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Antônio Massa |
1. - Psi, a Penúltima:
A estepe e a noite se deitaram juntas
paralelas as asas sobre as asas.
Jorge de Lima, in Invenção
de Orfeu
Nada define melhor a sensação
de se abrir um Feitosa: a poesia invade! Nosso multinordestino
— Ceará / Pernambuco / Bahia — erigiu novo patamar literário,
e a Arte o abençoou. Uniu o mítico e o místico
das auroras antigas e o poderio dos recursos gráficos
que os modernos computadores proporcionam. Nordeste e Grécia, água
e sol, Oriente e Ocidente recheados com as cadências da
Ampulheta da Criação.
Entrelaçando a cantiga seca de pó a pó
da caatinga, do sertão de xiquexiques e mandacarus, com
os arredores transbordos do rio Amazonas, suas peles indígenas
e seus cantos multicolores, Soares Feitosa, que só se
descobriu poeta aos cinqüenta anos, inovou e renovou a poética
brasileira.
Com uma sensibilidade que vi em poucos
e me deixa cada vez mais perplexo, o Aprendiz Feitosa nos faz
navegar em poemas preciosos, retirados de fatos corriqueiros,
quase sempre desprezados pelos mais desavisados. Partilhar um
Feitosa é aventura para os ousados e os puros de espírito.
Feitosa (sempre o irrequieto menino)
também trouxe inspiração para a sua nova
linguagem de psi, a penúltima letra do alfabeto grego. Nunca o
ômega, o último, o derradeiro, pois a arte é
uma renovação, inconstante e permeável,
onde a seca do Nordeste e o Amazonas se misturam em dança
épica dentro do balde do menino macho e sacolejam até
os últimos fios de cabelo das raposas enlouquecidas pela
fome.
O penúltimo é o eterno,
no coração deste PSI, a penúltima, livro
nascido artesanalmente, escrito, impresso e cosido pelas próprias
mãos do poeta. Um livro vivo, que cresceu a cada nova
edição e carrega em suas folhas a indiscutível
prova da genialidade do escritor.
A pergunta é: onde Soares Feitosa
escondeu, em cinqüenta anos de vida, a poética que
hoje divide quarto e sala com ele e cada vez mais o domina? Certamente
estava se guardando, juntando forças e esperando o toque
de partida do compadre tempo, que conhece bem a hora da colheita.
A magia está aí, reunida
neste livro, que traz o cheiro do mato e o sabor de água
da moringa. Não se assuste com os ruídos que
possam aparecer à medida que acompanhe esta viagem que ultrapassa
a dimensão cartesiana e nos leva à perene cantilena
do surpreendente.
A Noite e a Estepe certamente se deitaram
juntas e, sob a proteção de suas asas, aí
deixaram a lírica galopante de Soares Feitosa. Ficaram
os novos alqueires, talvez em algum lugar lá pelas terrinhas
do Siarah, prontos para o plantio do eterno poemar...
Nota:
Este texto é a orelha principal
de Psi, a penúltima. À época, 1997,
o poeta Antônio Massa tinha 19 anos. Reside dos Estados
Unidos da América.
2. - Salomão:
E nas pedras
rudes de meu berço gravei poemas
Silêncio. O supra-sumo coração, inquieto
por natureza negra — porque negro somos —, cala. O silêncio
não é mórbido ou dormente. É reconciliador.
Une alma e raízes à quase aurora de meu canto.
Chego de uma trilha-estrada nova. Uma estrada poema intitulada
Salomão. Poderiam titular Inferno. É como fica a alma
depois de uma leitura concentrada: em chamas. De paz? Talvez.
Refletindo um pensamento aristotélico,
o infinito não existe na nossa realidade porque ao homem
não foi concedido tempo suficiente para contar a eternidade.
Este é o grande desafio que o autor do Salomão
conseguiu. Dar ao homem a eternidade. Desmembrar as linhas áureas
destes tempos e de outros tantos para que o leitor pudesse
navegarmos nos braços máquina tão sonhada por
H. G. Wells. Epigrafando o próprio poema: ele rompe as
rochas do tempo, rasga as cortinas do mundo.
Quando comecei a escrever, um crítico
me perguntou qual era meu estilo literário. Minha resposta
foi um inibido não sei. Ele contra-argumentou me dizendo
que tudo deveria possuir um estilo, uma escola. Pessoa muito
respeitada no âmbito social, não respondi. Calei.
Hoje compreendo que a realidade passa milhas longe desta ótica.
Poderia alguém definir o poema Salomão, se é
que também podemos defini-lo como poema, incutido em um
simples rótulo ou casca? Se apelássemos para as
forças estéticas o que me diriam do poema os grandes
críticos do poema? Barroco, concretista, palavrista (este
termo inventado pelo poeta, para definir os poemas de versos curtos
e ás vezes monossilábicos), moderno? As respostas
me surgem com a mesma força do sentimento que me abre
este texto. Silêncio.
Encontrei no poema elementos taoísticos,
órficos e os últimos versos do sexto movimento
me fizeram relembrar uma passagem na mitologia egípcia
onde Anúbis pesa o coração de Ani, o julgado, contra
a pena de Maat. A deusa da verdade. O que valem grandes poemas
é o poderio que eles possuem de despertar as coisas que
guardamos no nosso espírito. Tão bem guardadas
que algumas vezes esquecemos que nos foram entregues, seja pela
mão da procura, da leitura ou da experiência da
vida. O rebuliçar das emoções, o tilintar das camadas
subterrâneas da alma, este poço de conhecimentos
encobertos. Aí está a grande importância
do poeta: Desvelar o homem de sua própria cegueira. Quem
revela, desvela: processo de fotografia. Cito Germano Machado.
O momento atual é de revolução.
Com a chegada de um novo século o ser humano se encontra
espremido nas paredes do tempo. Muitos ainda desistirão
de transpor as barreiras deste milênio. Outros enlouquecerão.
O homem é tão resistente às mudanças que prefere
se manter distante. O poema nos evoca mudança. Nos traz
à memória o sonho libertador de um negro, Luther
King e o do ícone branco, John Lennon. Um rumo igualitário
para uma sociedade que tem o mesmo princípio e um mesmo
fim. Se é que existe um fim. Mas esta não é
a grande questão. A questão é viver um tempo-agora
onde os seres se reafirmem irmãos. Crucifiquem as almas
próprias, para descobrir no madeiro de seu profundo eu
a ligação universal dos homens. Brancos, pretos
ou alvaçãos. Porque isto não tem cor.
O poema também é história.
Uma enciclopédia, diria Ésquilo. A história
que permeia o poema me deixa atribulado. Uma nova vertente na
poética do escritor que ficara escondida, quase inibida, no
centro de sua alma. A poesia social. O poeta clama os negreiros,
morros de arribanceira que, com meus olhos (estes que ainda não
desistiram de me acompanhar), vi desabarem línguas e bocas
e rostos, engolidos pelas garras da terra. Retorno às
raízes. E na manhã cavoucamos…
Cavoucamos coisa alguma, porque tudo
nos passa desapercebido. A notícia do horário nobre
nos relata, e no outro dia já deixamos as cenas de lado para
escutar uma outra tragédia. E tanto faz quantas sejam. A memória
cuida de afastá-las deixando o ciclo se repetir. E aqui
o poeta eterniza a fábula. Porque esta também é
a missão do poema. Assim como o Menino, que retratou as
angústias de seu tempo e no seu sesquicentenário,
foi comemorado com a lágrima do esquecimento.
Sobre o poeta em si nada digo. Não
há mais a dizer. Ele foi obscurecido pela grandeza de
sua criação. Nas pedras do berço da vida ficou
eternizado como coadjuvante na confecção de sua estrela.
Assim como o outro Poeta. Ao Salomão,
só a grandeza do Século Cem. E este virá,
eu acredito na profecia.
|
Carlos
Felipe Moisés |
Os
Poemas da Besta,
de Soares Feitosa
Na
primeira leitura não resisti ao tom empolgado, condoreiro, eu
diria, do autor. Deixei-me tocar e comover por várias das indicações
e registros aí consignados. Talvez um pouco aturdido pela empolgação
--a do texto e a que o texto desencadeou em mim--, não fui capaz
de atinar com a causa substancial dessa mesma empolgação.
Algum
tempo depois, fui a uma segunda leitura, já menos arrebatada. O
que me ocorreu, então, não foi propriamente discordar de Soares
Feitosa, mas colocar as mesmas questões debaixo de outro ponto de
vista, que eu nem chegaria a dizer que é meu (na verdade, não é),
pois fiz o possível para que fosse impessoal.
A
distinção entre os dois pontos de vista, este e o do autor, mais
do que doutrinária, é da ordem do temperamento. O meu busca
fugir da empolgação, embora nem sempre consiga; busca, das
coisas (a poesia incluída), uma visão serena, distanciada. Sei
que para muitos isto soa herético. Se assim é, diriam, melhor eu
cuidar de outro assunto, que não a poesia, pois esta espera do
leitor exatamente a empolgação. Permito-me discordar. Permito-me
acreditar que a poesia, sem deixar de ser, ab ovo, empolgação,
acolhe também racionalidade e distanciamento. Por isso (aí já
todos concordam) é que a poesia é o reduto por excelência da
ambigüidade. A visão serena, não arrebatada, buscada por mim, não
só não o nega como o endossa. Vejamos então qual poderia ser
este outro ponto de vista.
O
texto de Feitosa lida basicamente com dois temas: o do tempo e o
do Juízo Final. O primeiro tem que ver com a contingência histórica
do ser humano, imerso na temporalidade, e, em última instância,
com a especulação filosófica; o segundo tem que ver com Religião.
Os dois temas se cruzam? Sem dúvida. Mas, creio, não devem
fundir-se em um só, como se se tratasse de manifestações
intercambiáveis do mesmo tema.
De
um lado, o tempo pode ser encarado à luz da filosofia, da história,
da antropologia ou da(s) poética(s) segundo perspectivas não-religiosas,
vale dizer, independentemente das crenças que tenhamos ou não.
Quando o poeta subverte nossas categorias convencionais
referindo-se ao "futuro do passado", por exemplo, como
bem observa Feitosa; ou quando se pergunta, ao falar da infância,
"Fui feliz?" para em seguida responder "Fui-o
outrora agora" (os exemplos poderiam multiplicar-se
indefinidamente) --nada nos obriga a associar esta subversão da
temporalidade ao "fim dos tempos" de que fala o
Apocalipse.
De
outro lado, o registro dos horrores e misérias que marcam este século
não passa necessariamente pelo entendimento religioso ou teleológico
que possamos ter ou não deste nosso mundo. Para uns, tais
horrores são indícios do Armagedon, anúncios do Juízo Final
que se aproxima; para outros, os mesmos horrores (cíclicos, não
sei se mais intensos hoje do que ontem) podem ser encarados à luz
da contingência histórica, como fenômeno eminentemente social e
político, despido de conotações apocalípticas. São dois
entendimentos que não se excluem. Só se excluirão se seus
respectivos adeptos não abdicarem da muito humana ambição do
dogmatismo. São dois entendimentos que podem cruzar-se, como
sugeri acima, mas que devem manter, cada um, a sua especificidade.
Caso contrário, a adoção do primeiro significará o menosprezo
do segundo, na mesma medida em que a adoção deste reduzirá
aquele a simples corolário.
Por
razões de temperamento inclino-me mais pelo entendimento não-religioso
da condição humana, em poesia e fora dela, e assim procuro
encarar os dois temas de Feitosa, o do tempo e o dos horrores do
mundo atual. Quanto ao primeiro, poderia lembrar as palavras de
Octavio Paz (EL ARCO Y LA LYRA, Fondo de Cultura Económica,
1956), que, referindo-se aos "gêneros" épico, lírico
e dramático, afirma: "Em todos eles o tempo cronológico --a
palavra comum, a circunstância social ou individual-- sofre uma
transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão,
instante que vem depois e antes de outros idênticos, e
converte-se em começo de outra coisa". Poderia lembrar também
a densa reflexão de Alfredo Bosi (O SER E O TEMPO DA POESIA,
Cultrix, 1977), que o leva a conclusões como esta: "Vejo o
texto como uma produção multiplamente constituída por vários
tempos: a) os tempos descontínuos, díspares, rotos, da experiência
histórico-social, presentes no ponto de vista cultural e ideológico
que tece a trama de valores do poema; b) o tempo relâmpago da
figura que traz à palavra o mundo-da-vida sob as espécies
concretas da singularidade; c) o tempo ondeante ou cíclico da
expressão sonora e ritmada, tempo corporal do pathos, inerente a
todo discurso motivado".
Pois
bem, o "começo de outra coisa", de Paz, ou "o
tempo ondeante ou cíclico", de Bosi, devem/podem ser
associados teleologicamente ao fim dos tempos, ao Apocalipse ou ao
Armagedon? A mesma associação pode/deve ser feita aos horrores
de que falam todos os grandes poetas modernos, a começar por
Pessoa e pelo mesmo Paz, e prosseguindo por tantos outros, como, só
para dar mais um exemplo, T.S. Eliot? ("Eyes I dare not meet
in dreams/ In death’s dream kingdom/ These do not appear...//
This is the dead land/ This is cactus land/ Here the stone images/
Are raised, here they receive/ The supplication of a dead man’s
hand/ Under the twinkle of a fading star" --THE HOLLOW MAN,
Harcourt, Brace & World, 1925.)
A
resposta de Soares Feitosa, a julgar pelo teor de seu ensaio,
seria, suponho, um categórico "deve". De minha parte,
eu responderia com um relutante "pode". E, em nome do
ceticismo e do impessoalismo do ponto de vista por mim adotado,
ficaria talvez para sempre no limiar de acrescentar "mas não
deve".
Quero
por fim assinalar que este sucinto e carente comentário é a
homenagem que rendo ao texto de Feitosa, sem cuja empolgação
--estimulante e inspiradora-- eu não teria tido o prazer de
revisitar umas leituras "antigas" e preciosas. Não por
mim, mas pelo serviço que presta à velha e sempre renovada questão
da função da poesia, eu diria que não é pouco.
|
Sebastião
Uchoa Leite |
Prezado
Soares
A
sua poesia, poeticamente falando, pareceu-me, de imediato
(disse-lhe ao telefone) o oposto da minha. Há certa ênfase geral
nordestina. Mesmo João Cabral - ele é tudo, menos reticente. Diz
tudo com clareza, ainda que de modo não simples.
Sua
dicção é programaticamente enfática, como por exemplo em PSI,
a Penúltima. Parece uma espécie de Pound bárbaro misturado
com a antropofagia cultural, não a de Osvald, corrosiva, e sim a
de Raul Bopp, mais humorística. Um curioso humor “bárbaro”
(no sentido da busca das raízes da fala nordestina, exibindo-se
enfaticamente - “mostro o pau e mostro a cobra” - e criando um
back-ground lingüístico) misturado a referências cultas. E as
notas ? Literariamente, inserem-se numa tradição, a de Eliot, do
The Waste Land, mas sem as pretensões “filosóficas” dele.
Sua
poesia, uma coisa não é: nem é acadêmica - com o preciosismo
que ainda hoje subsiste em alguns tolos que se julgam “neo-clássicos”
- nem anêmica, nem conformista. Apesar de você ter-me dito (ao
telefone) que não gosta de Cabral, algo em comum tem com ele:
gosta de “falar de coisas”, e isso é mais do que
interessante.
Como
não posso falar de tudo, mais de 600 páginas de sua obra, saltei
para a “Ultima Margem”. Achei notável você escrever sobre
esse estranho acontecimento de São Paulo. Jurandyr Freire Costa
que o teria inspirado, escreveu no “Mais !”, caderno cultural
do jornal Folha de São Paulo, sob a mesma perspectiva sua, a
tentar compreender não o ato, mas o actante.
Gosto
desse Canto XI, de Siarah, Tempo Perdido:
"Revolta.
"Não
estava lá o rio!?
"Por
que não fizeram antes?
"Não
se volta duas vezes ao mesmo rio.
"Cobardes!"
Sei
que é Heráclito, mas é você, também (como Pound, Eliot, etc.,
que roubavam sem dó, como Händel que dizia que a música está
no ar e é de todo mundo - foi acusado de plágio).
Acho
um poema a parte o final esplendidamente gostoso do Ajunt Hotel
(você é assim, o que eu gosto, pois evita a falsa “seriedade
acadêmica), final que poderia ser publicado isolado e faria
sentido.
Gosto
muito do Penúltimo Canto e do Passagem Escondida. O
primeiro é perfeito na sua concisão. O segundo é pela
estranheza.
No
meio do livro, FORMAT CÊ DOIS PONTOS, uma espécie de
divisor de águas que vai num suspense em crescendo até os bad,
bad, bad. Aí você preferiu entrar num anticlímax, em Undelet C,
Unformat C. O poema se reergue no final: é um texto que tem um
singular impacto, uma surpresa no meio do livro.
No
Céu Tem Prozac tem uma violência agressiva nas duas
primeiras estrofes, que ma parece positiva em vários momentos
seus (outros poemas). Na mesma linha, o ótimo final a partir da página
453.
O
Domador é outro momento de pique do livro. Aqui você prefere
um desenvolvimento mais concentrado do que o expandido em Format
Cê Dois Pontos, pois, apesar das interpolações, o poema tem
um clima mais indagativo do que afirmativo (enfático). Senti que
as notas parecem integradas ao clima do poema. Li tudo com muito
interesse, pois poema & notas fazem parte de um universo crítico
ficcional que muito interessa (independentemente de ser, ou não,
Francisco Brennand).
Poeticamente,
no seu livro, me parecem trabalhar contra a prolixidade, a ênfase
e a indulgência sentimental, três inimigas, acho, da poesia. Mas
talvez se deva a uma excessiva severidade de minha parte. A favor
me parecem trabalhar a inteligência, a curiosidade, indagadora, o
humor, a ironia crítica.
Uma
coisa que me pareceu positiva é a generosidade que emana de
tantos poemas do livro. Algumas das suas posições parecem com as
minhas. Gostei também do humor que passa por todo ele, a leitura
muitas vezes me foi prazerosa.
|
Tércia
Montenegro |
Salomão
Começo pelo título — Salomão —
que, à primeira vista, já traz a sensação das coisas
grandiosas, guardadas no inconsciente: o rei de Israel, sucessor
de Davi, edificando o Templo, deixando as marcas da
sabedoria na história do Homem. A impressão se confirma. Salomão,
negro-moleque, resíduo do escravo e do divino, caiu “direto dos
deuses”. Sua trajetória é a dos oprimidos do Novo Mundo,
nos caminhos de arrastar os pés e os grilhões. A liberdade —
bem amada — era quase um sonho balançando nas águas, preso no
navio negreiro.
O
mar e o morro — limites que não passam de mentiras a esses
homens, visionários, instintivos, imortais.
Cada
movimento é parte da Canção dos Séculos, como um grito
primitivo, a palavra borgiana — desconhecida. A Canção do Mal
(ou da Vida) é a própria letra que se perdeu do verso, fugiu da
rima. Ainda resta a esperança do Menino Maiúsculo contra a
humanidade, esfinge devoradora (“Decifra, negro, me decifra o
enigma!”) O novo tempo se anuncia. Está edificado agora o tempo
das coisas eternas. A obra, a palavra — a letra! — é a
sabedoria. E Salomão é o rei-guerreiro, raça nova e perene,
rompendo fronteiras. Salomão é um grito. Infinito. Ressoa nas
mentes, como uma canção perdida.
|
Gilson
Nascimento |
Prezado
Soares Feitosa
Chegou-me,
com seu gentil autógrafo, Psi, a Penúltima. Como o José Bonifácio
Câmara, meu colega de infância e bibliófilo especializado em
autores cearenses, já havia feito referência ao seu primeiro
livro, aliás de belíssimo aspecto gráfico, mais que depressa,
mergulhei na leitura.
Corri
os olhos pelo seu interessantíssimo Prólogo, depois passei à
Aparição da Poesia, do Gerardo Mello Mourão e, sem perda de
tempo, embrenhei-me. E ainda sob o impacto da emoção que me
causaram os poemas iniciais, entre os quais estão Perdidos &
Achados (o belo-simples, a poesia sem atavios) e Antífona, para o
qual não tenho palavras, deparei-me no jornal O Globo, de sábado
último (26.04.97) com o artigo do crítico Wilson Martins, uma
autêntica apoteose.
Confesso-me,
desde já, encantado com o que ali até agora, porque, nordestino
autêntico, profundamente telúrico, sinto arrepios de emoção à
leitura de poesia que, como a sua, na linguagem, no jeito de
dizer, na força e na fidelidade descritivas, vem impregnada do
cheiro inconfundível da terra e da gente nordestinas.
|
Giselda
Medeiros |
Ao Poeta de Réquiem em Sol da
Tarde
Poeta, Poeta! Ah, Poeta!
Réquiem em Sol de Tarde!
Antífona!
Os Jatobás querendo se apossar do ouro do crepúsculo !
Sol-menino
espreitando, à beiradinha,
durante o cochilo de mestre Sol,
os céus,
n’água,
os olhos...
d’ela.
Poeta, Poeta!
Ah, Poeta!
O amor é sempre
aflito
porque na peripécia
do silêncio
ele desce,
esgueirando-se,
neblina e perfume,
o fruto
amanhecente,
numa aurora de ouro.
E ele não teme o
ataque das formigas,
a fúria dos
vendavais sobre o seu diáfano
corpo
é ter que molhar-se
nos beirais da espuma.
É ter que beber
no sal dos silêncios
submersos,
o explosivo e
indisfarçável silêncio, amor...
Poeta, Poeta!
Ah, Poeta!
A Intimidade é
sutil
é sutil
quando estremece
e pousa.
Sempre!
E o medo
é o gesto das duas
mãos,
as duas,
conchadas de pegar
em quase...
a alma do pássaro.
E ele carece de
uma sombra cúmplice
por onde possa
desenhar
o azul das asas
livres.
Assim, Poeta, és
o pássaro voejante
bicando a Poesia,
fecundante e
fecundado,
nas alvoradas de pólen
e energia!
E, saciado de
orvalhos,
vais pousar no
ventre da palavra,
criador e criatura,
na imortal fecundação
do Belo!
Mas, escuta,
Poeta:
hás que saltar
sobre o abismo,
para alcançar o
vale,
e irrefutáveis serão
a insônia, a fagulha, o incêndio.
No entanto, Poeta,
o importante é que
sempre
haverá um amanhã.
E nele repousarás
teu olho agônico,
porta e ferrolho,
enclausurado o
eterno!
Fortaleza, 25 de março de 1996
|
Adriano
Espínola |
Psi,
a Penúltima
O
título é meio esquisito, pouco poético, parece livro de física (Psi,
a penúltima partícula!) ou de psicanálise. Poeta, tu estás ficando
doido? Acho que é isso mesmo — sem a loucura, que seríamos nós senão
“cadáver adiado que procria”? como diz o verso fulgente de Pessoa.
Você é um desses seres possuídos pelo daimon ou pelo furor da musa,
musa telúrica, pois seu verso é rememoração, canto órfico que vão
presentificando, retomando, clarificando, celebrando o passado,
reinaugurando as coisas, transfigurando as lembranças e os seus como no
belo poema inicial Antífona: Venho de outras terras, meu capitão,/
não sou da beira do mar, eu venho/desd’onde um bola de fogo, /volúpia
de luz, volúpia de cor, /cavalgava o horizonte e desabava...”
Ali,
os jatobás queriam-se apoderar do ouro do crepúsculo, e o mestre Sol
afrouxava as correias de mestre Vento, enquanto as palmeiras apenas
conseguiam tostar os coquilhos, grande manadas de lágrimas de sol!
O
poema inteiro é de uma beleza de uma autenticidade ímpares (até as
cantorias reproduzindo as falas típicas sertanejas), tudo misturado:
evocações do sertão brabo, com seus personagens, suas lendas e visões,
mas citações e recorrências à tradição cultural do Ocidente, indo
até Homero e ao Olimpo.
Parabéns,
meu poeta. Poemão para ser lido e relido.
Adriano
|
Ricardo
Alfaya |
Caro Soares,
Você
é um dos artistas realmente mais interessantes do pedaço.
Sempre inovando, buscando, experimentando por caminhos diversos.
Tudo que me convida a ler sempre me deixa gratificado.
Dessa vez,
o que na verdade se acha por trás de seu experimento e de sua
indagação aos leitores na verdade irá fatalmente
desaguar na
seguinte questão: o que é poesia? Um texto
poético, porém francamente discursivo, passa a
ser poema se apresentado em versos? O que mais se aproxima
de um poema: um texto ruim empilhado em versos ou um bom texto
em prosa poética? É lícito considerar-se
uma narrativa poema?
Você,
poeta e crítico experiente, sabe que para muitos escritores o
discursivo não constitui poesia. Se for uma narrativa,
então, nem pensar.
Na verdade
são idéias modernas, bem recentes, aliás, pois a poesia
épica sempre foi narrativa, distinguindo-se da prosa,
estruturalmente, pelo fato justamente de estar em versos e atender
a certas regras de rima e metrificação.
Enquanto
esses modelos e critérios se mantiveram estáveis e predominantes
nunca houve maior problema quanto a isso. Foi justamente a ruptura
contemporânea com esse paradigma que gerou a imprecisão
entre os gêneros.
Perguntado
numa entrevista sobre sua leitura preferida, Rosário Fusco não
hesita em responder: "Filosofia, porque é poesia pura".
Em certos
casos é verdade, sem dúvida.
E claro
que, ao concordar com Rosário, estou implicitamente reconhecendo
que não entendo a existência do poético como simples
resultado da aplicação de uma, digamos, estrutura
física do texto. O poético transcende a estrutura,
o que o torna inefável, evidentemente, assim como é
impossível dizer o que exatamente constitui a beleza de
uma sinfonia de Beethoven, como observou Rubem Alves no ensaio
"O que é religião". Rubem observa e acrescenta:
a beleza não é um atributo cientificamente comprovável
da matéria.
Então,
assim como a descrença de Tomé não pôde
impedir que pássaros de barro levantassem vôo, não
há como querer aprisionar o que é poético
numa gaiola de conceitos. Do barro do texto, o poético sempre
se erguerá, abrirá suas asas e empreenderá
seu vôo.
Felicidades,
Ricardo
Alfaya
|
Luiz
Nogueira Barros |
Salomão
Livro
de Soares Feitosa, ainda em edição limitada... Complexa estrutura e
conteúdo. Um teatro: as cortinas vão sendo abertas e os personagens vão
entrando, libertados dos seus tempos históricos. Uma violação de
sepulturas ilustres com fantasmas veneráveis reconvocados para uma temática
assombrosa: a escravatura! No fundo, mesmo, também a sua outra face: a
liberdade, os oprimidos!
A
interpenetração recíproca da escravatura e da liberdade, sem limites
e fronteiras, uma quase como a decorrer da outra, cria uma sensação de
magia dialética dificultando-nos, por vezes, nos situarmos onde
estamos. O poema, épico, vai decorrendo com versos, relatos em prosa,
recortes de jornais, fotos, anotações de pensamentos dos grandes
personagens da literatura, da filosofia e da história, mostrando que é
possível, como fez Homero, na antiguidade grega, ser entendido em prosa
e verso - exercício literário tornado possível apenas por Soares
Feitosa nas últimas décadas da produção cultural brasileira.
Crendices
e credos ideológicos desfilam nos poemas: ora nas palavras das figuras
veneráveis que ele acorda das sepulturas ilustres, e ora nas palavras
dos personagens populares do seu poema.
A
magia das afirmações fica entre a crendice e a ideologia consumada: à
afirmação “Porque os homens caem direto dos homens, / e alguns
poucos homens caem direto dos deuses; / e levanta-se uma raça de
homens, / e levanta-se uma raça de deuses./ (...) porque os
homens-deuses sabem da Aurora ( ...) Só eles tangem / o relâmpago e o
corisco / (...) Os que criam são livres! / Os que imitam: escravos!
/”, semelhando ideologia consumada, de natureza étnica, de repente,
segue-se-lhe o impacto aterrador das palavras de Salomão, também
descendente dos deuses, negro feito capitão de escravos, que
comprava e vendia negros, e negrinhas para o deleite do Coronel: “Que
a aurora jamais será branca, Coronel, / nem preta / Veja nos céus,
Coronel, / boa-noite!”, desqualificando a etnia e alçando a
questão a um plano mitológico, que Soares Feitosa cria mesmo é uma
luta de titãs, uma titanomaquia tropicalizada, brasileira, portanto, e
aí está o seu ato criador na poética brasileira. Tal proposta
criativa, mitológica, transfere a luta social para o campo das
realizações de obras que mereçam certa eternidade, colocando em
cheque alguns defensores da raça superior entre os homens, tenham ou não
“um bigodinho ridículo de um ditador ariano” , ou a face serena e
por vezes cínica de um “democrata” que bem maneja a “violência
da paz, da calma”, mas capaz de consentir num mundo de
Caradirus e massacres aos aos deserdados da terra...
Soares
Feitosa é um saltimbanco no melhor sentido: tece com as suas e as
palavras alheias finíssima teia, homóloga do labirinto de Creta, na
qual passeia, seguro, e onde os poetas de talento duvidável jamais se
arriscariam penetrar, temerosos de julgamentos imprecisos e, muito mais
que isso, porque não têm como musa uma Ariadne...
Deuses,
verdadeiramente, são os produtores de obras eternas e às quais está
reservada a posteridade: “só as obras; / os homens não. /”, o que
não quer dizer os autores das obras não cheguem aos séculos seguintes
rebocados pela generosidade do que produziram...
Os
Antônios, todos os ilustres, povoam a sua obra. Impossível dissertar
sobre todos os momentos da obra “Salomão”, de Soares Feitosa. Mas
algo fica muito claro: a tudo o que foi escrito e realizado pelos
grandes escritores, heróis e santos, por todos os tempos históricos,
desde Ésquilo, e sobre todos os temas das privilegiadas regiões do
mundo, a posteridade há de anexar, ao índice universal, com certeza, a
obra de Soares Feitosa sobre a sua terra e a saga do oprimido, como algo
que estava faltando. Como algo merecedor do Século Cem, ou de todos os
séculos...
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João Ribeiro Ramos
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Sobral, 09.11.94
Prezado amigo e eminente poeta
Francisco José Soares Feitosa
Um abraço bem cearense:
Estou em Sobral e para cá
vim na certeza de lhe escrever uma carta longa e afetiva,
em linguagem que não fosse rebuscada, mas condizente
com os seus méritos de espírito e coração, méritos
extremamente elevados que Deus me deixou ver e sentir em
seus primorosos versos e escrituras.
Aqui meditando e olhando para dentro
de mim mesmo, vi que jamais poderia escrever-lhe uma carta
em que a beleza da forma estivesse em pé de igualdade
com o mais aprimorado estilo.
Como o príncipe padre Antônio
Tomaz escreveu em um de seus admiráveis sonetos, eu
me encontrei diante da minha pequenez e do meu nada...
Mas vamos ao que importa. Seus versos,
meu eminente poeta, são de incomparável beleza
! Como sabemos é perigoso fazer comparações,
evitemo-las. Mas lendo-o não pude deixar de pensar nos grandes
vates do passado e também do presente, cujos nomes
estão gravados em nossas mentes e cuja Arte Poética
é patrimônio da humanidade.
com estima,
João Ribeiro Ramos
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