Soares Feitosa
Email para um jovem poeta
Recebo
cartas, muitas, de jovens me perguntando, como editor do
Jornal de Poesia, o que devem ler, o que devem fazer. Como se
fosse uma tentação a la Rilke — Carta a um jovem
poeta —, respondo-lhes que fujam da poesia em prol dos
estudos terra-chão, um vestibular, um concurso, essas coisas
da vil subsistência. Depois, mais na calma, cuidem da poesia.
Por outra, ainda não recebi carta de nenhum jovem cientista
pedindo orientação sobre o que ler, o que estudar. Se
receber, direi que se mude para a Arte, qualquer uma, poesia
também, de modo a se aliviar um pouco do peso da
"cadeira CDF". Donde — conclusão — tenho que o
Homem se faz de duas bandas: uma, ao devocional, do
alegrar-se; a outra, ao obrigacional, do subsistir,
pão-nosso-de-cada-dia, que os mais sábios fazem-na tão
prazerosa quanto a outra. Eis o desafio: juntar as duas
bandas: alegrar-se no obrigatório e obrigar-se no alegre.
Falam
os cientistas nessa história de lado racional e lado
emocional do cérebro, esquerdo e direito. Ora, se o
jovenzinho se percebe poeta, nada mais injusto para com ele,
como pessoa humana, que incentivá-lo a abandonar todo o
resto, a reviver a escravidão de Mozart, menino, quatro-cinco
anos, todo engravatado, dando concertos nas cortes européias.
Não há queixas quanto às composições de Mozart, mas a
pergunta é: teria ele composto tão bem como compôs se o pai
lhe tivesse permitido uma infância? Há queixa, sim, quanto
ao lado humano de Mozart, uma vida de sofrimentos, a morte na
miséria. Algo a ver com o fato de não ter tido infância?
(E, se realmente, a infância for o pedaço mais rico de nossa
existência?!).
Entendo
que nunca se deve permitir a hipertrofia absoluta de um dom,
como em Mozart, de compor e compor, a ponto de transformar-se
num obrigacional sem nenhum espaço para o existir. Os
exemplos, ao longo da história da Arte, são pungentes. Aqui
mesmo no Ceará, esse estupendo poeta José Alcides Pinto, um
dia, largou o emprego de professor universitário federal para
viver de brisa. E Verlaine. E Rimbaud. E
Van Gogh. Os exemplos são notórios em toda a história
da Arte, de gente tão famosa quanto. Desconfio que Alcides
seria tão bom poeta, senão melhor, se professor
universitário — uma vidinha mais tranqüila. Pelo menos para si.
No
campo artístico, música, canto e cinema, os exemplos são
assustadores. Elis Regina, tão jovem. E Natalie Wood no
esplendor da glória. Teria faltado o quê a essa gente?
Desconfio que lhes faltou o "devocional" a contrapor
(e somar!) naquilo que carregavam sobre si como fardo permanente
e insuportável de cantar e representar o tempo todo. Há, por
outra, magníficos exemplos, mas não são muitos, de grandes
"obrigacionistas" que se sobressaíram no devocional.
Thomas Hobbes, filósofo e educador no obrigacional e
cientista no devocional; Goethe, pouco se comenta, mas no
devocional foi naturalista, e dos bons!
Talvez
o exemplo mais contundente daquele que teria viajado a viagem
completa ao redor do Homem, isto é, da criança-adulto-criança
(e o verbete criança não seria oriundo do radical criar?!)
seja o de Benjamin Francklin, aquele que fez-tudo, sempre pelo
melhor, sem
esquecer este outro, Leonardo da Vinci, com um emocional
absoluto (Arte) de parelha com um “outro lado”, o
racional, Ciência, em que também se destacou.
Mais recente, não posso deixar de mencionar o nome de Richard
Feynman, o nobel da nanotecnologia, do infinitamente miúdo em
que se funda toda a Física moderna.
Richard
Feynman era físico. Tudo para ser um chato como regra
geral o são esses caras só-ciência. Desculpem-me, o grau de
chatice não é privilégio dos só-ciência. É privilégio,
sim, daquele tipo só-uma-única-coisa, mono, ainda que
Arte, ainda que mundialmente famoso.
Feynman,
dotado de uma curiosidade não apenas científica, estudou
Arte e chegou a pintar com desenvoltura. Foi também educador,
lingüista, músico e... físico. Uma das páginas mais
brilhantes sobre a aventura do espírito humano é relatada
por ele em O americano outra vez. Conta sua passagem
pelo Brasil, onde morou cerca de dois anos, e a participação
no carnaval do Rio como tocador anônimo de
"frigideira". Mas, no fundo, o ensaio é sobre o
Homem, de permeio com a didática. Atualíssimo, devia ser
texto obrigatório na abertura do ano letivo de todas as
escolas do Brasil.
Esse
ensaio me proporcionou, ao acaso, meu primeiro contato com
Feynman. É um texto de umas quinze páginas (clique
aqui) de que imprimi várias cópias de presente aos
filhos e amigos. Depois, adquiri todos os livros que escreveu.
Devia ter ganho o nobel de literatura. E o da paz também.
Acho que Feynman tinha o cérebro sem divisão alguma...
Parecia fazer as coisas com imensa graça, com total prazer,
como se tudo para ele fosse apenas um devocional absoluto.
Poucos viveram tão belamente como esse presepeiro genial,
Richard Phillips Feynman, 1918-1988.
No
campo do aqui de perto, ao alcance do olhar, agora lhes falo
de três cidadãos bem sucedidos em suas áreas obrigacionais.
Um é empresário, professor e tributarista. É o Valdir
Rocha, que edita livros em São Paulo, ensina e escreve sobre
tributos. Um dia, vi em cima da mesa de um amigo, em Salvador,
um revista nova, a Dialética. Fiquei tão embasbacado
que anotei os dados e pedi assinatura. Mas uma coisa me
chamou, de logo, a atenção: na capa da revista, um "garatujal".
Era um quadro. A reprodução de alguma obra de arte. Pois o
tal Valdir, logo depois vim a descobrir, era o mesmo de quem
havia recebido, num grupo de 50 poetas brasileiras, pelas mãos
da poeta Eunice Arruda, um quadro dele, FUI EU, para
comentar.
O
meu exemplar fora remetido para o antigo endereço baiano, de
modo que, tardio, não participei da antologia que depois
publicou em cuchê e a cores. Entanto, aquele quadro me
provocou dois textos. O primeiro, um poema meio louco, Não
é aqui não. O segundo, uma versão direta, bem mais
recente, do quadro de Valdir, em cortes e recortes, Fui
eu, minha versão.
Ambos
os trabalhos muito me alegram. Mas o que me alegra muito mais
tem sido o convício — epistolar, quase sempre — e de
acompanhamento da revista Dialética de que dependo no
meu "obrigacional" de tributarista, auditor
aposentado. (Obrigacional, o meu? Nem tanto. Gosto tanto do
que faço que faço-o pelo vício de gostar. Melhor que os
velhacos não saibam, mas se alguém não me paga o trabalho,
o prejuízo é pequeno, posto que já estava pago no prazer de
tê-lo
feito. Por isto mesmo, pagam). Valdir pinta. Leva tão a sério
esse devocional que seus amigos do outro lado, os só-tributaristas,
nem acreditam que seja o mesmo Valdir.
A
pergunta é: Valdir seria o mesmo editor, professor e
tributarista sem ser ao mesmo tempo, devocional, pintor?
Acredito que não. No mínimo, seria um azedo capitalista, um
professor cruel, miúdo, rasteiro e sofrido. Donde, conclusão,
o devocional é que "abranda" a maldição bíblica
do terrível "suor do teu rosto". (Por igual, se a
maternidade é no amor, aquele "parirás" se
transmutará em acalanto). Donde — começo a gostar disto
— segunda conclusão: de tão prazerosos sejam o suor do
rosto e o parirás, que, de maldição, em "benção"
— oxítona — se transformem. Sim, o prazer, a empolga de
dar uma aula, o ardor do argumento, a alegria quase infantil
de transmitir conhecimento: falo-lhes agora de Hugo de Brito
Machado, o tributarista.
É
uma amizade velha, ele bem jovem, ainda lhe guardo o primeiro
livro, com dedicatória, sobre o ICM que, à época ainda não
tinha S. Eu também era jovem, 20 anos apenas, auditor de
tributos, por concurso (olha o concurso, meu caro jovem
aspirante a poeta!), lá pela Receita Federal, onde Hugo
dava aulas e treinamento. Uma festa a aula! Claro que era uma
injustiça pagar o mesmo preço por aula a Hugo e aos línguas-de-pau
que por lá apareciam. Os línguas-de-pau, sim, e não eram
poucos, justo que recebessem a má-aula em dobro, porque
aquilo, para eles, era carga pesadíssima. Hugo? Devia pagar a
aula em vez de receber! E, por que não?
Marcos
de Holanda tem tempo para se aposentar umas dez vezes da UFC.
Entanto, está lá todos os dias, em sua belíssima
obrigacio-devocional aula-monumento. Logo, se vai dar aula,
gastando condução, roupa e sapato sem nada receber, é claro
que está pagando... Parece-me
que Marcos de Holanda retira forças no devocional do esporte,
vou confirmar com ele, um tal Sporting, acho que Ceara,
sem acento, Club. Ou seria do Fortaleza?
Pois
um belo dia fui visitar o professor Hugo. Ele estava às
voltas com aviões. Plantas, ferramentas, motores montados e
desmontados, asas quebradas, colas, remendos, bonecos e
simuladores de vôo: aeromodelismo. Nem sei se seus clientes,
alunos e leitores são capazes de imaginar aquela fera do
saber e do convencimento-convencer tão embevecido ali em meio àquelas
quinquilharias de graxas, etanol, metanol (sei não, TNT, acho
que era TNT que ele botava naqueles motores e em si mesmo) e
muito barulho. Sei, sim, que aquilo é-lhe fundamental ao
"outro lado". Ambos, o trabalho pelo lazer, e o lazer
ainda que dê trabalho — e como dá! — pelo
trabalho-prazer.
Noutro
dia, fazia uma pesquisa sobre matéria do meu obrigacional.
Era sobre o tema do devido processo legal, uma matéria
ainda recente na doutrina brasileira. Vamos explicar
rapidamente o que é isso. Não adianta você ter o melhor
direito se não tem os meios para exercê-lo. Preso incomunicável
— tomemos este exemplo — como poderá demonstrar, se
incomunicável, a inocência? Conclusão, o devido processo
legal é um conjunto de princípios que se assenta, em essência,
na absoluta lealdade do acusar-e-ouvir. Claro que há bem mais
coisas no devido processo legal, mas se de tudo que o acusam,
você pode defender-se em iguais condições, já temos aí
meio caminho contra a barbárie.
Os
positivistas, e não são poucos, vêem o devido processo
legal apenas como algo decorrente da lei, da constituição.
Para eles processo legal é o que está previsto a lei e isto
lhes basta. Foram, todavia, as palavras deste outro professor
que me encheram as medidas:
“A
compreensão do devido processo legal é estimável
sobretudo como uma atitude permanente do Julgador, mais
do que uma postura científica que possa validamente
adotar; mais pelo que tem de significado humano, histórico
e doutrinário, do que mesmo pelo conteúdo das múltiplas
garantias que sempre pretendeu conter, muitas vezes,
embora extensas, insuficientes para dar conta de toda a
ampla abrangência desse instituto.” |
Trata-se
do cearense (Valdir é paulista; Hugo, piauiense) Napoleão
Nunes Maia Filho, para quem o devido processo legal é algo
muito acima de qualquer primado constitucional. Presumo até
que ele o situe no plano mais alto das idéias, por certo até
mesmo mais alto do que a decantada norma hipotética
fundamental, de Kelsen. (Napoleão
Nunes Maia Filho, Estudos Temáticos de Direito
Constitucional, UFC/ Casa José de Alencar, 2000, p. 57).
Ele não teria estudado nas mesmas escolas dos positivistas?
Como consegue pensar de maneira tão radical?
O
pior é que me defrontei com outra abonação, de muito mais
"prestígio", e que seria escolhida contra a do
professor cearense por nove entre dez
"tributaristas":
"O
devido processo legal, como princípio constitucional,
significa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que
de um lado asseguram às partes o exercício de suas
faculdades e poderes de natureza processual e, de outro,
legitimam a própria função jurisdicional". ARAÚJO
CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14ª
ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 56.
Em
primeiro, gente do sul-maravilha, editora de prestígio, sem
esquecer que a Doutora Ada, há pouco, foi eleita para a
Academia Paulista de Letras. Contudo, cometem o erro de
afivelarem o devido processo legal à constituição, quando
se dá justamente o contrário, inclusive historicamente, pois
foi a instituição do due process of law que, a
rigor, deu fundamentos a toda aquela não-escrita Carta
Inglesa. A constituição que, de saída, não esteja a
garantir, soberbo e absoluto, o devido processo legal, será
qualquer coisa exceto constituição.
Li,
alhures, que a Constituição seria a isonomia, posto que
todos os direitos se reduzem, ao fim e ao cabo, ao homem, pelo
homem, como medida do homem. Digo aqui, baseado na lição do
professor Maia Filho que a constituição é, sim, a isonomia,
desde que de par e em paralelo com o devido processo legal,
posto que não bastam as garantias do direito sem os meios
leais — escrevi leais, de lealdade — de consegui-lo. Não refiro uma isonomia meramente
constitucional porque escrita ou inscrita na Lei. Mas a uma
outra, absoluta, anterior a qualquer tratado, escrito ou não,
porque fundada não naquela igualdade negocial do tipo
"ao outro como a ti mesmo", mas numa necessidade
absoluta de que o outro exista, posto que o Homem sozinho não
subsiste. Logo, isonômico porque a partir do outro, mas isto é
história para muita cerveja, lingüiça com farinha seca e
banho de chuva.
Finalmente,
a pergunta: como é que um pensador saído de lá das
barrancas do rio Jaguaribe (Limoeiro do Norte) consegue pensar
tão longe, a ponto de passar esse belo quinau na trinca
paulista? Tal qual
Valdir Rocha com suas pinturas, Hugo Machado com seus aviõezinhos
de brinquedo, o professor Maia Filho brinca com a poesia, daí
porque não há espanto quando demonstra ser capaz de fugir e
abominar o esmagador bitolamento positivista. Nenhum
assombro, enfim: ele cultiva um devocional estupendo: a
poesia:
"A
VAGA
No mar a onda brilhante
susta o tempo:
é aquele instante
do longo momento
interminável e só,
quando o movimento
se faz e se contrai.
Inverte-se
o líquido
o mar é o infinito"
Duvido
que um positivista, desses do tipo só-ciência, veja numa
vaga-mar nada além do que a chance de um afogamento. (Sem
esquecer que Raymundo Farias Brito também cultivava o poema.
E Guimarães Rosa. E Euclydes da Cunha — Canudos não se
rendeu!).
Portanto,
meu caro jovem, corre para a Arte se nada sabes dela. Se sabes
em excesso, devociona-te no obrigacional do estudo secular,
mas sempre tendo em mente o Homem, aliás, o rosto do Outro, o
único bem possível. Nele te abonarás.
Fortaleza,
agosto de 2002
Dos
Leitores:
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