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                   O
                  americano, outra
                  vez!
                  
                   
                  RICHARD
                  FEYNMAN
                   
                   
                    
                  Richard
                  P. Feynman (1918-1988) foi um
                  cientista que, ainda muito jovem, em 1942, trabalhou como líder
                  de grupo de física teórica no Laboratório de Los Alamos,
                  que desenvolvia o projeto da fissão nuclear. Ganhou o Prêmio
                  Nobel de física em 1965 e notabilizou-se também por sua
                  personalidade alegre e espontânea, servindo de modelo para
                  muitos personagens de Hollywood, do cientista jovem e genial.
                  Nos anos 50, permaneceu no Brasil por quase um ano trabalhando
                  com cientistas brasileiros e o presente artigo é, na verdade,
                  um relato de sua estada entre nós. O texto é saborosamente
                  espirituoso, como era de seu feitio, e foi extraído de seu
                  livro de memórias 
                  "Deve ser Brincadeira, Sr. Feynman!",
                  recentemente publicado pela Editora Universidade de Brasília,
                  em co-edição com a Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo.
                  
                  
                   
                   
                   
                  
                   
                  Uma
                  vez dei carona a uma pessoa que me
                  contou como a América do Sul era interessante. Eu disse que a
                  língua é diferente, mas ele me disse para ir em frente e
                  aprender  não é um grande problema. Aí pensei, é uma boa
                  idéia: vou para a América do Sul. Cornell tinha algumas
                  aulas de língua estrangeira que seguiam um método utilizado
                  durante a guerra, no qual pequenos grupos de cerca de dez
                  alunos e um falante nativo conversavam apenas língua
                  estrangeira- nada além disso. Como eu era um professor
                  relativamente jovem em Cornell, resolvi tomar as aulas como se
                  fosse um estudante regular. E, uma vez
                  que eu ainda não sabia aonde ia acabar na América do Sul,
                  resolvi estudar espanhol, porque lá a grande maioria dos países
                  fala espanhol.
                  
                   
                   Assim,
                  quando chegou a época de fazer a matrícula para os cursos,
                  estávamos parados lá fora, prontos para entrar na sala,
                  quando essa loira voluptuosa apareceu. Sabe quando você sente
                  algo assim, UAU? Ela era o máximo. Eu disse para mim mesmo:
                  "Talvez ela esteja na aula de espanhol  vai ser 
                  ótimo!" Mas, não, ela entrou na aula de
                  português. Aí eu percebi que também deveria estudar português.
                  Comecei a ir atrás dela, quando essa atitude anglo-saxônica
                  que eu tenho disse: Não, esse não é um bom motivo para
                  escolher qual língua estudar". Sendo assim, voltei e
                  matriculei-me na aula de espanhol, para meu grande desespero.
                  
                   
                   Um
                  tempo depois, eu estava na Sociedade de Física de Nova York e
                  me vi sentado perto de Jaime Tiomno, do Brasil. Ele perguntou:
                  "O que você vai fazer no próximo verão?"  Estou
                  pensando em ir à América do Sul.  Ah! Por que você não
                  vai ao Brasil? Eu consigo um cargo para você no Centro de
                  Pesquisa em Física. Agora eu tinha de converter todo aquele
                  espanhol em português! Descobri um estudante graduado de
                  português em Cornell que me deu aulas duas vezes por semana,
                  e eu pude alternar com o que eu tinha aprendido.
                  
                   
                  No
                  avião para o Brasil, comecei o vôo sentado perto de um cara
                  da Colômbia, que só falava espanhol; eu não conversei com
                  ele porque eu não queria me confundir de novo. Mas, bem na
                  minha frente, estavam sentados dois caras que estavam
                  conversando em português. Eu nunca tinha ouvido português de
                  verdade, eu tinha ouvido aquele professor que falava muito
                  devagar e claro. Assim, cá estão esses dois caras
                  conversando com ginga, 
                  brrrrrrr-a-ta brrrrrrr-a-ta, e eu não pude
                  sequer ouvir a palavra que se utilizava para "eu",
                  para "isso" ou qualquer coisa do tipo. Por fim,
                  quando fizemos uma parada para abastecimento em Trinidad, fui
                  até os dois rapazes e disse, em um português muito lento ou
                  no que eu achava ser português: "Com licença... vocês
                  conseguem entender... o que estou falando com vocês
                  agora?" Pues não, por que não?  eles responderam.
                  Expliquei da melhor forma que pude que eu estava tendo aulas
                  de português havia uns meses, mas eu nunca havia ouvido o
                  português falado em conversas, e eu estava ouvindo eles dois
                  conversarem no avião, mas não entendia uma palavra do que
                  eles diziam. "Ah", eles começaram a rir, " Não
                  é português! É ladão! Judeu!" O que eles estavam
                  conversando era para o português assim como o iídiche para o
                  alemão. Você pode imaginar uma pessoa que tenha estudado
                  alemão sentado atrás de dois caras conversando em iídiche,
                  tentando descobrir qual é o problema. Obviamente, é alemão,
                  mas não funciona. Ele não deve ter aprendido alemão muito
                  bem. Quando voltamos ao avião, eles me mostraram um outro
                  homem que realmente falava português, então sentei perto
                  dele. Ele estava estudando neurocirurgia em Maryland; então
                  era muito fácil conversar com ele  desde que fosse sobre cirurgia
                  neural, o cerebelo e outras coisas complicadas. As
                  longas palavras eram realmente fáceis de se traduzir para o
                  português, porque a única diferença é o final: "-tion"
                  em inglês é "-ção" em português; "-ly"
                  é "-mente", e assim por diante. Mas, quando ele
                  olhou para fora e disse algo simples, eu fiquei perdido: não
                  consegui decifrar "o céu é azul".
                  
                   
                  Desci
                  do avião em Recife (o Governo brasileiro ia pagar a parte de
                  Recife para o Rio), e o sogro de César Lattes, que ora o
                  diretor do Centro de Pesquisa no Rio, junto com sua esposa e
                  um outro homem, foi me buscar. Enquanto os homens estavam
                  pegando minha bagagem, a mulher começou a conversar comigo em
                  português: "Você fala português? Que ótimo! Como você
                  aprendeu português?" Respondi devagar, com grande esforço:
                  "Primeiro comecei a aprender espanhol... depois descobri
                  que ia para o Brasil..." Aí eu quis dizer: "Então,
                  aprendi português", mas não conseguia lembrar a palavra
                  "então". Eu sabia como construir palavras grandes,
                  então terminei a frase assim: "conseqüentemente, aprendi
                  português!"
                  
                   
                  Quando
                  os dois homens voltaram com a bagagem, ela disse: "Olha,
                  ele fala português! E com palavras tão maravilhosas: conseqüentemente!"
                  Então ouvi um anúncio pelo alto-falante. O vôo para o Rio
                  havia sido cancelado e não teria outro até terça-feira  e
                  eu tinha de estar no Rio, no mais tardar, até segunda-feira.
                  Fiquei desapontado. "Talvez haja algum avião de carga.
                  Eu vou em um avião de carga", eu disse.  Professor!,
                  eles disseram, aqui em Recife é muito bom. Nós vamos dar uma
                  volta com o senhor. Por que o senhor não relaxa? O senhor está
                  no 
                  Brasil.
                  
                   
                  Naquela
                  noite, fui dar uma volta na cidade e vi uma pequena multidão
                  parada ao redor de um grande buraco retangular na estrada 
                  havia sido cavado para esgoto ou algo assim  e lá, parado
                  bem no meio do buraco, estava um carro. Era maravilhoso: ele
                  cabia direitinho, com seu teto no nível da estrada. Os
                  trabalhadores não tinham se dado ao trabalho de sinalizar, e
                  o cara tinha simplesmente caído no buraco. Percebi uma
                  diferença: quando nós cavamos um buraco, haverá todo
                  tipo de sinais e luzes para nos proteger. No Brasil, eles
                  cavam um buraco e, quando acaba a jornada de trabalho, eles
                  simplesmente vão embora. 
                  De qualquer forma, Recife era uma cidade agradável, e
                  eu 
                  realmente esperei até a próxima terça para
                  viajar para o Rio.
                  
                   
                  Quando
                  cheguei ao Rio, encontrei César Lattes. A rede de TV nacional
                  queria tirar umas fotos de nosso encontro; então eles começaram
                  a filmar, mas sem som. O câmera falou: "Façam como se
                  estivessem conversando. Falem alguma coisa  qualquer
                  coisa". Então Lattes perguntou-me: "Você já
                  encontrou um dicionário ambulante?" Naquela noite, o público
                  da TV brasileira viu o diretor do Centro de Pesquisa em Física
                  dar boas-vindas ao professor visitante dos Estados Unidos, mas
                  poucos sabiam que o assunto da conversa era encontrar uma
                  garota para passar a noite!
                  
                   
                  Quando
                  cheguei ao centro, tivemos de decidir quando eu apresentaria
                  minhas palestras  se pela manhã ou à tarde. Lattes disse:
                  "Os estudantes preferem à tarde".  Então vamos
                  fazer à tarde.  Mas a praia é boa à tarde; então por que
                  você não dá as palestras pela manhã e pode ir à praia à
                  tarde? Mas você disse que os estudantes preferem à tarde. 
                  Não se preocupe com isso. Faça o que for mais conveniente
                  para você! Aproveite a praia à tarde. Então aprendi
                  como ver a vida de uma forma diferente de como é de onde
                  venho. Primeiro, eles não tinham a mesma pressa que eu.
                  Segundo, se é melhor para você, não se importe! Então dei
                  as palestras pela manhã e fui à praia pela tarde. E se eu
                  tivesse aprendido isso antes, teria aprendido português em
                  primeiro lugar
                  em vez de espanhol. Pensei,
                  a princípio, que faria minhas palestras em inglês, mas
                  percebi uma coisa: quando os estudantes explicavam algo para
                  mim em português, eu não entendia muito bem, apesar de saber
                  um pouco de português. Não ficava muito claro para mim se
                  eles estavam dizendo "aumento" ou "diminuição",
                  ou "não aumentar", ou "não diminuir", ou
                  "diminuir vagarosamente". Mas quando lutavam com o
                  inglês, eles diziam: "ahp" ou "doon", e
                  eu sabia como era, apesar da pronúncia ser ruim e a gramática
                  toda bagunçada. Aí descobri que, se quisesse conversar com
                  eles e tentar ensiná-los, seria melhor eu falar em português,
                  mesmo sendo precário como era. Seria mais fácil para eles
                  entenderem. 
                  
                   
                  Na
                  primeira vez que estive no Brasil,
                  por seis meses, fui convidado a fazer uma apresentação na
                  Academia Brasileira de Ciências, sobre algum trabalho em
                  eletrodinâmica quântica que eu havia acabado de fazer.
                  Pensei que faria a palestra em português, e dois estudantes
                  do centro disseram que me ajudariam. Comecei escrevendo minha
                  palestra em um português totalmente confuso. Escrevi sozinho,
                  porque, se eles tivesses escrito, haveria muitas palavras que
                  eu não sabia e não conseguia pronunciar corretamente. Então
                  escrevi a palestra e eles ajeitaram a gramática, consertaram
                  as palavras e deram uma melhorada. Mas ainda estava em um nível
                  que eu conseguia ler com facilidade e saber mais ou menos o
                  que estava falando. Eles ensaiaram comigo para que eu
                  conseguisse ter uma pronúncia absolutamente correta: o
                  "de" deveria ficar entre "dé" e "dê"
                   tinha de ser exatamente assim. Cheguei à reunião da
                  Academia Brasileira de Ciências, e o primeiro palestrante, um
                  químico, levantou-se e deu a palestra  em inglês. Ele
                  estava tentando ser educado, ou o quê? Eu não conseguia
                  entender o que ele estava dizendo, por causa de sua pronúncia,
                  que era péssima, mas talvez alguma outra
                  pessoa tivesse o mesmo sotaque e tenha conseguido entendê-lo;
                  eu não sei. Então o próximo palestrante levanta-se e dá a
                  palestra em 
                  
                  inglês!
                  
                   
                  Quando
                  chegou a minha vez, levantei-me e
                  disse: "Desculpem; eu não havia percebido que a língua
                  oficial da Academia Brasileira de Ciências era inglês, e por
                  isso não preparei minha palestra em inglês. Então, por
                  favor, desculpem-me, mas terei de fazê-la em português".
                  Daí eu li o texto, e todo mundo gostou muito. A próxima
                  pessoa a se levantar diz: "Seguindo o exemplo do meu
                  colega dos Estados Unidos, também farei minha apresentação
                  em português". Então, até onde sei, mudei a tradição
                  da língua utilizada na Academia Brasileira de Ciências.
                  
                   
                  Alguns
                  anos mais tarde, encontrei um cara do Brasil que repetiu
                  exatamente as mesmas palavras que eu usara no começo de minha
                  apresentação para a Academia. Parece que ela realmente
                  causou algum impacto.Mas a língua sempre foi difícil para
                  mim e eu continuei a trabalhar o tempo todo, lendo jornais, e
                  coisas assim. Continuei a dar minhas palestras em português
                   o que eu chamo de "Português do Feynman",
                  que eu sabia que não podia ser o mesmo que o verdadeiro
                  português, porque eu entendia o que estava falando e não
                  conseguia entender o que as pessoas na rua falavam. Como eu
                  gostei muito do Brasil a primeira vez
                  que estive lá, voltei um ano depois, dessa vez
                  por dez meses. Nessa época, fiz apresentações na
                  Universidade do Rio, que deveria me pagar, mas nunca pagou.
                  Assim, o Centro continuou a dar-me o dinheiro que eu deveria
                  ganhar da universidade.
                  
                   
                  Por
                  fim, acabei ficando em um hotel na praia de Copacabana chamado
                  Miramar. Por um tempo, fiquei em um quarto no décimo terceiro
                  andar, de onde eu podia ver o oceano pela minha janela e
                  observar as garotas na praia. 
                  
                   
                  Acontece
                  que esse era o hotel onde os pilotos e as aeromoças da Pan
                  American Airlines ficavam quando podiam "fazer
                  pouso"  uma expressão que sempre me incomodou um
                  pouco. Eles sempre ficavam no décimo quarto andar, e toda vez,
                  tarde da noite, havia barulho e movimento no elevador.
                  
                   
                   Uma
                  vez, saí de viagem por algumas
                  semanas e, quando voltei, o gerente me disse que precisou
                  reservar o meu quarto para outra
                  pessoa, uma vez que era o último
                  quarto vazio disponível e ele havia transferido minha bagagem
                  para um quarto novo. Era um quarto em cima da cozinha, no qual
                  as pessoas não ficavam muito tempo. O gerente deve ter
                  imaginado que eu seria a última pessoa a ver as vantagens
                  daquele quarto com suficiente clareza para tolerar os cheiros
                  e não reclamar. Eu não reclamei: ele era no quarto andar,
                  perto das aeromoças. Resolveu uma porção de problemas para
                  mim. As pessoas das linhas aéreas estavam chateadas com suas
                  vidas, estranhamente
                  muito chateadas, de alguma forma, e à noite geralmente iam
                  aos bares beber. Eu gostava de todos eles e, para ser sociável,
                  eu ia com eles ao bar tomar alguns drinques, várias noites
                  por semana. Um dia, cerca de 3:30 da tarde, eu estava andando
                  pelo calçadão de Copacabana e passei por um bar. De repente,
                  tive esse sentimento forte, tremendo: "É exatamente o
                  que quero; servirá direitinho. Eu adoraria tomar um drinque
                  agora!"
                  
                   
                  Comecei
                  a entrar no bar e, de repente, pensei comigo mesmo:
                  "Espere um minuto! Estamos no meio da tarde. Não tem
                  ninguém aqui!
                  
                  Não
                  há razão social para beber. Por que você está sentindo
                  tanta necessidade de beber?"  e eu fiquei
                  apavorado. Desde então, eu nunca mais bebi. Acho que
                  realmente não estava correndo risco algum, porque achei muito
                  fácil parar. Mas aquele sentimento forte que eu não
                  conseguia entender apavorou-me. Você sabe, eu acho tanta graça
                  em 
                  pensar que não quero destruir essa máquina
                  maravilhosa que faz a vida ser uma bola. É o mesmo motivo
                  pelo qual fiquei tão relutante em experimentar o LSD, a
                  despeito de minha curiosidade sobre alucinações.
                  
                   
                  Perto
                  do final daquele ano no Brasil, levei uma das aeromoças uma
                  garota adorável com tranças  ao museu. Quando passamos
                  pela sessão egípcia, peguei-me falando para ela coisas do
                  tipo: "As asas nos sarcófagos querem dizer isso e isso,
                  e nesses vasos eles costumavam colocar as entranhas, e na
                  quina tinha de ter isso e aquilo..." e pensei comigo
                  mesmo: "Você sabe onde aprendeu essa coisa toda? Com
                  Mary Lou"  e senti falta dela. Conheci Mary Lou em
                  Cornell e, mais tarde, quando vim para Pasadena, descobri que
                  ela viera para Westwood, ali perto. Gostei dela por um tempo,
                  mas brigávamos muito; por fim, decidimos que não tinha
                  chance e nos separamos. Mas depois de ficar saindo um ano com
                  essas aeromoças e não chegar a lugar algum, sentia-me
                  frustrado. Então, quando estava contando essas coisas para
                  aquela garota, pensei que Mary Lou era realmente bastante
                  maravilhosa e que nós não devíamos ter brigado tanto.
                  
                   
                  Escrevi
                  uma carta para ela e fiz o pedido. Alguém que tenha um pouco
                  de sabedoria me diria que isso era perigoso: quando se está
                  longe, sem nada além do papel, e está se sentindo só, você
                  lembra todas as coisas boas e não consegue lembrar o motivo
                  das brigas. E isso não funcionou. As brigas começaram
                  imediatamente, e o casamento só durou dois anos.
                  
                   
                  Tinha
                  um sujeito na Embaixada Americana que sabia que eu gostava de
                  samba. Acho que comentei com ele que quando estive no Brasil
                  pela primeira vez eu havia visto
                  um grupo ensaiando samba na rua e eu tinha vontade de conhecer
                  melhor a música brasileira.
                  
                   
                  Ele
                  disse que um pequeno grupo, chamado grupo regional, ensaiava
                  na casa dele toda semana e eu poderia ir lá para ouvir.
                  
                   
                  Havia
                  três ou quatro pessoas  um era vigia do prédio , e eles
                  tocavam música calma no apartamento dele; eles não tinham
                  outro lugar para ensaiar. Um dos caras tinha um pandeiro e o
                  outro um cavaquinho. Fiquei ouvindo o bater do tambor em algum
                  lugar, mas não havia tambor! Por fim, descobri que era o
                  pandeiro que o cara estava tocando de um modo complicado,
                  girando o pulso e batendo no couro com o dedo. Achei
                  interessante e aprendi, mais ou menos, a tocar pandeiro.
                  
                   
                  Então
                  começou a chegar a época do carnaval. É quando as novas músicas
                  são apresentadas. Eles não lançam músicas e discos novos o
                  tempo
                  todo; eles lançam todos durante o carnaval, e é muito
                  excitante. Acontece que o vigia era o compositor de uma
                  pequena escola de samba da praia de Copacabana, chamada Farsantes
                  de Copacabana. Para mim, parecia ótimo, e ele me convidou
                  para sair na escola. Essa escola de samba era uma coisa na
                  qual os caras das favelas desciam e encontravam-se atrás de
                  alguma construção e ensaiavam a nova música para o
                  carnaval. Escolhi tocar frigideira. É um instrumento
                  de acompanhamento que faz um som rápido, tinido, que segue o
                  ritmo e a música principal do samba. Então tentei tocar
                  aquela coisa, e estava indo tudo bem. Estávamos ensaiando, a
                  música soava bem e estávamos em mais ou menos sessenta,
                  quando o chefe da bateria, um homem grande, preto, gritou:
                  "PÁRA! Pára aí, pára aí  espera um minuto!" E
                  todo mundo parou. "Tem alguma coisa errada com as
                  frigideiras!", ele gritou. "O americano
                  outra vez!"
                  
                   
                  Fiquei
                  sem graça. Eu ensaiava o tempo todo. Eu andava pela praia
                  segurando duas varetas que eu havia pegado, treinando o
                  movimento de rotação dos pulsos, ensaiando, ensaiando,
                  ensaiando. Eu ensaiava o tempo todo, mas mesmo assim, me
                  sentia inferior como se estivesse em algum tipo de encrenca e
                  realmente não estivesse à altura. Bem, o carnaval estava
                  chegando, e uma noite o chefe da banda estava conversando com
                  outro sujeito e começou a separar as pessoas: "Você!",
                  ele disse para um cara que tocava trompa. "Você!",
                  ele disse para um cantor. "Você!"  e apontou para
                  mim. Deduzi que estávamos fora. Ele disse: "Vão lá
                  para a frente!"
                  
                   
                  Fomos
                  para a frente da construção  nós cinco ou seis , e
                  havia um velho Cadillac conversível, com sua capota abaixada.
                  "Entrem!", disse o chefe.
                  
                   
                  Não
                  havia espaço para todos nós, e alguns tiveram de sentar atrás.
                  Eu disse para o cara perto de mim: "O que ele está
                  fazendo  está nos mandando embora?"  Não sei, não
                  sei. Fomos por uma estrada que acabava perto de um penhasco
                  que dava vista para o mar. O carro parou e o chefe disse:
                  "saiam!"  e nos levou para a borda do penhasco. E
                  realmente ele disse: "Agora façam fila! Você primeiro,
                  depois você, depois você! Comecem a tocar! Marchem!"
                  
                   
                  Nós
                  teríamos saído da margem do penhasco  se não fosse uma
                  trilha que descia. Então o nosso pequeno grupo desce a trilha
                   a tuba, o
                  cantor,
                  a viola, o pandeiro e a frigideira  para uma festa na
                  floresta. Não fomos pegos porque o chefe queria se ver livre
                  de nós; ele estava mandando a gente para uma festa particular
                  que queria um pouco de samba! E no fim de tudo ele ainda
                  conseguiu dinheiro para pagar algumas fantasias para o nosso
                  bloco.
                  
                   
                  Depois
                  disso, senti-me um pouco melhor, porque percebi que, quando
                  ele pegou o tocador de frigideira, ele me pegou!
                  Aconteceu outra coisa para
                  aumentar minha confiança. Um tempo depois, um cara de outra
                  escola de samba, do Leblon, chegou. Ele queria entrar em nossa
                  escola. O chefe disse: "De onde você é?" 
                  Leblon.  O que você toca? Frigideira.  OK. Deixe
                  eu ouvir você tocar. Aí o sujeito pegou a 
                  frigideira dele e seu bastão de metal e ... 
                  para-ra-ra-tchim-bum. Nossa mãe! Foi
                  maravilhoso! O chefe disse para ele: "Vai para lá e fica
                  perto do Americano,  e
                  você vai aprender a tocar a frigideira!"
                  
                   
                  Minha
                  teoria é que isso é como uma pessoa que fala francês e vem
                  para a América. No começo, ela comete todo tipo de erro, não
                  consegue entender quase nada. Aí a pessoa continua a praticar
                  até conseguir falar bastante bem, e você percebe que há um
                  delicioso gingado na forma de ela falar  o sotaque é
                  bastante belo, e você adora escutá-lo. Então eu devia ter o
                  mesmo tipo de sotaque quando tocava a 
                  frigideira, porque eu não poderia competir com
                  aqueles caras que tocaram a vida toda; deve ter sido algum
                  tipo de sotaque diferente. Mas o que quer que tenha sido,
                  tornei-me um tocador de frigideira bem bom.
                  
                   
                  Um
                  dia, um pouco antes do carnaval, o chefe da escola de samba
                  disse: "OK, nós vamos ensaiar desfilando na
                  avenida". Saímos todos da construção para a rua, e
                  estava um trânsito terrível. As ruas de Copacabana sempre
                  foram uma grande bagunça. Acredite ou não, há uma linha de
                  trole em um sentido, e os carros iam em outro sentido. Era
                  hora do rush em Copacabana, e nós estávamos indo
                  desfilar no meio da Avenida Atlântica.
                  
                   
                  Eu
                  disse para mim mesmo: "Jesus! O chefe não tirou uma
                  licença, não pegou autorização da polícia, ele não fez
                  nada. Ele simplesmente está decidido a pôr o bloco na
                  rua". Então começamos a entrar na rua e todo mundo, em
                  todos os lugares, estava muito animado. Alguns voluntários de
                  um grupo de transeuntes pegaram uma corda e formaram um grande
                  quadrado ao redor da nossa banda para que os pedestres não
                  passassem nossas linhas. As pessoas começaram a espiar pela
                  janela. Todo mundo queria ouvir o nosso samba. Era muito
                  excitante! Assim que começamos a desfilar, vi um policial
                  perto de outro, no final da rua. Ele olhou, viu o que estava
                  acontecendo e começou a desviar o trânsito! Era tudo
                  informal. Ninguém arrumou nada, mas tudo correu bem. As
                  pessoas estavam segurando os cordões de isolamento, o
                  policial estava desviando o trânsito, os pedestres amontoados
                  e o trânsito engarrafado, mas estávamos indo bem! Descemos a
                  rua, viramos esquinas, por toda Copacabana, aleatoriamente!
                  
                   
                   Acabamos
                  em uma pracinha em frente ao apartamento onde morava a mãe do
                  chefe. Ficamos li parados, tocando, e a mãe do cara, e a
                  tia,
                  e assim por diante, todo mundo desceu. Elas estavam de
                  avental; elas estavam trabalhando na cozinha e podia-se ver a
                  emoção delas elas estavam quase chorando. Foi realmente
                  maravilhoso fazer aquela coisa humana. E todas as pessoas
                  olhando pela janela  foi o máximo! E eu me lembrei de
                  quando estive no Brasil antes e vi uma dessas bandas de samba
                   como eu adorei a música e quase fiquei louco com ela agora
                  eu estava participando dela!
                  
                   
                  Por
                  falar nisso, quando estávamos desfilando pelas ruas de
                  Copacabana naquele dia, vi em um grupo na calçada duas moças
                  da
                  embaixada.
                  Na semana seguinte, recebi um bilhete da embaixada dizendo:
                  "É uma coisa maravilhosa o que você está fazendo, iaq,
                  iaq, iaq...", como se meu propósito fosse estreitar as
                  relações entre os Estados Unidos e o Brasil! Então essa era
                  a coisa "maravilhosa" que eu estava fazendo. Bem,
                  quando eu ia para esses ensaios, não queria ir vestido com as
                  roupas que eu usava na universidade. As pessoas da banda eram
                  muito pobres e só tinham roupas velhas, maltrapilhas. Então
                  eu vestia uma camiseta velha, calças surradas, e assim por
                  diante, para não destoar tanto do resto do bloco. Mas eu não
                  poderia sair assim do meu hotel de luxo na Avenida Atlântica
                  em Copacabana; então pegava o elevador até o porão e saía
                  por lá.
                  
                   
                  Um
                  pouco antes do carnaval, teria um concurso especial entre as
                  escolas de samba de Copacabana, Ipanema e Leblon: tinha três
                  ou quatro escolas, e éramos uma delas. Nós íamos desfilar
                  fantasiados na Avenida Atlântica. Eu me senti desconfortável
                  em desfilar com uma daquelas fantasias de carnaval, já que eu
                  não era brasileiro. Mas deveríamos nos vestir de gregos; então
                  pensei: sou tão grego quanto eles. No dia da competição, eu
                  estava comendo no restaurante do hotel e o maître, que
                  sempre me via batucar na mesa quando tocava samba, veio até
                  mim e disse: "Sr. Feynman,
                  essa noite vai ter uma coisa que o senhor vai adorar!
                  É tipicamente brasileiro. Vai ter um desfile de
                  escolas de samba bem em frente ao hotel! E a música é tão
                  boa  o senhor tem de ouvi-la".
                  
                   
                  Eu
                  disse: "Bem, estou um pouco ocupado essa noite. Não sei
                  se vai dar".  Ah! Mas o senhor gostaria tanto! O senhor
                  não deve perder! É tipicamente brasileiro. Ele
                  insistiu muito e, quando eu disse que realmente achava que não
                  estaria lá para assistir, ele ficou desapontado. Naquela
                  noite, vesti minhas roupas velhas e desci para o porão, como
                  sempre. Vestimos as fantasias na construção e começamos a
                  desfilar na Avenida Atlântica, uma centena de gregos
                  brasileiros em papel machê, e eu estava atrás, tocando uma
                  das frigideiras.
                  
                   
                  Tinha
                  uma grande multidão dos dois lados da avenida; todo mundo
                  estava espiando pelas janelas e estávamos indo em direção
                  ao Hotel Miramar, onde eu estava hospedado. Milhares de
                  pessoas estavam em cima das mesas e das cadeiras. Estávamos
                  tocando quando nossa banda começou a passar em frente ao
                  hotel. De repente, vi um dos garçons gritar, apontando com o
                  braço, e no meio de todo esse barulho consegui ouvi-lo:
                  "O professor!" Então o 
                  maître descobriu por que eu não poderia estar
                  lá naquela noite para ver a competição  eu estava nela!
                  
                   
                  No
                  dia seguinte, vi uma moça que eu conhecia de vista da praia e
                  que tinha um apartamento de frente para o mar na avenida. Ela
                  estava com alguns amigos assistindo ao desfile das escolas de
                  samba, e, quando nós passamos, um de seus amigos exclamou:
                  "Ouça aquele cara tocando a 
                  frigideira ele é bom!" Eu tinha
                  conseguido! Eu me dei bem em algo que eu não achava ser capaz
                  de fazer.
                  
                   
                  Quando
                  chegou o carnaval, poucas pessoas de nossa escola apareceram.
                  Tinha algumas fantasias especiais feitas para a ocasião, mas
                  não tinha gente o bastante. Talvez eles acreditassem que não
                  poderíamos ganhar das grandes escolas de samba; eu não sei.
                  Achei que estávamos trabalhando todo dia, ensaiando e
                  desfilando para o carnaval mas, quando o carnaval chegou, uma
                  boa parte da banda não apareceu e não competimos muito bem.
                  Mesmo enquanto estávamos desfilando na avenida, alguns
                  integrantes do bloco saíram. Resultado engraçado! Eu nunca
                  entendi muito bem, mas talvez o grande lance fosse ganhar o
                  concurso das praias, onde a maioria das pessoas achava que
                  estava em seu nível. E, por falar nisso, nós ganhamos. 
                  
                   
                   
                  
                   
                  Continuação:
                  justamente a parte que trata da "didática" no
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