Ruy Vasconcelos
Prefácio a Aquiles
Aquiles, que matou Heitor, que matou Pátroclo, que matou Téstor, é o
molde de uma longa linhagem. Essa linhagem se compõe de toda uma
elite de profissionais da carnificina, da força, da exceção, do
massacre, do terror, da truculência, da intimidação praticados tanto
por um desígnio individual quanto em nome de uma causa. Aquiles é um
profissional da força. A força, nele, transpira por todos os poros.
Portanto, aqui, estamos tratando também de um “Como nós massacramos
para o bem-comum” [“How we slaughter for the common good”], na
tradução rica e ambígua da fórmula empregada pelo poeta irlandês
Seamus Heaney para circunscrever a ação do Exército Republicano
Irlandês (IRA)1. Num plano mais aberto, a descendência de Aquiles
não exclui uma casta política ou religiosa ou de crime organizado,
para supostamente se reduzir apenas ao anseio por glória pessoal. É
assim que, tanto Billy the Kid ou Lampião, quanto os terroristas
islâmicos que espatifaram dois jatos contra o World Trade Center
estariam eqüidistantes da linhagem de Aquiles.2
O sentido da tragédia - e, de pronto, da guerra - é o de que todas
as sociedades anseiam por heróis. E, no entanto, esses heróis são
germes de desagregação e destruição. Quando, no Livro de Samuel, os
hebreus clamam a Iavé por um rei - que viria a ser Saul - também
estão clamando pela tragédia. E ainda assim, Iavé lhes dá um, a
contragosto. Essa má vontade provém do fato de já haver um líder, o
próprio Samuel. Mas Samuel era líder no plano religioso, um profeta,
e os hebreus queriam mais um chefe militar, alguém, aliás, no
espelho de um Deus que era Senhor dos Exércitos. Daí que Saul fosse
tão forte e alto que “desde os ombros para cima sobressaia em altura
a todo o povo” (I Samuel, 9, 2b). Há autores que hesitam em estender
o termo tragédia para a idiossincrática cultura judaica. É o caso de
Wittgenstein quando diz que “a tragédia encontra-se onde a árvore,
em vez de se dobrar, se quebra. A tragédia é algo de não judeu”.3
Isto não soa totalmente coerente, pois a própria história de Saul é,
em si, uma tragédia. Próxima de seu desfecho, um Samuel consternado,
mas obediente, repudia Saul. E, então, se dá esta cena em que,
contrariando Wittgenstein, a árvore não só dobra, mas certamente
quebra, e feio: “Virando-se Samuel para se ir, Saul pegou-lhe pela
orla do manto, o qual se rasgou. Disse-lhe Samuel: o senhor rasgou
de ti o Reino de Israel, e o deu ao teu próximo que é melhor do que
tu” (I Samuel,16, 26-28).
Esta tragédia de Saul, um rei guerreiro, preterido em favor de Davi,
guarda alguma analogia com a condição de Aquiles em relação a
Agamenon. Com a diferença que Agamenon, ao contrário do jovem Davi,
era um rei ambicioso, que não hesitou em sacrificar a própria filha
para ganhar o presságio favorável quanto à empresa da guerra. A
guerra é o em torno por excelência da ação do herói clássico:
“heroísmo é um gesto teatral maculado de presunção”, no dizer de
Weil. [II, p.425]. Curiosamente, Davi, quando já rei e poderoso,
também terá um filho morto por Javé, por haver transgredido seus
mandamentos.
Na ambiência cultural grega pré-socrática, no entanto, o que
conhecemos por “glória pessoal” era um objetivo que qualquer jovem
aristocrata almejava. Isto estava entranhado em sua arete, ou seja,
no processo de formação e educação da época:
A ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação
aparecem no sentimento cristão como vaidade pessoal e pecaminosa; os
gregos, porém, viam nisso a aspiração da pessoa ao ideal e
suprapessoal, onde começa o valor.
[JAEGER, p. 23]
A arete naturalmente era prerrogativa dos nobres. Sua acepção
original implica tanto em excelência humana quanto força divina ou
agilidade de cavalos de raça. No sentido original grego, a palavra
designa, portanto, força, potência: “os gregos consideravam a
destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer
posição dominante” [p. 29], nos informa Jaeger. Somente no decurso
de séculos este conceito estender-se-á também para valores morais e
espirituais, até aproximar-se de algo que pode ser traduzido como
“virtude”.
Na Ilíada, por exemplo, constatamos que Aquiles fora educado tanto
para lutar quanto para argumentar. Pois quando no Canto IX, ele
recebe a embaixada de Agamenon esta é composta modelarmente por Ájax
e Ulisses. Ou seja, a arma e a palavra. A ação e a reflexão. Há,
assim, uma instância didática, no sentido de indicar aos mais jovens
os melhores modelos de arete, de normas de conduta, cuja síntese é,
naturalmente, um guerreiro, Ájax - o segundo na hierarquia da guerra
depois do irado Aquiles; e um hábil conversador, Ulisses. E, no
entanto, o último a argumentar na cena é Fênix, professor do próprio
Aquiles. E sua argumentação compõe-se não só de exemplos que
contemplam casos de desonra e afronta, semelhantes às que passava
Aquiles, como também resume todo o processo de formação de seu
pupilo.
De fato, Aquiles na Ilíada e Telêmaco na Odisséia conformam dois
paradigmas para a educação dos jovens gregos. E também encarnam,
respectivamente, as duas virtudes mais prezadas pela nobreza:
coragem e prudência. O papel das epopéias na educação dos gregos não
pode ser subestimado.
Mas voltando à descendência de Aquiles, a este desfile frenético, a
esta escola de samba da morte sem fim, nele entram tanto os nazistas
quanto os seus vencedores. E, lado a lado, seguem, no mesmo ritmo,
os cruzados medievais e as tropas do sultão Saladino; os budistas
que pegaram em armas pela defesa de alguns privilégios e santuários
fortificados e cossacos russos urdindo pogroms; samurais japoneses e
piratas ingleses; conquistadores espanhóis e guerreiros astecas;
mafiosos nova-iorquinos e o bando do apache Jerônimo; a cavalaria
americana e os criollos de Pancho Villa; a Gestapo e a resistência
francesa; os terroristas palestinos e o exército de Israel. Também
entrariam no cortejo os assassinos anônimos, passionais ou não, que
a história deixou de nos contar e até mesmo o temporão e decadente
Dom Quixote com sua lança enferrujada e escudo aos frangalhos.
O princípio comum a esses “descendentes” de Aquiles vem a ser o
desejo extremo de posteridade. De conduzir ao deslimite o duelo com
a morte. De uma sobrevida que todos esses guerreiros imponderáveis
partilham com místicos, filósofos, ditadores, atletas, cortesãos e
outros notáveis, solitários assassinos - literais ou metafóricos -
da realidade, e que bem podemos imaginar sentados em uma longa mesa,
em cuja cabeceira, cego e bebendo vinho temperado, encontra-se o
próprio criador de Aquiles.
Aquiles foi aquilo que Homero viu de mais cru no retrato do homem
enquanto força. E, paradoxalmente, mesmo este lado sombrio (e quase
divino) ainda não chega a ser totalmente alheio à experiência
humana. Como nos assegura Vico, “os costumes dos heróis homéricos
são próprios de crianças por sua agilidade mental; de mulheres, pela
robustez da fantasia; de jovens violentíssimos, pelo fervente
bulício da cólera”4. Todo esse mundo heróico por certo precede o
curso racional da Grécia Clássica - mas também a fascina. Trata-se
de um mundo muito estranho ao nosso. Governado por paixões que se
propagam como ondas numa praia arenosa. Neste sentido, a ira de
Aquiles é ao mesmo tempo honra, capricho e deslimite. A honra vem na
esteira heróica do código guerreiro. O capricho numa aberta
predisposição para vitimizar-se - especialmente diante da mãe, pois
Aquiles, o guerreiro imbatível, tem muito do menino mimado, guiado
pelo capricho. E o deslimite, pela dimensão, abissal, de seu rancor.
Pela honra, Aquiles é parente dos que duelam em filmes de
bangue-bangue, nos gramados de futebol e em outras ficções afins. No
capricho, ele empata com megalômanos exemplares como Alexandre ou
Napoleão. Mas ele supera a todos estes esboços de megalomania, por
seu caráter de arquétipo, pela desmesura de seu ódio, assim como
pela quase insuportável e deslimitosa descida da esfera divina para
a condição humana.
Essa queda de Aquiles o aproxima de Adão, que foi outro decaído
exemplar na origem de uma tradição. É claro que Aquiles e Adão são
muito diversos. Mas note-se, no fim das contas, que em ambos há uma
constituição divina que, ao desabar, aporta diferentes
conseqüências. Ao contrário da de Adão, a queda de Aquiles o redime
- ao menos por algum tempo (por muito pouco tempo, aliás). E o certo
é que, em ambos os casos, o vetor da aspiração à condição divina é
feminino. No caso de Adão, a companheira. No caso de Aquiles, a mãe.
Tanto Eva quanto Tétis possuíam um algo mais. Eva por ter comido
antes do fruto proibido e tê-lo repassado a Adão. Tétis por ser o
próprio fruto proibido. Eva por ter aspirado adquirir, por meio
ilícito, a condição divina. Tétis por ser de condição divina.
Um pescador não pesca pelo simples prazer de matar o peixe, mas para
se alimentar. É isso que suscita no pescador um fio de empatia pela
presa. De compaixão, se quiserem. Mas a conduta de Aquiles não se
pauta por esse fio. É caprichosa. Quando Alexandre, aluno de
Aristóteles, choraminga porque há muito pouco mundo para ser
conquistado, essas lágrimas também são as de Aquiles.
Hitler, que não morreu jovem, não era filho de aristocratas e estava
tão distante da ética cavalheiresca que presidia a Guerra de Tróia
quanto um outono do outono do ano seguinte, admirava Aquiles. O
ponto, aqui, passa pelo fato de que o verdadeiro pacifista, o que
sabe temperar suas paixões, desarmar animosidades, é também aquele
capaz de se supor não só como Aquiles, mas como o próprio Hitler, no
sentido de que tanto o primeiro quanto o segundo não serem, em nada,
estranhos à experiência humana. Não se encontrarem exilados dela por
um fosso virtualmente inalcançável.5
Aliás, o culto da individualidade heróica está no cerne de Mein
Kampf, a biografia de Hitler. No final de um capítulo
significativamente intitulado “O indivíduo forte é mais forte
sozinho”, encontramos este trecho:
Não se deve esquecer que nada de verdadeiramente grandioso neste
mundo foi atingido através de coalizões, mas que tais conquistas
foram sempre resultantes do triunfo do indivíduo. Vitórias obtidas
por coalizões, devido à própria natureza de suas bases, portam
consigo, desde o começo, os germes de sua destruição. É tanto assim
que elas acabam perdendo o que foi conquistado. As grandes
revoluções que se deram no pensamento humano e que de fato
transformaram a face do mundo teriam sido impossíveis de levar
adiante senão pelos titânicos esforços de naturezas individuais,
porém nunca como resultado de coalizões.
Aqui está bem nítido o vínculo entre o pensamento nazista e o ideal
heróico grego. E está igualmente claro o quanto ambos são
tributários de uma idéia do deslimite. No caso do nazismo, esta
idéia de deslimite foi filtrada por uma leitura apressada do
pensamento de Nietzsche. Especialmente do conceito de super-homem, e
da revalorização que Nietzsche empreende da filosofia pré-socrática.
Seja como for, por mais que se admire o discurso filosófico de
Nietzsche, não se pode deixar de lamentar que ele possua essa brecha
fatal. Justamente a de ser apropriado tão facilmente por regimes
totalitários.
De outro modo, seguindo na esteira da noção de falta de limites como
algo expressamente nefasto - e não só em termos políticos, como bem
expressa Weil -, deparamo-nos com essa mesma preocupação em Walter
Benjamin. Aliás, muito sem rodeios - como não costuma ser seu método
-, neste trecho que soa como uma antítese diante da perspectiva
voluntariosa (e heróica) do texto de Hitler:
Toda condição ilimitada de vontade conduz ao mal. Ambição e
concupiscência são expressões ilimitadas de vontade. Como os
teólogos sempre perceberam, a totalidade natural de vontade precisa
ser destruída. A vontade deve estilhaçar-se em mil pedaços. Os
elementos de vontade que proliferam demasiadamente limitam um ao
outro. Isto dá ensejo à limitada vontade secular. Que quer que vá
além deles e clama pela (suprema) unidade de intenção não é objeto
de vontade; não requer a intenção de vontade. A prece, porém, pode
ser ilimitada.
[BENJAMIN, p.114]
O Rei David, que foi um modelo de virtude - de início um pastor
pacífico e um poeta inspirado - ao agregar poder, tomou para si a
mulher de um de seus generais depois de mandar assassiná-lo
traiçoeiramente com um rigor de cálculo inconcebível para os
apaixonados guerreiros aqueus. Do contrário, quando, logo no início
da Ilíada, Agamenon toma para si a bela Briseida, amante de Aquiles,
o faz diretamente, à luz do dia e na presença de todos os capitães
das forças gregas. Age intempestivamente, não faz cálculo, de resto,
do tremendo risco por que passa o seu real pescoço ou das
conseqüências desastrosas deste seu ato para os exércitos sob seu
comando.
Os personagens de Homero são sublimes e trágicos. Mas, ainda assim,
Auerbach tem razão ao sugerir que são menos humanos, concretos,
desconcertantemente misteriosos e contraditórios que os personagens
bíblicos. Ou seja, que a parataxe bíblica, de fato, contraponteia a
hipotaxe dos poemas homéricos:
No relato bíblico também se fala; mas o discurso não tem, como em
Homero, a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos. Antes,
pelo contrário: tem a intenção de aludir a algo implícito, que
permanece inexpresso. [p. 8]
Ou ainda sobre os poemas homéricos:
Os diversos integrantes dos fenômenos são postos sempre em clara
relação mútua; um número considerável de conjunções, advérbios,
partículas e outros instrumentos sintáticos, todos claramente
delimitados e sutilmente graduados na sua significação, deslindam as
personagens, as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, e os
põem simultaneamente, em correlação mútua, ininterrupta e fluente.
[AUERBACH, p. 4]
Certamente o maná dos hebreus não provinha de uma receita à base de
néctar e ambrosia. A dor de Salomão pela perda de seu filho Absalão
assoma tanto mais pungente do que as minguadas lágrimas de Tétis
diante do destino de Aquiles. E olha que Aquiles não traiu ninguém.
De fato, há alguma planura nos personagens homéricos. Eles se
parecem entre si. Tanto mais se comparados à densidade de certos
personagens bíblicos. Mas, como nos diz Schlegel, “para poder ser
unilateral é preciso ao menos ter um lado”.6
Se há parentes de Aquiles na Bíblia estes são Caim, Esaú - em certa
medida Jacó - e Absalão. Homens virulentos e intemperantes. Já os de
Heitor seriam Abel, Isaac, José e Tobias, espíritos conciliadores e
pacíficos. E, na Ilíada, se o centro da trama deriva de Helena, de
sua estonteante beleza, de sua atitude inconseqüente, isto não
representa um índice de que ela adentra o poema como um vetor vivo.
Possivelmente, Helena é - junto com Nausíaca, Penélope, Andrômaca e
a feiticeira Circe - das raras personagens femininas em três
dimensões nos versos homéricos. E, ainda assim, ela não possui a
mesma voltagem dramática e humana de Sara, Lia, Raquel, Judite ou
Ruth, para ficar só no Velho Testamento.
Sem embargo, é preciso reconhecer que a tragédia da Ilíada, assim
como a “Queda” bíblica, como dissemos, provém de uma instância
feminina, pois o axis-mundi dos aqueus é o corpo de Helena. Seu
seqüestro por Páris implica, portanto, mais que um simples rapto de
mulheres. De fato, a prática do rapto era tão comum entre os povos
antigos que, seguindo o argumento de Heródoto:
Embora os persas encarem a abdução de mulheres como um ato
criminoso, também advogam que homens de bom senso não dão a mínima
para tais mulheres, desde que parece evidente, que, sem a
cumplicidade delas, jamais haveria tais raptos. Os asiáticos, quando
os gregos fugiram com mulheres suas, nunca se importaram com isso,
mas os gregos, por conta de uma única mulher da Lacedemônia,
reuniram um vasto exército, invadiram a Ásia, e destruíram o reino
de Príamo.
[HERODOTUS, p. 4 ]
O argumento de Heródoto é preciso e até maliciosamente bem-humorado.
Mas, claro, não é inteiramente exato, pois não ressalta que esta
“única mulher da Lacedemônia” é, na verdade, muito especial. Helena
é o oposto extremo do caos, do amorfo, do informe. Trata-se da
criatura mais elevada no plano da criação - i. e., a humanidade - em
seu estágio mais alto de perfeição. Se a perfeição, para os gregos,
é sinônimo de beleza ( kalón) e algo sagrado, se pode dimensionar,
então, o que cerca o corpo de Helena: um ideal de perfeição - ponte
entre deuses e humanos. Helena é a nata da nata. Daí que, em geral,
suas atitudes inconseqüentes e egóicas raramente sejam questionadas.
Não passa pela cabeça de nenhum aqueu que ela tenha de “pagar por
elas”. Para Helena, tão-só basta que ela exista, que ela esteja ali,
com sua beleza.
O conceito de beleza ( kal ó n) é tão central para os gregos que seu
processo de formação, a arete ( areth ), é descrito como “fazer sua
beleza”. A palavra paidéia ( paideia ) ainda não havia sido cunhada.
E assim o termo arete, que pode ser traduzido como virtude, era
central na educação desses jovens que ansiavam por “fazer sua
beleza”. Ora, Helena é um emblema vivo do “centro do mundo”7. É
sagrada. Quando este emblema é deslocado da Grécia (Esparta) para
Tróia, todos os reis gregos se mobilizam para recuperá-lo. Mais,
despendem um esforço de guerra que se arrasta por uma década. Neste
esforço, muita coisa entra em xeque. E, no entanto, para os aqueus,
o caráter heróico de Aquiles vem o de ser o principal instrumento da
reconquista de Helena, o “centro do mundo”, o sagrado. É fato, no
entanto, que Aquiles, depois de algum tempo, não se move mais por
Helena ou pelos aqueus senão por sua própria legenda. Um típico caso
de “a ocasião faz o ladrão”, como diz o adágio. Este adágio, que
mais propriamente poderia ser aplicado ao ardiloso Ulisses, também
serve para o heróico Aquiles, empenhado como está na narcisística
tarefa de “fazer sua própria beleza”. Quando alguém, como Agamenon,
superior a ele em hierarquia o destrata em público, ele se sente um
desgraçado. Cabe ressaltar que a fúria de Aquiles por ver seu
processo de “fazer sua beleza” maculado não é nem a única nem a mais
radical na história envolvendo a guerra de Tróia. Pois reza a
tradição que, após a morte de Aquiles, suas armas foram ofertadas a
Ulisses. Isto causou em Ájax, melhor guerreiro que Ulisses, tão
grande dissabor, que ele primeiro enlouqueceu e depois se matou.
Porém, está mais do que claro que esta reconquista do “centro do
mundo”, o corpo de Helena, acaba virando pretexto para a apropriação
dos tesouros de uma poderosa e rica cidade (Tróia). Agamenon parece
estar particularmente cônscio disso. Ou seja, de um processo, enfim,
análogo ao vivido muitos séculos depois pelos conquistadores
ibéricos na América, quando o motivo inicial da cristianização, logo
cedeu vez à cobiça, a violência e à força desenfreada dos solados de
Cortez e Pizarro, à truculência dos Bandeirantes.
De outra forma, Simone Weil acerta ao dizer que a Ilíada é o poema
da força. Se lembrarmos de que o conceito de força para Weil
consiste em “aquilo que transforma em coisa tudo que lhe está
submetido”, o ponto fica mais claro. Um arrepio de morte percorre
toda a Ilíada. A carne hesita, recua e treme diante da morte. Mesmo
os guerreiros mais experimentados temem por suas vidas. São
freqüentes as ofertas de resgate feitas pelos troianos, menos
versados na arte da guerra e, logo, tentando contrabalançar com um
lastro de ouro as derrotas sofridas, a garantia da sobrevivência.
A tensão e o medo são uma constante. A carnificina parece não ter
fim. Mas também Homero empresta uma evidente dignidade a ambas as
partes e ao teatro de guerra. O que, por certo, não impede o
registro de atos individuais de covardias e medos. Mesmo o ardiloso
Ulisses, num lance de pragmatismo, bate em desabalado recuo rumo às
naus aquéias no que é duramente admoestado por Diomedes que, na
ocasião, socorria o venerável Nestor. Mas Ulisses não lhe dá
ouvidos. O manhoso Ulisses não tem a menor vocação para o martírio.
Está ocupado demais com salvar a própria pele.
Proverbial. Entre as lições que a Ilíada nos oferece - e são muitas
-, a maior é a de que não há “um lado certo” numa guerra. Pois, a
rigor, os gregos estariam com a razão. Tinham feito um pacto de
defender Helena, cuja beleza era uma espécie de patrimônio
pan-helênico. Já os troianos estariam equivocados, pois, além de não
devolverem Helena na ocasião oportuna, também apoiaram o capricho de
um príncipe covarde e inconseqüente, Páris. E, no entanto, o
personagem mais luminoso em toda a Ilíada, Heitor, era troiano, e,
em tese, estaria do “lado errado”.
A guerra é volúvel. Como as ondas do pensamento no cérebro humano,
também a maré da guerra é volúvel. Ora pende para gregos, ora para
troianos. Faz biscate com a sorte de ambos. E ambos se entregam à
sua mercê. Quando a maré vira para um dos lados apaga na praia a
lembrança amarga da última derrota. A vitória recente é sempre a
mais definitiva. Os homens perdem qualquer noção de limite. Como
lembra Weil, esta república do excesso forja uma falsa imortalidade.
Uma falta de medida. No Nordeste do Brasil, quanta dona-de-casa não
tem esta exata medida quando diz que “fulano não tem lei”! A nêmesis
( nhmesiV ), a indignação diante da injustiça, a medida, o limite, é
esta “lei” de que falam nossas donas-de-casa.
O fio central da trama da Ilíada é “a fúria ( meneairv ) de
Aquiles”. Mas, só se é possível também abstrair essa fúria. Ou seja,
entrevê-la como metáfora de força ( dunamiV ), exceção, violência,
arbítrio, capricho. Atributos típicos de quem comanda uma vasta
força. De uma elite da violência que quer sobrepor-se a uma outra.
Nesse sentido, a guerra - de que Aquiles é o senhor supremo - é a
personagem central, encarnação da tragédia.
Há na Ilíada algo do mesmo fatalismo poético presente no Eclesiastes
- de resto, o mais “grego” dos livros bíblicos:
Gerações humanas são como folhas.
O vento de inverno assopra-as ao chão.
Mas quando a primavera, de novo, retoma,
Germina outros gomos. O mesmo com humanos:
Uma geração desponta, outra resseca e cai.8
[VI, 181-185]
Dependendo da época, os “éticos” do poema são gregos ou troianos.
Para nossa sensibilidade moderna, por exemplo, não resta dúvida que
os troianos surgem mais atraentes. Lutam em defesa de sua cidade. E,
como se não bastasse, seu líder, Heitor, é um homem devotado à
família e ao destino coletivo. Tróia é também a primeira descrição
de pólis de que se tem notícia no Ocidente. E é uma ironia que este
primeiro modelo de cidade - pulsante, rica, governada por um rei
sábio e defendida por um príncipe magnânimo - seja sitiada e,
depois, completamente destruída por navegadores rudes e gananciosos,
que vieram de muito longe. Exceto por uma menção a uma embaixada e
pela enumeração da frota aquéia, o poema praticamente cala sobre os
nove primeiros anos de combate.
Assim, este décimo e derradeiro ano da Guerra de Tróia, matéria da
Ilíada, é narrado com insuperável perícia por Homero. Toda essa
explosão de violência, todos esses entrechoques e traumas de tropas
explodindo em banhos de sangue, tendões partidos, ossos
desconjuntando-se, fraturas e feridas também conhecem um contraponto
luminoso.
Há passagens de uma beleza inefável, como quando o exército troiano,
madrugada a meio, aguarda na planície, pontilhada de fogueiras, a
“aurora de róseos dedos” para entrar em ação. A natureza em volta
assoma transfigurada, de uma nitidez encantatória:
Então seus espíritos se enlevaram
No que tomaram posições sobre os trilhos da guerra
Por toda noite, em meio a incontáveis fogueiras.
Assim, quando, no céu, surgem, cintilantes estrelas
Ao redor da esplêndida lua, em toda sua glória,
E o vento abranda em calmaria, assomam
Todos os mirantes, os cimos mais altos, os vales
E, em deriva do éter inefável, todos os astros
E a alma do pastor deleita-se - tantos fogos
Crepitando entre as naus e o curso do Xanto,
Ardendo nas fogueiras acesas pelos troianos,
Deitando sombras sobre suas muralhas.
Mil fogueiras luzindo pela planície,
E em torno de cada clarão, cinqüenta soldados;
Os cavalos ruminando a cevada branca e a espelta
De pé, ao lado dos carros, no aguardo da aurora.9
[VIII, 638-654]
Num comentário de Bernard Knox: “Estas com certeza são as colinas
mais nítidas, as estrelas mais brilhantes, e o fogo mais aceso de
toda a poesia, e qualquer um que já entrou em batalha sabe o quão
verdadeiros são esses versos, quão nítido, memorável, delicado é
cada detalhe da paisagem que o soldado teme estar vendo pela última
vez”. [p.30]
Ao lado de muita atrocidade, de membros que se desmontam, do fôlego
que foge das narinas, da sombra que vela os olhos para sempre, mesmo
nessas cruentas cenas de batalha, há uma carga lírica
impressionante. É o caso da descrição da morte do jovem Gorgítion,
“bravo filho de Príamo”, que é acertado no peito por uma flecha
desferida pela corda de tripa do arco de Teucro:
Tal como a dormideira, no jardim, inclina
A cabeça de banda sob o peso de seus brotos
E das chuvas da primavera, assim pendeu para o lado
A cabeça de Gorgítion, envolta no capacete.10
[VIII, 349-352]
Linhas como estas nos dão a dimensão da literatura como experiência
universal. Elas resguardam um quê da nobreza pictórica dos grandes
poetas chineses da dinastia T’ang. E bem poderiam ter sido escritas
por Du Fu, Li Bai ou Wang Wei. Nem sempre Homero canta a morte de
guerreiros mais experientes com a mesma voltagem lírica com que
retrata a deste adolescente ceifado em batalha no verdor dos anos.
Outra fatura poética muito própria da Ilíada trata-se da densa
beleza dos epítetos ornamentais. Eles estão presentes a cada
aparição de um herói, de um deus, de um lugar, da menção a um dos
povos em guerra, ou mesmo a um objeto familiar. Aquiles pode ser
“brilhante”, “semelhante a um Deus”, “de pés ligeiros”; Ulisses, “o
ardiloso”, “glória dos aqueus”, “comparável a Zeus em Prudência”,
“paciente e divino”; Diomedes, “bom para o grito de guerra”, assim
como Menelau; Aurora, “filha da bruma”, “do véu de açafrão”, “de
róseos dedos”, “do belo trono”; Tróia, “de largas ruas”, “de belas
muralhas”, “Ílion escarpada”, “Ílion de fronte sobranceira”; as naus
aquéias são “bem carpinteiradas”, “côncavas”, “cavas”, “negras”,
“finas”; Ártemis é “a que dispara flechas”; Zeus, “o ajuntador de
nuvens”, “o portador da égide”, “o que vê de longe”; Hermes, “o
muito benfazejo”; Latona, a “de belas faces”; etc. Como estamos
lidando com um poema escrito que deve muito à tradição oral, notem
que cada epíteto se apresenta como uma opção métrica. Ao poeta,
importa pouco se, no momento da aplicação do epíteto, Ulisses, por
exemplo, é “comparável a Zeus em prudência” ou “ardiloso”, desde que
a métrica seja preenchida. Os epítetos foram criados, assim, para
suprir as demandas do metro da poesia heróica grega, o datílico
hexâmetro, abrindo possibilidades de preenchê-lo de diferentes
formas de acordo com as necessidades do poeta.
Também sobressai na Ilíada a secundaridade dos deuses:
Pois Homero, penso, quando nos apresenta as feridas dos deuses, suas
cóleras, suas vinganças, suas lágrimas, suas cadeias, suas paixões
confusas, fez dos homens que foram à Tróia, deuses, e dos deuses fez
homens. Mas a nós, na infelicidade, resta um refúgio a nossos males;
é a morte; enquanto aos deuses, não foi tanto sua natureza quanto
sua miséria que Homero fez eterna.
[LONGINO, p.56]
Os deuses são, assim, projeções potencializadas das afecções humanas
ou espelhos da natureza. Em Machado de Assis, as personagens que ele
deseja se ver de pronto livre morrem de apoplexia fulminante. Na
Ilíada, quando os deuses temem pela vida de um dos heróis, ou de
ambos, em um duelo, fazem baixar uma cortina de névoa. Embora esta
névoa nunca seja uma trégua definitiva e implique tão-só num
adiamento da morte violenta dos combatentes em questão. A névoa e a
noite são divinas. Há registro de um só combate noturno na Ilíada,
e, ainda assim, não se trata propriamente de uma batalha, mas de uma
escaramuça no entrecho de uma missão de espionagem. Logo,
desdobrando o pensamento de Longino, de fato, os deuses parecem
ainda mais caprichosos e volúveis do que homens. Pois mesmo o
truculento Aquiles tem fugazes lampejos de lucidez em que lamenta a
vanidade da guerra e relembra com nostalgia a terra distante e os
tempos de paz.
De Heitor e Aquiles, esse duplo, derivam toda a casta de heróis
nacionais que estão nas lendas de origem dos países europeus. Do Rei
Arthur a Rolando, passando pelo Cid, o português Viriato, o irlandês
Chuchulain, os heróis das sagas islandesas, o Kalevala filandês, e o
Siegfried do ciclo alemão da Niebelungenlied. Também Camões vai
insuflar algo de Aquiles na alma dos navegantes portugueses a
caminho das Índias. E, no entanto, nenhum deles será tão arquetípico
quanto seu modelo grego:
De outro modo, esse poema é algo milagroso. O pesar cai sobre a
única justa causa de pesar: a subordinação da alma à força. Ou seja,
no fim das contas, à matéria. Essa subordinação é a mesma para todos
os mortais, embora a alma a suporte de diversas maneiras, conforme o
grau de virtude. Ninguém, na Ilíada, escapa á força. Nenhum dos que
caem diante dela é visto como desprezível. Tudo o que, no íntimo da
alma e das relações humanas, foge ao império da força, é amado. Mas
amado de forma dolorosa, por causa do perigo de destruição iminente.
[WEIL II, p.64]
Da natureza noturna, entre despertar e sonho, do início do Canto X,
nos fica a suspeita de que foi daqui que Shakespeare retirou
sugestão e clima feéricos para compor a cena de Henrique V, em que o
rei percorre, anônimo, o acampamento inglês, tomando a impressão,
sondando o ânimo de seus soldados, exortando-os antes da Batalha de
Agincourt. Agamenon, antecipando as apreensões de Henrique V, também
percorre o acampamento aqueu no meio da noite, até ser interpelado
por Nestor:
Quem vem lá, ao largo das naus
Com passos solitários pela noite escura
Enquanto dormem os humanos?
Acaso procura uma mula extraviada, um companheiro?
Dize, não façais silêncio para mim - que quereis?11
[X, 94-98]
Há, porém, um guerreiro que não precisa de ninguém e que passa ao
largo disso tudo. Que passa ao largo do medo. Desse ubíquo medo.
Desse olor de carniça e morte. Da prudência desses silêncios
noturnos. Este é Aquiles, mergulhado em sua fúria devastadora,
poderoso e desgraçado, faminto de vingança e glória. Ansiando por
beber o sangue dos inimigos, feito da mesma matéria que o macabro
Coronel Kurtz, de Apocalypse Now. A certa altura, Lícaon, meio-irmão
do arqui-rival de Aquiles, Heitor, cai nas mãos do filho de Peleu
antes do desfecho fatal e lhe diz: “Não me mate! Não venho do mesmo
útero de Heitor/ Que matou o vosso amigo, vosso forte, nobre amigo”.
A resposta de Aquiles expressa um requinte sinistro:
Vamos, amigo, você também vai morrer. Para que chorar?
Até Pátroclo morreu, e era muito melhor homem que você.
E olha, vê como sou belo e forte?
Filho de um grande homem, a mãe que me pariu,
Uma deusa imortal. Mas mesmo para mim, te digo,
Morte e mão do destino estão à espreita.
Vai vir manhã, sol-posto, tarde feita
Em que um homem me vai privar da vida em batalha também
- arremessando um dardo, talvez,
Talvez tangendo de seu arco uma seta mortal.
Nisso os joelhos e o coração de Lícaon se desuniram
Ele veio ao chão, sentado, abriu os braços.
Sacando da espada cortante
Aquiles deslocou sua clavícula pelo flanco do pescoço
E dos dois gumes da lâmina só punho se enxergou.12
[XXI, 119-133]
Este passo se dá quando Aquiles volta ao combate, após a morte de
Pátroclo. E é, então, que se pode atestar seu poder de destruição em
toda sua voragem. A dimensão sórdida de sua paixão, que, entre
outras coisas, em impaciência, quer por força arrastar a si e a todo
o exército aqueu em jejum para o combate. E até isso teria
conseguido, não fosse a argumentação sensata e persuasiva de
Ulisses. Mas se outros param para se alimentar e refrigerar, Aquiles
não pode esperar. Ele não luta pelos Aqueus, por Briseida, por
Pátroclo ou por Fênix, ele luta por si, por sua honra, pela legenda
de sua posteridade. Para ele, os sucessos da guerra pouco importam.
Mesmo a morte de Pátroclo, assoma tão-só como momento oportuno,
kairós (kairóV ) para se lançar ao resgate da honra13. Ele luta de
dentro de uma fúria e de uma individualidade verdadeiramente
bestiais. O tigre de Blake, brilhando solitário pelas “florestas da
noite” é Aquiles em estado puro:
‘O homem’, nos diz Aristóteles na Política, ‘que é incapaz para o
trabalho em comum, ou que em sua auto-suficiência não tem
necessidade dos outros, não é parte da comunidade, como uma besta,
um deus.’
[APUD, KNOX, p.57]
Nos cantos XX e XXI Aquiles é esta besta, este deus, sua solidão é
demoníaca, e ele está onde sempre quis: cercado de carros, dardos,
corpos, cadáveres, suor, sangue e cavalos nitrindo. É aqui que
Aquiles melhor espelha a tragédia do homem, sem concessões: preferir
morrer cedo e gloriosamente a viver uma vida longa e doméstica, mas
fadada ao esquecimento. Ao contrário da civilidade de Heitor, que
surge abraçando a mulher e brincando com o filho, não há concessões
de ternura para Aquiles. Se tanto, ele se permite tanger a lira. Mas
só para cantar sua própria gesta.
Quando, então, finalmente está de volta a campo, o banho de sangue
se consuma. Aquiles é uma fábrica de defuntos. Um a um, de forma
altiva ou não, os mais ilustres guerreiros troianos vão morrendo na
sua mão. São tantos os cadáveres feitos por ele, que não só tingem
de vermelho como obstruem o curso do Rio Xanto. Isto suscita a fúria
do próprio rio, que inunda suas margens na tentativa de deter a
ofensiva do exército aqueu e de afogar Aquiles. Este, porém, de
início, salta por cima das poças do rio, como uma criança em seu
elemento. Sua fome de morte, sua sede de sangue atropelam a fome e a
sede física. Sua destreza na arte da guerra não pode ser detida nem
mesmo pelos elementos naturais. Somos apresentados a um engenho de
extermínio. No comentário de Knox “a violência dos Cantos XX e XXI
faz tudo que veio antes parecer brincadeira de criança”. [p.36]
Em algum reino extremo entre o animal e o divino paira o espírito de
Aquiles. Narcisista, ele se enxerga perfeito: forte, belo, nobre, o
melhor em combate. Vive dessa lenda. E, paradoxalmente, seu rancor
vem de duas fontes: 1) não ser o maior na hierarquia dos exércitos
aqueus, honra que cabe a Agamenon; e 2) ser vulnerável, apesar de
tudo - porque, no íntimo, ele sabe que o preço pago por tanta glória
é sua própria vida. Ao modo de um devoto do vodu na encruzilhada,
Aquiles já selou seu pacto. Em ação ele é mais que um predador, pois
não sabe o que é medo. Em repouso, ele é um oceano de vaidade,
“semelhante a um deus”, como reza um de seus apostos. Mas, volta e
meia, ele se lembra de que não está fora do tempo, e que sua hora
vai chegar. Este é seu ponto psicologicamente vulnerável. Seu
calcanhar do espírito.
Para Vico, Homero era um caráter semelhante ao de suas personagens.
Era tão real quanto a Esfinge, Pégaso, o Preste João, o
moto-contínuo, o ouro dos alquimistas, os heterônimos de Pessoa ou o
tema de certas monografias. O Homero de Vico assoma, assim, como uma
antologia dos contos populares da Grécia pré-clássica. Naturalmente,
posta por escrito por uma equipe de poetas e antologistas de
diferentes tempos. Para Vico, estava fora de questão que algum ser
humano, mesmo dotado da prodigiosa memória dos cegos, pudesse criar
sozinho um catálogo tão vasto de peripécias e maravilhas. Vico
dimensionou com clarividência esse mundo de paixões, rudezas e
selvagerias. Em especial, ressaltou que, quanto ao controle das
pulsões, ao grau de civilização, estaríamos tratando de um mundo
quase estranho ao nosso. Pelo menos na aparência.
Mas talvez Vico tenha esquecido de acrescentar que ele continua
muito similar ao nosso em essência, pois também se pode pressentir
Aquiles no gesto anônimo dos assassinos dos moradores de rua das
metrópoles brasileiras. É a idêntica sede de glória, que mesmo o
mais anônimo espectador nutre, e se traduz em sede de sangue. Em
pelo menos o gosto de entrever “reconhecido” e publicado o resultado
de sua ação. Sua migalha de glória. A afirmação de uma existência
precária e desimportante que é especularmente exorcizada.
Este movimento, aliás, foi modelarmente captado, entre nós, por
Euclides da Cunha. Não é por acaso que Euclides, um mestre do
oxímoro, irá chamar Canudos de “Tróia-de-taipa”. A chacina de
Canudos tem muito a ver com um sobrevôo do espírito de Aquiles.
Aqui, vestido na farda do exército brasileiro e conduzido pelo lado
mais sombrio do racionalismo positivista. E, entre, os personagens
de Os Sertões, o mais similar ao herói da Ilíada, trata-se do
impetuoso e neurastênico Cel. Moreira Cezar.
Neste sentido, Aquiles está mais vivo que nunca. A marca de Caim de
sua fúria reluz tanto no poderio militar das grandes potências
quanto no surto suicida dos terroristas seus inimigos. As agruras
das duas guerras mundiais, a barbárie dos campos de extermínio, a
noção do super-homem em Nietzsche, a epicidade musical de Wagner, a
rapacidade da Gestapo, os porões das ditaduras latino-americanas, os
genocídios perpetrados em África, a Guerra do Vietnã, os esquadrões
da morte nas favelas brasileiras, o recrudescimento da xenofobia na
Europa, as incessantes turbulências no Iraque e no Afeganistão, a
recente chacina em Madri e os desígnios de líderes como Bush, Saddam
ou Sharon são as jóias que adornam seu elmo reluzente.
A indomável, quase cruel, vividez de linguagem na Ilíada fez o
pseudo-Longino acreditar que Homero só poderia ter escrito o poema
antes da velhice. Para então, já com têmporas brancas, haver
redigido a Odisséia. Para os antigos, de fato, não se punha em
questão entre qual dos épicos era o mais sublime e elevado:
Ele compôs o corpo inteiro da Ilíada, escrito na plenitude do sopro,
prenhe de ação e combate, enquanto o da Odisséia, em grande parte,
encheu de histórias, o que é próprio da velhice. O que faz que na
Odisséia se possa comparar Homero a um sol poente, cuja grandeza
subsiste sem a força. Pois aí ele não conserva a mesma tensão desses
famosos poemas consagrados a Ílion, não mais a igualdade dessas
alturas que não conhecem envergamento, nem a agilidade de se voltar
fundada sobre o sentido da cidade e sobre o acúmulo vigoroso de
imagens vindas da realidade.[LONGINO, p.58, grifos nossos]
“Não é à persuasão, mas ao êxtase, que a natureza sublime conduz os
ouvintes” [p.44], nos diz Longino, para quem Homero era o modelo,
por excelência, de sublimidade. “No aspiro a ser Esopo. Mis cuentos,
como los de Las mil y una noches, quieren conmover y no persuadir”
[p.57], nos diz Borges no reflexo do espelho. Estes sabem que
reduzir obras como a Ilíada a uma leitura ideologizante ou amparada
por ralos conceitos tão em voga nos cursos de pós-graduação - e que
respondem por nomes diversos como “intertextualidade”, “estudos
culturais”, “gênero”, “women’s ou men’s studies”, “leitura
pós-colonial”, “raça e narração”, “escritura de minorias”, “etnoliteratura”,
“desconstrução”, “indecibilidade”, “revisão de cânon”, etc. - não
passa de uma circunstância que tem algo entre cômico e efêmero. Um
pé na literatura outro num relativismo antropológico de tirar
risada.
Por exemplo, aplicar as teorias de Derrida para descobrir o que
Homero “não quis dizer” na Ilíada mas o que os homens, erroneamente,
acharam que ele “quis dizer”, parece um exercício meio fortuito.
Especialmente quando se desprezam dois mil e setecentos anos de
exegese sobre o poema. A linguagem de Homero é de uma clareza
comovente. Esconde muito menos, como vimos, que a linguagem bíblica.
Platão, quando, pela voz de Sócrates, escorraça os poetas da cidade
modelo, no Livro X d’A República, sob a acusação de tão-só copiar as
sombras das formas ideais - e, portanto, criar inverdades - não se
furta de fazer uma pequena ressalva a Homero, ou quase lamentar que
ele também estivesse incluído na categoria dos que deveriam ser
expulsos em nome do bem-comum:
‘Me parece bem evidente’, disse-lhe eu, ‘que toda essa linhagem de
finos escritores de tragédias descende de Homero - são enfim,
estudantes e discípulos dele. E isto torna difícil dizer o que tenho
de dizer [ou seja, que os poetas devem ser expulsos], porque guardo
uma espécie de admiração, de fascínio juvenil por Homero. Ainda
assim, devemos dar mais valor à verdade que a qualquer indivíduo’.
[PLATÃO, p. 344]
Na Ilíada a única possibilidade de luz, de redenção para o ser
humano, brota de outros seres humanos. De uma justaposição, de um
suplemento que jamais se desvelará integralmente, mas pode se tornar
menos opaco mediante a experiência do convívio com o outro. O brilho
do olhar. A corrente de empatia que se acende mesmo entre anônimos
cujos olhares se cruzam no meio de uma multidão. Uma senha. Este é o
olhar que restitui um rosto humano para quem era, até então, vulto
impreciso. Sombra retorcida de Jó sobre um cenário gris. Súdito
insignificante no aguardo de uma improvável mensagem imperial.
Desterrado na província mais remota de si mesmo. E, então, sobrevém
a luz na face do outro. Feixe e enlace de diferenças.
A Ilíada é, como ressalta Rexroth, uma dupla tragédia: a de Heitor e
dos troianos; a de Aquiles e dos aqueus. Não há bom termo. No fim de
tudo, ninguém pode cantar vitória. Entre mortos e feridos, entre
vencedores e vencidos, todos saem perdendo diante do que Homero
chama de “a bocarra sangrenta da guerra”. E, no entanto, mesmo à
sombra, entre dentes famintos no interior dessa boca insaciável,
desse buraco negro, dessa cornucópia invertida, se pode divisar uma
zona de luz. Esta se encontra no comportamento cívico e gentil de
Heitor, ou ainda no momento em que Aquiles, descendo do pedestal de
herói empatiza com o luto de Príamo, quando este vem em busca do
cadáver do filho.
Aqui, se pode traçar um paralelo entre a paz e a pedra de Sísifo.
Ter paz equivaleria a interromper o movimento da pedra. Mas o
movimento da pedra, que se chama guerra, uma vez começado, está por
toda parte, e não pode ser detido. Quer dizer, mesmo quando cessa,
sua inércia é infinita. O rastro de destruição e morte abre uma
chaga que não cicatriza nunca, pois para sempre não vai haver uma
cidade onde antes havia. Ao contrário do final feliz e restaurador
da Odisséia, a Ilíada termina com um funeral. O funeral de um
guerreiro nobre, Heitor - o único que, apesar de forte e digno,
desoladamente mostra uma face frágil e treme diante da morte ao se
sentir abandonado por deuses e homens. Assim, o perfil de Ulisses
tem mais a ver com o deslimite, no sentido de instaurar um vago “...
e foram felizes para sempre”. Este epílogo vai ser retomado ad
infinitum na literatura Ocidental. Do contrário, a história da ira
de Aquiles nos repõe a todo instante diante de nosso limite extremo:
a morte.
A claridade é o atributo mais evidente desse texto que está na
aurora de todos os textos, no Ocidente. Uma transparência, daquelas
de se enxergar os seixos no leito do rio depois das grandes chuvas,
ao romper do dia. A limpidez dos versos homéricos sugere algo
escrito pelos “róseos dedos” de amanhecer da deusa Eos. Eis porque,
Bíblia aparte, Aquiles vem sendo, por quase três mil anos, o retrato
mais fiel da condição humana.
Nota: Os trechos citados são adaptações livres feitas a partir das
diferentes versões da Ilíada coligidas na bibliografia.
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WITTGENSTEIN, Cultura e Valor, (tradução de Jorge MENDES), Edições
70, Lisboa, 1996
Notas:
[1] Em ocasiões diversas, Heaney vem sendo atacado por ambos os
lados. Os unionistas execram o poeta católico como um “bem conhecido
propagandista do papismo”. Os simpatizantes republicanos lamentam
sua ambigüidade política, culpando-o por não tomar uma atitude
inequívoca de apoio ao movimento de independência em relação ao
Reino Unido. Além disso, outros interpretam mal sua analogia do
conflito atual com sacrifícios humanos e ritos religiosos
pré-históricos, como se se tratasse de uma apologia à violência.
Ainda assim, é sua insistência de enxergar o conflito pelos diversos
pontos de vista - protestante e católico, político e pessoal - que
empresta a seu trabalho um alcance universal e possibilita-lhe ecoar
ressonâncias míticas e literárias. Quando Heaney implora ao
historiador romano Tácito a retornar à Irlanda para testemunhar
“como nós massacramos para o bem-comum”, Heaney não toma partido ou
decreta culpas, mas firmemente dimensiona uma inexorável sede de
sangue que transcende a religião. Seu apego não é a uma causa, mas a
uma estética. Seu visível afastamento está a serviço de uma visão
poética; tomar partido implicaria diluir suas percepções em retórica
rala. “A poesia nasce de uma desavença interior”, sustenta Heaney
citando Yeats. “A desavença com os outros é retórica”.
(COVINGTON, Richard)
[2] No momento em que este ensaio estava sendo escrito (meio
setembro de 2004), um apresentador da televisão brasileira e
escritor de best-sellers, em seu talk-show, disse que nunca se teve
tanta certeza de combater do “lado certo” como na II Guerra Mundial.
Essa opinião pode ser tão apressada quanto o tempo televisivo. Pode
ser perigosa. Há nela um travo de perversa ingenuidade. Não existem
“lados certos” numa guerra. Bastaria pensar nos milhares, talvez
milhões de civis alemães que nada tinham a ver com o regime nazista:
apenas estavam ali, sob o despejo incessante dos bombardeiros
aliados. Além disso, o simples fato de se ter Stálin como “aliado”
desautorizaria qualquer “lado certo”. Na Ilíada, Heitor e Aquiles,
por razões diversas, estavam acima do ethos da guerra. Aquiles,
porque lutava não pelos aqueus, pois os viu morrer como piolhos do
convés de seu navio, quando estava indisposto com Agamenon, e não
moveu palha. E Heitor, porque - não obstante a famosa frase, que
sugere preceder a insânia nacionalista de nossos dias (“Lute pelo
seu país, este é o melhor, o único presságio”) - parece nitidamente
desacreditar que qualquer esforço pudesse salvar o que já estava
arruinado. Pensar que um ou outro possa ser modelo de ação, para
além da ficção, da trama épica de Homero, é um pouco insano. Mas tem
sido assim.
[3] WITTGENSTEIN, p. 14
[4] VICO, p. 417
[5] De fato, quando Borges escreve um conto chamado “Deutsches
Requiem”, em 1946, lança mão desta perspectiva. O narrador, Zur
Linden, trata-se de um ex-comandante de campo de concentração que
intuía, desde o início, a vanidade do esforço de guerra alemão.
Sabia previamente que, de algum modo, as idéias de Nietzsche e
Spengler não podiam levar a outra coisa senão a uma desonrosa e
arrasadora derrota. Achava, inclusive, que o próprio Hitler
compartilhava desse mesmo pensamento. Que os alemães quiseram ser
derrotados. E, no entanto, poucas horas antes de sua própria
execução, ele não modifica uma vírgula que seja de seu ponto de
vista. Especialmente em relação a um certo prisioneiro judeu, David
Jerusalem, poeta pietista e figura humana de extrema cordura (“Jerusalem
se alegra de cada cosa, con minucioso amor”) e que Zur Linden odiou
do fundo de seu coração justo por lhe ter quase desviado para o
caminho da compaixão.
[6] SCHLEGEL, p. 105
[7] Para se inteirar melhor dos conceitos discutidos neste e no
próximo parágrafo ver ELIADE, ps. 25-61
[8] Ou na tradução erudita de Manuel Odorico Mendes, que está para o
português assim como a de Pope para o inglês:
[...] Como as folhas somos;
Que umas o vento as leva emurchecidas,
Outras brotam vernais e as cria a selva:
Tal nasce e tal acaba a gente humana.
Ou na versão de Mendes:
Ante os fogos pernoitam, quando no éter
Sereno, em cerco da fulgente lua,
As formosas estrelas aparecem,
Grutas, serros e brenhas aclarando:
Abre-se imensa a região sidérea,
E o pastor em si folga: de Ílio em face
Iam-se tantos lumes acendendo
Entre o Xanto e os baixéis. De mil fogueiras
Homens cinqüenta a cada um assistem.
Farro e espelta os corcéis comendo, esperam
A aurora apoltronada em pulcro sólio.
(MENDES, p. 162)
[10] Na versão de Mendes:
Qual dormideria em horto ao peso dobra
Do fruto e verno humor, a testa o jovem
Do elmo agrava inclina. [...]
[11] Em Mendes:
[...] “Quem ronda o campo e a frota
Por treva espessa, quando os mais repousam?
Buscas um guarda ou companheiro? Fala;
Que hás mister? Sem falar não te apropinques.”
[12] Em Mendes:
(................................................................)
“Amigo, morre: por que em vão pranteias?”.
Também, melhor do que és, morreu Pátroclo.
Vês-me aqui belo e bravo, de mãe deusa
E ilustre pai gerado? pois violento
Fado me ocorrerá, quer manhã seja,
Ou tarde ou meio dia, quando a vida
Alguém de hasta me trunque ou seta alada”.
Esmorecido e de joelhos frouxos.
Larga o pique e sentado as mãos protende:
Logo o aucípite gládio puxa Aquiles,
Entre a clavícula e a cerviz lhe enterra;
[13] O kairós (momento oportuno, “ação mais conveniente”) trata-se
de um conceito muito caro aos gregos. Sua alegoria física é um puxão
nos cabelos. E é exatamente isto que ocorre quando a deusa Athena
consegue aplacar o ímpeto de Aquiles no instante em que este já
desembainhava a espada para matar Agamenon, no Canto I: “ela o
agarrou pelos flavos cabelos” [I, 232] (Na tradução de Mendes:
“Atrás o aferra pela flava coma”).
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