressão individual que transcenda a escavação de
faltas ou o chute no adversário para regatear um mísero lateral ou
escanteio. Falta um comando mais lúcido e capaz de resgatar o imenso
repertório de jogadas e posturas que nos está prometido pelo
passado. Falta a tradicional volúpia pelo ataque e pelo gol, pela
invenção, pelo fortuito, pelo acaso. E, mesmo, o fracasso de 82
ganha proporções sebastianistas, quando toda a mais fina cepa de um
futebol encantatório foi dizimada nos campos de Sevilha.
Incalculável, perversa ironia. E, bem ali, do outro lado de Ceuta.
A mídia também não tem colaborado muito, desde que projeta tanto na
tela o bisonho espetáculo de um homem gesticulando tolamente à beira
do gramado. E, cada vez mais, vai esquecendo o principal: o jogo em
si, a se desenrolar pelas quatro linhas.
Mas voltemos ao desassossego de Carvalho e à questão do tom.
Importante, aqui, é relembrar que a suplementaridade é que segue na
justaposição dos diversos idiomas. A tal e famosa imagem dos cacos
de vaso empregada por Benjamin. Na sua exclusão enformam a tal
língua absoluta - de qual todas não são mais que uma refração. Um
pensamento de outro modo bastante platônico desde sua raiz.
Deve-se ter em mente, ainda, que no inglês britânico ou
norte-americano (como o dos poemas em foco anteriormente), grosso
modo, a diferença entre fala e escrita é consideravelmente mais
curta que no português brasileiro. Isso, no entanto, quase sempre
significa uma vantagem - por amplitude de registros e tons - do
português. Mas também por isso, uma maior dificuldade.
No caso da vantagem, trata-se de uma que os nossos tradutores
raramente sabem lançar mão em todo seu vigor e poder de fogo (do
mesmo modo que os escritores do sul do Brasil ainda não perceberam a
mina que tem nas mãos). E que, bem sublinhado, ainda não começou a
ser perscrutada a sério. É como se no inglês houvesse menos
possibilidades cromáticas. E, no português, pelo excesso delas,
fosse mais difícil identificar registro e tom corretos para uma
tradução: o espaço onde alojar aquilo que, a rigor, é indizível.
Aquela errância das vozes mais saturadas de sentido. Aquele espaço
indefinível em que se ouve a conversa do poema mesmo quando ela já
não é conversável. Aquela proto-utopia, aquele vero sebastianismo
implícito no todo de um poema bem faturado. E justo porque advém de
uma artesania tão rematada que é capaz de criar um ouvido abstrado,
situado a meio caminho dos olhos.
Ninguém, em brasileiro, nem mesmo Manuel Bandeira, soube calibrar
esse ouvido/olhar tão bem quanto João Guimarães Rosa para a questão
do tom. E sua pesquisa foi tão árdua, que é mesmo possível pensar em
traduzir boa parte de seus livros para a própria língua em que foram
supostamente escritos. Um paradoxo. Ao modo de Homero - que conhecia
sobejamente e no original - Rosa fez dos sertanejos mineiros,
deuses. Eis porque não se estranhe se um dia o Grande Sertão for
exemplarmente vertido para o português.
Em sua raiz latina, a palavra tom (tono) refere originalmente o
vigor do músculo, mas também o ruído do trovão. No fim, tudo
rasga-se em luz e raio. Potência. E é Camões, outro tradutor de
homens para deuses - e o poeta da língua, por excelência - quem, ao
invocar as tágides, na abertura do épico, reivindica “um som alto e
sublimado”, uma “fúria grande e sonorosa”. E nos assegura do temor
que a palavra desperta “Quando Júpiter alto, assim dizendo/ Co’um
tom de voz começa, grave e horrendo:// (...)”. O som do trovão. Na
poesia contemporânea, a acepção de tom não é tão diferente assim,
uma vez que também designa o invocar com voz forte - mesmo quando o
assunto passa aparentemente ao largo de qualquer epicidade.
É preciso deixar claro que tom não é tão-só afecção, zona do sentir.
É bem mais que isso. Também embute organização da idéia. Eis porque
sugere sintaxe. Como diz Wittgenstein, “só quem pode conversar, pode
conversar na imaginação. Pois conversar na imaginação implica que o
que se deixa dizer em silêncio pode ser comunicado depois”.10 E, na
verdade, sentir ou apreender é apenas meia tarefa já que “por vezes
se almeja falar de crença e certeza como tons do pensamento: e, de
fato, amiúde, estes se expressam no tom da voz. No entanto, não
pense nisso como ‘sentimentos’ que acompanham as palavras”.11
Nesse sentido, o tom é a isca. É ele quem convoca o ouvido abstrato
ou ressona na memória, ainda que falto de palavras perceptíveis.
Fazer ouvidos para o tom é a primeira tarefa (ou proeza) do tradutor
de poesia. E é mesmo a mais anterior, já que todo leitor atento é
capaz de sintonizá-lo. De sintonizar-se. Mesmo antes de pensar nas
palavras que podem encorpá-lo em outro idioma.
Em certa carta de 1914 a Ficker, comentando os poemas de Trakl, a
quem subvencionava, por indicação, à época, diz Wittgenstein: “de
fato, não os entendo, mas o tom deles me fascina. É o tom do gênio”.
12
Notas
[1] A hipótese de que Homero jamais escreveu é cada
vez mais contestada: “even those who thought that his poems were not
combined into their present shape until long after his death ( that,
for example, the last part of the Odyssey was a later addition),
even those who believe that different poets composed the Illiad and
the Odyssey, the so called Separatists - everyone assumed that Homer
was a poet composing as all poets since have done: with the aid of
writing”. KNOX, Bernard, Introdução à The Iliad, (translated by
Robert Fagles), Penguin, Londres, 2000, p. 70
[2] LONGINO, Do Sublime, (trad. de Filomena Hirata) Ed. Martins
Fontes, São Paulo, 1996, p. 56
[3] BENJAMIN, Walter, “The task of the translator”, in Selected
Writings, Harvard University Press, Cambridge and London, 1996, p.
260
[4] OPPEN, George, Selected Letters, (organização e prefácio de
Rachel Blau-DuPlessis), Duke University Press, Durham, p. 97
[5] BISHOP, Elizabeth, Poemas do Brasil, (seleção e tradução de
Paulo Henriques Britto), Companhia das Letras, São Paulo, 1999, p.
92
[6] Sintomaticamente, três meses após a redação deste ensaio, o
recém-lançado Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Ed. Objetiva,
Rio, 2001) se não já traz esta acepção para o termo, ao menos a
refere em português ao inventariar sua etimologia.
[7] CREELEY, Robert, A um, (seleção e tradução de Régis Bonvicino),
Ateliê Editorial, São Paulo, 1997, p. 26
[8] CREELEY, The Collected Essays, University of California Press,
Berkeley, Los Angeles and London, 1989, p. 499
[9] Ou para sedimentar o senso judeu de outridade, o belo comentário
do poeta americano George Oppen: “a meio caminho do fato de ser
singular e de sermos numerosos está o de ser judeu”. (Revista SULFUR,
27, Outono de 1990, p. 211).
[10] WITTGENSTEIN, Ludwig, Ultimos escritos sobre Filosofia de la
Psicologia, (tradução de Javier Sabada) Ed. Tecnos, Madrid, 1994, p.
142
[11] Idem, p. 150
[12] Apud, PERLOFF, Marjorie, in Wittgenstein’s Ladder, The
University of Chicago Press, Chicago, p. 10
|