Da Construção Poética
Fiz dois trabalhos para o livro de
Soares Feitosa. O primeiro, desprezei por falta de uniformidade.
Era um levantamento apressado
de nossa cultura desde os seus primórdios, para através
deste situar a poesia de meu conterrâneo no lugar que
lhe é devido. E à pesquisa - juntei modernos
e modernistas, sem esquecer as vanguardas de hoje.
Bem, mas é bom lembrar aos
que tiverem oportunidade de ler este trabalho, que não
sou crítico literário ou coisa que se consigne.
Tenho alguns livros de poesia e ficção; alguns, fui até
modesto; em verdade, são até muitos, e todos
marcados pelas
limitações. Mas até Machado de Assis
dizia que as possuía. Mas isso não salva o barco,
evidentemente Machado de Assis é Machado de Assis, e
que sou ? um simples provinciano das letras, com fumaça
de escritor-poeta.
Bem, vá lá. Mas por
que me cerco de tantos cuidados ? Tudo isso se faz necessário,
a meu ver, para dizer algumas palavras sobre os poemas de Soares
Feitosa, que a princípio me impressionaram.
O livro foi todo construído
pelo autor, da capa ao colofão, mas este se não
existisse não faria falta, já que o livro tem
informação de sobra: fotos, vinhetas, reproduções,
desenhos, letras musicais, etc. tudo a que tem direito uma
obra que se quer de arte - e arte poética.
O título, como todo o projeto
da obra, é belíssimo. Réquiem em Sol da
Tarde (poesia heróica, telúrica e lírica). A referência
é desnecessária, pois rouba ao leitor o prazer
da descoberta. Mas não comete por isso Soares Feitosa
nenhum pecado, nem mesmo venial.
Cores, sons, imagens, harmonia, ritmos
e ritos, orquestração, até sementes de
plantas aromáticas foram jogadas, e bem jogadas, nesse
volume de quase 700 páginas: épico, simbólico,
surrealista, além de outras virtudes (teologais?) e por que
se há de negá-las ? - isso sem falar no arranjo
técnico gráfico-visual-espacial da montagem das
linhas dos poemas e tantos outros ingredientes que formam o
texto.
Há autores que dispensam apresentação,
e Soares Feitosa é certamente um destes, tal a sua identidade
com os poemas de sua saga, que têm raízes e vertentes
clássicas - e a Grécia está presente no
que de melhor gerou o pensamento grego na filosofia, no teatro
e na poesia. Nesses momentos, é sempre oportuno lembrar
Ésquilo, Aristófanes e Eurípedes - três gigantes
que detêm a Grécia antiga nos punhos, sem falar
nos pensadores propriamente ditos.
Soares Feitosa, esse caboclo dos Inhamuns,
teve a paciência e a sabedoria para esperar a sua colheita
poética (estréia aos 50 anos) e deixar que ela
amadurecesse como uma massa cheia de dias promissores de verões.
Sim, o tempo amadureceu seus poemas e deu-lhes cor, sombra,
luz, irradiação de íris, a beleza de rainhas
e princesas.
Trouxe também a fé e
a prudência para que seu trabalho ganhasse, nesse clima
propício, a dimensão de sua perenidade. Eis aí, em
algumas linhas, o perfil do poeta Soares Feitosa, um tanto
singular sob vários aspectos de que se reveste sua arte
poética.
Não é possível
escrever sobre Réquiem em Sol da Tarde sem antes conhecer
o autor. Ele, em pessoa, é o próprio poema vivo, sob
uma exaltação lírica e feroz ao mesmo tempo,
como se sua poesia viesse rasgando o útero da terra
para se
mostrar ao mundo em toda a sua plenitude.
Seus versos clássicos, de feição
modernista, se escrevem e inscrevem na vanguarda inventiva
com grande intimidade, e refazem o que se perdeu ou poderia
ter-se perdido nas curvas da marcha heróica de seu tempo.
Soares Feitosa atualiza seu processo de trabalho na aliança
com outras artes: a dança, a pintura, a música, a
escultura, a arquitetura, enfim, com todos os elementos que
representam o potencial da grande poesia, desde Homero a
Shakespeare, de Dante a Virgílio, de Camões a Pessoa.
A organização conduz
a forma, preconizava Focillon. Não há como negar
isto. Mas que organização é esta de que nos fala ele
? Certamente aquela que fortalece a estrutura da linguagem
e amplia o campo de sua plenitude. Já Valéry
dizia que a revisão é o princípio da perfeição.
Se não é demais, citaríamos ainda Pessoa:
“Exija de si o que sabe que não poderia fazer; não é
outro o caminho da beleza”.
O autor de Réquiem em Solda
da Tarde assimilou bem os preceitos dos autores citados,
mas tapou os ouvidos à advertência de Pessoa,
ou não a conhecia. Serviu-se mais da máquina para fazer
suas poesias do que de suas próprias emoções.
Em outras palavras, entregou ao computador a tarefa dessa missão.
E aí foi que os burros deram n’água.
Essa não é uma crítica,
como já sugerimos, mas uma viagem de observação,
um rastreamento em torno da poemática. Ninguém de
boa fé pretende negar a arrojada vocação desse
autor para a Poesia. Soares Feitosa é um gênio
primitivo, solto, absoluto, a procura de seus genes dispersos
no mundo. Um mar turbulento, uma tempestade ingovernável.
Tem tudo para ser um poeta original (e original ele é),
um poeta de grande porte (e também é isso). E
por ser isso e aquilo é que nos ocupamos de sua figura
literariamente magistral. Ele possui a postura de um príncipe
exótico, de pé, no pórtico de seu palácio,
onde o unicórnio do tempo reina e pasce a messe de seu
poema.
Possuindo cultura geral no campo a
que se propõe o seu trabalho, inegavelmente é
um homem de letras, na acepção mais rigorosa do
termo.
Não lhe falta nem mesmo o malabarismo
verbal, e a improvisação, a visão plural
dos fenômenos estéticos da arte de seu tempo. A única
restrição que consigo lhe fazer é sua
paixão pelo computador, como se ambos vivessem em regime
de concubinato - desconfio que vivam mesmo -e ainda a pesada
influência que carrega de Gerardo Mello Mourão.
O erro maior do autor de Réquiem
em Sol da Tarde foi ter lido os Peãs, de Gerardo, antes
de escrever seu livro. A sombra dessa obra o acompanha como
uma estigma. E Soares Feitosa não esconde essa mancha
pesada, pelo contrário, sente-se orgulhoso dela. E fez dos
Peãs uma espécie de Bíblia de cabeceira.
Os poemas de Gerardo Mello Mourão
são um marco da literatura brasileira; não só
isso, mas obras de cunho universal. Não veja nisso o
leitor nenhum exagero. Mas voltando ao reflexo da obra de Gerardo
na poemática de Soares Feitosa, lembramos que influência
não é sinônimo de pastiche caso fosse, Eça
de Queiroz não teria sido o maior escritor da língua
portuguesa e um dos maiores do mundo, pois o Primo Basílio
não é outra coisa senão uma versão
do Madame Bovary.
No caso de nosso poeta, a presença
de Gerardo é uma constante, mas esta não compromete
seu nome, nem prejudica a autenticidade de seu livro. Ao mesmo
tempo, lembramos que o computador não faz poesia, nem
jamais o fará. Dá o ornamento, o enfeite, dá ao
corpo do poema a decoração emblemática do
dólmã do general russo. Porém a máquina
não é como o coração humano.
Pessoalmente, nada tenho contra o
computador, pelo contrário; até que ele é
útil e engraçadinho. No caso da poesia deve servir para
compor o verso e não para descompor. Os poetas devem
aceitá-lo como instrumento do seu tempo, um acessório
bem diferente da pena e do tinteiro e inimigo da Olivetti,
mas jamais como um meio para se chegar aos fins.
Mas retornemos ao livro de Soares
Feitosa. A exuberância das metáforas na ordem
e na desordem de seus versos enriquece toda a obra. Da fonte
de seus poemas nascem deuses, ninfas, dríades, bruxos,
elfos. É o mito em estado puro rompendo as eras ancestrais,
atirando o leitor contra os diques da História.
O potencial criativo do autor de Réquiem
em Sol da Tarde e a delicadeza dos lances líricos e
amorosos que envolvem alguns de seus poemas lembram Castro
Alves, Cruz e Sousa, Lamartine, Byron, Alfred de Musset. Soares
Feitosa é um inventor de símbolos e signos (arquétipos).
Vai buscar a precisão da linguagem de Mallarmé,
a expressão erudita e ideográfica de Ezra Pound; em
Apollinaire o verso caligramático e, em Cummings a visão
fragmentada do poema.
Usando uma sintaxe nova de relação
tempo-espaço (o espaço gráfico como agente
estrutural) ganha seu livro novas conotações no que
há de mais ousado no panorama da poesia atual.
Tudo é motivo para seus poemas:
aves de arribação, bichos-animais, as conversas
de comadres, cantadores e violeiros, lendas e folguedos populares,
crenças e alusões. Sim, porque tudo se une e
se deságua no estuário do verso. O Nordeste está
em seu livro por inteiro: o sertão dos Inhamuns, e
sua gente sofrida, os rebanhos de cabras, e ele, o pastor de
toda essa região mágica, a mesma do seu preceptor
- daí, quem sabe - a confluência de seus poemas.
Mestre Antônio e tantos outros
mestres, no passo, na pancada, na conversa de pé-de-ouvido,
de joelho dobrado, pé escorado na parede do esteio,
à sombra do beiral da casa de taipa, assuntando à
luz da estrela a bárbara fala dos trabucos ou na lembrança
do vôo da jaçanã e também nas asas
bordadas da borboleta.
E assim, nesse remanso, a cabeça
guarda o barulho do mundo, o gemido dos bois nos currais,
colhendo a seara das estrelas, assistindo o passar do tempo
nos passos da parca. E quando a manhã amanhece ele se
encontra extasiado no “ouro dos jatobás” e volta-se
para a “miragem da cuia/ pois o apanhar da água uma
quase música/ e os joelhos/ sob o rastro dos céus passantes”
- do poema Antífona.
Assim Soares Feitosa resgata a cultura
da sua gente, passa a limpo a geografia e a história
de sua terra, mistura línguas, idiomas, a música
erudita e a popular, aonde nem mesmo Beethoven deixa de comparecer,
e de tudo isso tirar os efeitos mais surpreendentes.
As palmeiras, as tanajuras, as avoantes,
as abelhas são vozes. E ele dialoga com as serras e
com os ventos (demiurgo), e galopa o seu pégaso - potro
fogoso e selvagem - mas os bichos miúdos e as aves também
merecem sua atenção: “Sou de arribar, arribaçã/
groteio tudo, meu giro é amplo/ se a moça vai,
quero ir também” - de Lua de Março.
Para Soares Feitosa inovar não
é uma atitude, mas uma necessidade orgânica, instigada
pelo seu espírito inquieto, aventureiro e inconstante.
E pode (também o deve) fazê-lo, porque domina todas as técnicas
do verso, tem na cabeça a solução dos
problemas estéticos, inclusive os de natureza ética.
Sua linguagem, sua engenharia, sua forma, tosa essa engrenagem,
levam-nos (Perdidos & Achados) à descoberta do poema:
Revire, desencave, quem
sabe, debaixo desses livros, sob grossa poeira saltem,
mola do tempo, dois olhos perdidos ......
achados e a noite cinza.
Não
é do meu feitio interior fazer transcrições, mas como
fugir à tentação de fazê-las diante
de versos como estes (Femina)?
Não lavei os seios
pois tinham o calor
da tua mão.
Não lavei as mãos
pois tinham os sons
do teu corpo.
Não lavei o corpo
pois tinha os rastros
dos teus gestos;
tinha também, meu corpo
a sagrada profanação
do teu olhar
que não
lavei.
Lavei, sim,
lavei e perfumei
a alma,
em jasmim,
que é tua, só tua,
para te esperar
mesmo que não tenhas ido
a nenhum lugar:
donde apaguei
todas as ausências
que apaguei
ao teu olhar”.
Soares Feitosa agora está sozinho
e em plena liberdade reina absoluto e soberano. Não
obstante, ainda não teve seu livro, mais de 700 páginas
maciças, a necessária leitura crítica. Tem
recebido muitos elogios, mas nenhum crítico foi feito
até hoje à sua obra.
Falta uma definição
da crítica especializada para tenhamos uma melhor definição
do alcance de seus poemas.
Verdade se diga, finalmente, Soares
Feitosa com o Réquiem em Sol da Tarde deu um susto nos
poetas brasileiros deste fim de século.
Fortaleza, out/95 José Alcides Pinto
Hinário
e Prece à
Poesia de Soares Feitosa
Soares Feitosa está mudando
o rumo da poesia brasileira. Culto. Oráculo de Delfos.
Passa por cima de rios mares continentes promontórios.
Leviatã nordestino. Tribo das andorinhas azuis, como já
dissera Castro Alves: gênio, entre os seus poetas eleitos.
Aqui também podemos ouvi-lo falar de Bilac como de Cruz
e Sousa, Fernando Pessoa e Augusto dos Anjos, Artur Eduardo
Benevides e Francisco Carvalho, Pedro Henrique Saraiva Leão
e Dimas Macedo, Juarez Leitão e Sânzio de Azevedo,
entre muitos outros para ficar só com os vivos. Da Grécia
aos sertões de Inhamuns um pulo, sem esquecer o Gerardo
por dentro, o Gênese e todas as profecias, que o homem é
dado às transcedências: de Abraão a Davi,
Sara e sua numerosa prole, as judias mais formosas; também
Josué, Jacó e toda a sua progênie.
O poeta Soares Feitosa vai anotando
- desde seu primeiro livro — Réquiem em Sol da Tarde
— tudo o que vê e o que não vê, o que sente e
o que não sente, o que existe e o que não existe, porque
afinal de contas toda a ausência está presente
no mundo; tudo anota em seu caderno de palavras, agora impresso,
numa apresentação primorosa, pelas Edições
Papel em Branco, que singularidade! Ele, Soares Feitosa, é
o poeta de um alfabeto misterioso, mágico, no emprego
das vogais e consoantes mais estranhas: metáforas inusitadas
e surpreendentes. É um cristão primitivo, transcendental
como um rio, um pássaro em alto vôo. Como os anjos
navega em céu aberto, sem barco, sem bússola, porque é
o próprio espaço a se refazer no tempo de sua
ciência e sua arte. Símbolo e signo da modernidade:
arquétipo. Ele é o mais
antigo pastor e módulo cibernético
mais moderno. Integra-se no avanço da Internet e mostra
seu completo domínio nesse campo. Inaugura seu "Jornal
de Poesia", que hoje abriga poetas dos quatro continentes,
ou dos cinco, porque ele já não sabe bem onde
começa a geografia e a história de seu país. Não
conhece os limites, as zonas de turbulência, mas sabe
que a poesia existe no tempo, e preexiste sem começo
e sem fim.
Soares Feitosa, como já disse
em outra oportunidade, deu um susto nos poetas brasileiros
deste fim de século com sua estréia Réquiem
em Sol da Tarde onde a habilidade artesanal do autor foi posta a
toda prova. Obtendo enorme sucesso, seu talento confirma no livro
que ora analisamos — Psí,
Penúltima, livro este que integra duas virtudes teologais?
— escrito para eruditos e críticos de poesia, e para
o público de um modo geral. O título da obra
é para quem sabe saber a sabedoria — fonte onde se oculta
o reino das palavras e seu significado plural.
Pois aí está (o) do
título. E também inseridos no texto, estão
depoimentos dos maiores vultos de nossas letras — de Jorge Amado
a Lêdo
Ivo, Ivan
Junqueira a Hélio
Pólvora, César
Leal a José
Louzeiro, Millôr
Fernandes a Thiago
de Melo, Maria
da Conceição Paranhos a Manoel de
Barros, Osvaldo
Carneiro Chaves a Antônio
Massa, nosso jovem professor filósofo; mais uma vintena
deles, que o autor tomou o país de assalto, espécie
de tornado, levante de Canudos, bravura de cangaceiro, Lampião;
estopim de fogo, Antônio Conselheiro abençoando
os homens com o seu rosário de sementes graúdas,
sem esquecer Padim Ciço e sua leva de romeiros vestidos
de mandapolão e pés descalços, que a Fé não
tem o espinho nem a poeira que cega.
Tudo importa ao poeta e tudo é
objeto de suas investigações: os cantadores e
os violeiros, o sertão por inteiro, com suas andorinhas
viageiras, as avoantes que circulam nas lagoas, as jaçanãs,
o aboio troante dos vaqueiros, o assomo dos macacos nas quebradas,
que tudo por essas bandas respira sob o manto de Deus Vivo
e do Crucificado, dos crentes e cristãos circuncisados.
Ora, meus amigos, tudo isso e mais
do que isso e muito mais possa ser fazem parte da poesia desse
poeta genial — costela do Atlântico, que surge no pórtico
da nossa história literária como um verdadeiro
profeta, um emissário da paz entre os homens, como ainda
Gerardo à esquerda e à direita, ceifando o joio, para que
o trigo da poesia se faça presença eterna. Tudo
é surpreendente neste livro: a linguagem nova, a dicção
presentificada na essencialidade das palavras, no avanço
do tempo, perseguindo a posteridade obstinadamente.
As palavras vão pendoando as
espigas, enchendo-as de leite e mel. As metáforas caem
sobre as sombras da tarde e as iluminam. E em tudo e por toda
parte está o ouro da melhor poesia, a inquietação do
pássaro esquivo, saltando de galho em galho, o rouxinol
chilreando nas brechas do telhado, as vertentes soluçando
por entre as pedras dos riachos. Natureza natureza natureza.
É certo que "a alma fica melhor no descampado/ O pensamento
indômito, arrojado/ Galopa no sertão/ Qual nos
estepes corcel fogoso/ Relincha e parte turbulento,/ estoso,
solta a crina ao tufão". Isso é de Castro Alves.
E isso lembra muito o arrojo metafórico dos poemas de
Soares Feitosa.
Poeta de vanguarda e experimental:
heróico, telúrico e lírico, ele dono (e
proprietário) de muitos recursos gráficos e visuais, faz
e monta o poema como quer. Sua técnica e a habilidade
de lidar com as palavras são até então
desconhecidas. As palavras o reconhecem como se fossem um escravo
bom, obediente, orgulhoso de seu senhor. Monta e desmonta e
remonta — arquiteto da loucura e do sobrenatural. Não
adianta destacar este ou aquele poema como mostra de sua criatividade.
Tudo nele é original, e traz impresso em letras firmes
a marca de sua autenticidade.
Soares Feitosa, cobriu-se de glória
logo aos cinqüent’anos, data de sua entrada nas letras,
até então era um ilustre desconhecido. E foi
essa ausência que o salvou, porque sob o sol das hespérides
amadureceu sem floração, como o acontece aos mitos.
Eles são!, são antes de existir.
Ao mar o poeta deu o estrugir ruidoso
por entre as rochas. Ele é o reflexo de seus poemas,
como Machado de Assis é o de Dom Casmurro, Alencar o
Ipê de sua terra. Chegou maduro para ser colhido e guardado
por inteiro num silo, cuja guarda só poderá ser
confiada à parca fiandeira.
Que devo mais acrescentar "Quero o
perfume do lado de fora/ e a cera-da-abelha/ sertão."
Por dentro do favo estão os seus poemas, e na boca do
povo, na praça, no meeting, no oratório da capela,
na oração da família reunida à mesa. Amém.
Quero-os (se posso querê-los) nos bolsões dos
balandraus, misturados ao rosário e ao Adoremus.
José Alcides Pinto, dez/99
POESIA E
SÍNTESE
Ao gosto da verdadeira poesia,
ou da arte poética, Soares Feitosa, inventor
solitário e consciente de sua missão
na literatura, recria seu universo poético do nada, como
Deus criou o mundo, onde nada falta — da alegria da vida
à tristeza da morte — extremos onde flore a felicidade
e o amor.
Com o conhecimento prévio
de todas as coisas, do que existe e do que inexiste,
imprime ao texto poético uma dinâmica
singular. Seu trabalho em constante mutação enriquece
sua poesia e a distancia dos poetas de sua geração.
A palavra necessária, em seu emprego adequado,
corrige as distorções e os ledos enganos
daqueles que pensam que fazer poesia é arrumar
colunas de palavras como quem faz uma construção
para nela se proteger da intempérie. Não
é esta a segurança que Soares Feitosa procura, ante a
certeza e a dúvida de que tudo que nos corre
o perigo de desabamento e da destruição,
menos o amor.
O amor prememonitório:
nesse sentido vamos nortear nossa análise. No
inabitável, no inacessível, no incomensurável onde
as matérias da alma humana se perpetuam para
cantar esse imenso amor, pediu o nosso poeta uma inspiração
divina, e de joelhos, sim, e iluminado, profeta de
fronte erguida para o céu, contemplou a estrela
mais brilhante, ou cá na terra, de ouvido
atento, o chilrear dos pássaros, a buscar o
trino mais sonoro e mais doce para aproximar-se do
regato de sua deusa-amante.
Poeta marcadamente cristão,
mas também com as nódoas do pecado impressas
na pele, ei-lo dele cativo e escravo a inspirar penas
e cuidados, próprios dos amantes apaixonados,
como dizem Camões e Pessoa. Mas Soares Feitosa
precisa da forma clássica do verso livre, moderno,
para alcançar o objetivo desejado — decantar o
amor que lhe fere o peito. E assim armado de metáforas
audaciosas, símbolos e signos significantes, senta-se
à sua escrivaninha e escreve os versos mais
belos que possa imaginar.
Esse descobridor de imagens
e de ritmos estranhos, na musicalidade dos sons e das
cores, levanta o simbolismo de sua escrita e reconstrói
nossa poemática, dando à mesma um sentido
mitológico universal, tal Dante e Virgílio,
Camões e Pessoa.
Soares Feitosa mergulha na
essência da história, e descobre o sentido
do verdadeiro e inatingível amor-amor eterno dos
mitos que cria de sua fecunda imaginação e que a nada
é comparado, posto que é do encanto de
sua mente prodigiosa que se origina e o toma por inteiro,
corpo e alma, floresce, vive, cresce, se expande ao
vento, abarca o mundo e o alanceia.
Este amor está nas
páginas dos dois últimos poemas que escreveu,
recentíssimos, e que trazem os títulos Nunca
direi que te amo e O prisioneiro, obras primas da
literatura da língua portuguesa. Falar é fácil,
inscrever esses poemas na mente do leitor é
que é difícil, porque o inefável
jamais se apreende pelo sentidos, mas pelo sonhos.
Para que o paciente leitor
não saia desta resenha de mãos vazias,
tentaremos mostrar o que não se mostra, dizer o
que não se diz, porque as composições de Soares
Feitosa as composições de Soares Feitosa
de que já falamos acima são para senti-las.
Sugestões de leitura que cobram do leitor toda
atenção e sensibilidade ao melhor entendimento
de seus versos. Veja no Nunca direito que te amo:
Sem nenhum aviso,
as sardas de um rosto, vieram as sardas
e eram notícia de uma navegação
morena;
uma voz rouquenha, como se abafasse
o grito súbito sobre este porto
de nenhum aviso
Ficamos só nesta primeira
mostra, pois já nos assalta o desejo de transcrever
o poema por inteiro, tal o fascínio, o sortilégio
e magia de que estamos possuídos. Por que o
dilema? O que nosso poeta esconder ou querer evitar seu idílio
amoroso? Talvez seja escusável dizer do secreto
ciúme que permeia a beleza de sua amada, já
que essa traz sem nenhum aviso as sardas de um rosto,
que eram notícia de "uma navegação
morena". Veja bem o leitor a originalidade da metáfora.
E poeta continua em seu mistério e em sua secreta
confissão. Deixemos o intérprete em suspense,
perdido nesse labirinto de emoções, mesmo
porque não podemos desvendar o mistério da transcendência
de seus versos. Abandonemos o poeta que não
nos abandona e passemos ao outro — talvez o mais belo
dos dois ou quando já escreveu Soares Feitosa desde o seu livro
de estréia, Psi, a penúltima.
Não sei nem ninguém
saberá como ele escreveu O Prisioneiro,
poema do que nos ocupamos agora, não parece
obra do ser humano, tamanha a inefável beleza que
porta, o que nos faz lembrar Rainer Maria Rilke, quando
diz que alguns versos dos seus foram ditados por um
anjo": Vamos a um trecho de O Prisioneiro:
"Trouxeram-me a prisioneira
ao interrogatório.
.................................................................
Decretei a prisão
imediata de todos os carrascos.
Mantive a prisioneira
sob algemas,
que ninguém é louco de manter
tesoiro tão rico ao léu;
mas, prudência
maior,
soltei-lhe os braços e mudei
as algemas aos meus próprios pulsos".
Pressupõe-se que esta
peça a que nenhuma outra iguala em nossa literatura,
tenha sido mesmo "ditada", o que nos leva a crer, verdadeiramente,
que algum sopro divino conduziu o pensamento no poetam
em estado de graça. O poema acontece num clima
sobrenatural, num diálogo consigo mesmo, num
prisma de encanto.
Não revelaremos o epílogo,
nem saberíamos como fazê-lo. Cabe ao leitor
inteligente e sensível imaginar, somente, imaginar,
o desfecho de tamanho enigma.
|
Soares Feitosa,
Uma Poesia Nova ou Inovadora?
Chegaram-me às mãos,
em novembro de 1994, por intermédio de Clóvis Sena,
três cadernos de poesia, livros ainda sem aquela forma pela
qual os conhecemos, saídos de tipografias.
Tais cadernos são assinados
por Francisco José Soares Feitosa. Impressos em folhas
de tamanho carta, saídas de uma moderna impressora,
de computador ainda mais moderno, pelo visto do modo como estão
feitos os volumes.
Percorrendo as capas internas, identificamos
o autor: um filho de Monsenhor Tabosa, sertão central
do Ceará, descambando para o vale do Acaraú.
Feitosa, de profissão, é fiscal do consumo, que,
inopinadamente, começou, na maturidade, (50 anos) a escrever
poesia segundo as notícias inscritas nos cadernos de
poesia então recebidos.
Entre muitas outras coisas para ler,
ficaram lá sobre minha mesa os três consideráveis
(em se tratando de poesia) volumes do novo autor, Soares Feitosa,
nomes de famílias bem cearenses, ainda mais dos sertões
do vale do Acaraú. Lá um dia, o sol planaltino me
invadindo a sala com o mesmo esplendor das tardes do Ceará, começo
a folhear os livros do Feitosa. Constato ou descubro - e numa
leitura mais atenta, ser uma obra - nascendo (e em progressão
?) de temática essencialmente cearense, aquela velha
história: da minha aldeia é que vejo o mundo,
dita desde Heráclito e repetida por muitos Tolstois
e Pessoas.
Começa-se pelo próprio
título dos livros, “PSI,
a Penúltima”. Depois de imaginosas alusões de Feitosa à
forma do sinal alfabético grego - um y
(ou uma estaca ?) atravessado por um meio-arco (por uma cuia ou
forquilhas ?) em que ele vê “candelabro, fogo, luz, glória”
quando grafado em maiúsculo é, “mandacaru, sofrimento,
seca e resistência” quando tal letra aparece em minúscula.
Feitosa aí envolve seus conhecimentos de grego de outras
coisas - muitas - com suas vivências cearenses e em mergulhos
nas profundezas pelágicas da infância.
Entram aí o épico anunciado
junto ao título, de cambulhada com as mitologias - várias
- especialmente dos sertões nordestinos, mas especialmente
do Ceará, com as tragédias das secas, seus homens
crentes nos santos e nas lendas como a da raposa maldita que tem
três cabelos do demônio entre os pêlos do rabo,
a se arrepiarem quando o bicho - apresentado no poema como
um símbolo do sertanejo andejo, retirante e sofredor,
vítima dos efeitos da seca - ao topar com o homem, animal
capaz de lhe aumentar tormento, eriça o rabo e arrepia
os cabelos diabólicos.
O poema adquire belezas telúricas
quando o autor, um crente de São Francisco do Canindé,
nos diálogos com a raposa, lembra aspectos bem cearenses
da natureza. O poema refere-se à seca de 1993, e os
sofrimentos do sertanejo fazem lembrar as bondades, o contrário
da falta de chuva, as farturas das invernias quando florescem
os maxixes e canapuns; verde por toda parte, várzeas,
capoeiras e campos do sertão.
O autor aproveita bem, daquele modo
telúrico e lírico, anteriormente anunciado na
capa dos volumes, a temática da seca e faz da raposa
arisca e fugidia a grande metáfora do exodus, “— já
disse, vou fugir, é do meu destino, sempre fugi” - do
homem nordestino, cearense, diante da inclemência da estiagem
e da incúria dos incapazes de construirem o açude
Castanhão para regularizar as águas do rio Jaguaribe
ou dar melhor utilidade às águas do açude
Orós concluído há mais de trinta anos,
sem melhor aproveitamento.
Trata o tema com erudição,
sem cair no eruditismo hermético; lembra traços
da cultura ou da lenda helênica: Piros esturricando o
sertão raposa-Ceará, no bochornal do seu chão.
Destaco em seguida, dentro da temática
cearense, num dualismo constante - seca-invernia, chuva-estiagem,
verdura-sequidão, miséria-fartura - neste primeiro
livro de Soares Feitosa, o longo (e variado - em verdade, Feitosa
é um grande inquieto a esvoejar por sobre todas as coisas,
nunca se prendendo a uma trajetória linear) poema Siarah
(grafia antiga do geônimo) de grande força épica de
mistura com o lírico, o que não é fácil
de realizar.
O poema, escrito em setembro de 1993,
plena seca de um ciclo de quatro anos de estiagem, celebra
a construção de um canal, a trazer águas
jaguaribanas para o sistema Pacoti-Riachão de abastecimento
de Fortaleza e circunvizinhanças.
Ciro Gomes, então governador
do Ceará, é louvado indiretamente - louvo eu
também, louvemos todos nós - por sua coragem de
construir o Canal para não ver Fortaleza (belíssima) morrer
de sede: “do alto deste barranco, mil Secas vos contemplam”
- diz Feitosa, repetindo Napoleão (Soldados! Do alto
destas pirâmides, quarenta séculos vos contemplam!
- depois de conquistar o Egito) e aludindo à inauguração
da obra, depois de noventa dias de trabalho de 24 horas por
dia, uma
epopéia!
Na criação poética
de Soares Feitosa, dentro da temática cearense, com
suas coisas, seus bichos - preás, jumentos, tejuaçus,
cupidos, lavandeiras, sabiás (o passarinho e a árvore)
- seus acidentes geográficos - a Serra das Matas, onde
está a terra da infância do autor e que tem duas
vertentes de águas: uma para o rio Acaraú, outra
para o Rio Quixeramobim -, os rios Jaguaribe, Macacos, Aracati
Mirim -, o povo e seus costumes, - Anísia, a mãe
do poeta, vendendo latas d’água da cisterna -, destaco o poema
Panos
Passados, com linguagem tipicamente de nosso povo, a começar
pelo título da peça -, onde reencontro as falas
sertanejas das bandas do Acaraú, no inverno, as chuvas
- ou no verão canicular, o sofrimento.
Lirismo que transborda, em Panos Passados,
dos sertões e chega até a beira do mar, os ventos
e as velas das jangadas. O poema desenvolve-se, ou se inspira,
em versos de Luciano Maia (poeta meu muito apreciado), também
cantor do cosmos cearense, em seu livro Memória das
Águas.
Há na poética de Soares
Feitosa, e muito neste poema Panos Passados, uma constante
recorrência à infância, às imorredouras e, como
tais, saudades dos tempos de menino: os deslumbramentos, não
só diante das moças nuas, no banho de rio, como
foi o de Manuel Bandeira, mas diante das coisas mais simples
como os banhos de chuva, das primeiras águas de dezembro
ou de janeiro, debaixo das biqueiras das casas e que chamamos
de jacarés.
No seu fazer poético, Feitosa
procura seguir uma das regras gerais de Heráclito: “o
escrito seja fácil de ler e de recitar”, de bom entendimento
para todos. É o que se verifica na maioria de seus poemas
e, ainda como Heráclito, o afã de encontrar no efêmero
o permanente.
No volume O Domador - Ritual Fire
Dance - agradou-me o poema Menino do Balde, trabalho em que
vejo também as preocupações sociais do
poeta. Foi, me parece, otimamente (para não dizer perfeitamente,
chegando aos extremos) realizado: de uma situação
simplíssima, em que um outro não teria visto poesia alguma
- um menino de rua, no Recife, subindo num balde para alcançar
de um carro parado no sinal e vender o seu singelo trabalho
de limpador - Feitosa como que tirou um poema que direi heróico,
exaltando a valentia, a luta dos meninos abandonados.
Menino do balde é apresentado
como um guerreiro, não obstante seu tamanho; é
o herói de uma guerra diária, surda e implacável. O
tema se repete ou continua nos versos de No Céu Tem Prozac,
poema comovente, triste, a tristeza da nossa miséria,
os meninos morrendo de fome nos braços das mães,
a criança preferindo a morte, o céu, onde a mãe
lhe diz que há pão, muito pão.
Encontramos, ao longo da obra o que
ouso chamar de simbologia errática, sem mensuração
anterior, sem compromissos com outras escolas, encontráveis
como em poemas Evanescências (canto da Recusa) o Raso
da Catarina, medonho deserto sertanejo, de mistura com o paraíso
perdido, Milton e Dante.
Quero deter-me agora, em especial,
no poema Format
C dois pontos. É no meu entender, um marco poético,
de uma nova era, uma cultura que estamos, neste fim de século,
apenas penetrando, o da cibernética - aí vêm
os gregos novamente -, da informática, a época
dos computadores - ah! o velho latim computando outro tempo,
mais moderno que nós!
Format C Dois Pontos é um poema
pleno de originalidade. Não tenho conhecimento de outro
qualquer versando tão bem sobre o uso e a linguagem,
a terminologia própria dessas máquinas maravilhosas -
os computadores.
O trabalho recende inteiramente ao
novo, de novidade plena, o autor muito feliz no jogo de palavras,
com os termos próprios dos programas de computadores.
Soares Feitosa toma de uma palavra desses programas: delete,
que segundo tais designações serve para apagar
o que se errou na digitação do texto ou simplesmente
para excluir do “arquivo” um certo trecho. O termo, latim
puro, como muitos outros da linguagem dos computadores, é usado
nesse poema para dar uma extraordinária visão
(computadorizada ?) da humanidade, desde o homem pré-histórico
até o inventor dos computadores mas que também
fez a bomba e “deletou” Hiroshima.
É interessante como Soares
Feitosa desenvolveu o tema em torno da trajetória do
homem, usando os “artifícios”, a terminologia das caixas
mágicas dos Personal Computers, os micros.
E, como não poderia deixar
de ser, por entre os deletes, undeletes, enters, saves, copieds,
formats ou bad command or file name, Soares Feitosa vai imprimindo
seus conceitos sobre o mundo e seus filhos, ora bons, ora “apagadores”;
e mais, suas lembranças do mundo cearense até
chegar ao micro cosmo do nosso Sobral, no meio do sertão
do Acaraú.
Inovou.
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