Salomão Sousa
A Juventude e a dignidade da
poesia de José Godoy Garcia
Trata-se, inevitavelmente, de uma das
tempestades mais extraordinárias que poderiam irromper em minha
vida: o desaguar da amizade e o incender-se de uma poesia que eu já
admirava. Tenho sido íntimo de uma vida e dos momentos de maior
intensidade do seu processo de criação. Nunca saberemos se a
tempestade começou em 1918, quando ele nasceu em Jataí (GO); se em
1948, quando foi editado seu primeiro livro; se em 1978, quando
possivelmente nos conhecemos; se acabou de acontecer em 1998; ou se
tudo está reservado para 2018 ou para um grande descobrimento daqui
a quinhentos anos, se a vida, ao lado deste poeta, é um
acontecimento dialético, com descobertas e invenções intermináveis –
para ele que a nova estrela nunca será a última. E tudo revestido de
duas moralidades: a dignidade e a valorização humanas, que permeiam
toda a sua obra e toda a sua vida.
Toda abordagem crítica tende a
naufragar quando temos de tocar numa alma criadora que transparece
nunca ter sido atingida pela tragédia, onde parece que nunca
aconteceu a angústia, o ressentimento. A modernidade, pelas
exigências da imagem viva no vídeo, exige grandes tragédias,
desabamentos, sangue coalhado em acidentes, e os remordimentos
interiores resultantes da solidão do individualismo. Não é o caso
aqui. Em qualquer abordagem do homem e do poeta José Godoy Garcia,
tudo dirá que a realização não poderia se cumprir fora da
serenidade, do humanismo, da dignidade. A vida e a literatura não
poderiam se cumprir de outra forma. A perfeita integração, a
satisfação de estar acontecendo. É uma poesia íntegra do Modernismo
porque o seu autor estava ali naquele momento. Se estivesse antes, a
modernidade não teria sido menos aguda em seus versos.
Quem convive com José Godoy Garcia não
pode deixar de se encantar com a forma como ele irradia e capta as
metáforas de alegria do mundo, sem nunca perder a lealdade com o
instante histórico. Em Os Dinossauros dos Sete Mares, dentre os seus
livros o que ele considera que conservou mais intimidade com a
atualidade –numa obra que sempre será atual, se íntima da vida–,
aparece esta confissão sobre a relação ontológica entre a vida e a
obra: Ah, se não houvesse a poesia/eu simplesmente seria um zé
garcia atravessado/na garganta de deus e do diabo, eu não seria um
zé/…/eu não seria, engraçada, uma tempestade muda. Ele se sublimou
em não fazer estardalhaço, mas conter-se para ser. Tanto polemiza e
se retrai dentro de seu processo criativo que o homem, às vezes,
prejudica o andamento da obra, já que os meios de divulgação exigem
a presença manipulada do autor para mostra da obra.
Apesar de ter dedicado 12 anos à luta
do Partido Comunista (1945/57), prestando serviços os mais diversos,
principalmente advocatícios e de gestão de finanças, o engajamento
exigido dos comunistas em outros países não atingiu a sua produção
poética, quase paralisada naquele tempo. A adoção da filosofia
estética de Lukács salvou a sua poesia da grandiloqüência e do
prosaísmo. Em seus poemas, o homem aparece em movimento, onde está
sendo; e não em ação, onde tem a obrigação de adotar uma postura de
ser. Quando muito, a indignidade buscando destruir os
desorganizadores do humanismo.
Para ele, a poesia é tudo que o
pássaro pensa da chuva. A matéria de seus versos, portanto, não
poderia ser captada fora os elementos simples – água, chuva, sol,
madeira, homem, menino, esparsos no mundo ou mesmo em instantâneos
de noticiários. Não precisa ir longe, colocar o pássaro em outras
regiões existenciais, mas revelar que o pássaro gosta de ser
pássaro. Não precisa apresentar valores, mas ser íntimo de tudo que
veste a vida. Ser amigo da própria camisa, sem ser franciscano –
pois aí já seria adotar uma postura, e o poeta em José Godoy Garcia
não se limita a ser político, mas busca ser um co-autor da beleza do
mundo. A sua lição de poesia é a de inventar o mundo que já existe,
respeitando a unicidade apontada por Platão no diálogo Górgias, onde
a ordem universal tudo envolve e sustenta como num abraço de
amizade. As suas sagas, as suas rapsódias podem ser encontradas em
qualquer interior destes do Centro-Oeste.
Um homem para ser grande, já está
definido pela filosofia, depende das condições históricas e das
circunstâncias por ele mesmo construídas. Numa época em que o
Centro-Oeste era pouco servido de serviços escolares, pôde José
Godoy Garcia estudar nas primeiras escolas instaladas em Goiás – no
Grupo Escolar Marcondes de Godoy, em Jataí; e no Liceu de Goiás
(1935/37), da cidade de Goiás Velho, onde foi colega de Bernardo
Élis. Para continuar a formação, passou 1938/39 no Rio de Janeiro,
fazendo o Clássico e freqüentando rodas literárias com Lúcio
Cardoso, Rubem Braga e outros. Em sua segunda ida ao Rio de Janeiro,
assistiu a histórica conferência de Mário de Andrade no Itamarati.
Em 1942, instala-se em Goiânia, onde
completa o Clássico e o curso de Direito. Aí tem início a sua
produção literária, com a publicação de artigos e poemas em O
Popular e revistas. Apesar de publicado só em 1948, teve Rio do Sono
premiado em 1944, no segundo ano de existência da Bolsa de
Publicação Hugo de Carvalho Ramos.
No caso do retardamento da publicação
do primeiro livro, a casualidade também contribui para a
grandiosidade de sua obra. Enquanto o livro não saía, pôde ir
substituindo os poemas grandiloqüentes por outros de pura intimidade
com a vida. A saga dos rios, os cantos negros em ressonância de
Langston Hughes, talvez a única influência em sua poesia, apesar do
pouco que conheceu da obra deste norte-americano. É desse livro
inaugural o poema Canto ao Poeta Negro Langston Hugues, lido em
comício em Goiânia, e a Espécie de Balada da Moça de Goiatuba,
obra-prima que até hoje influencia poetas de todo o País. Ainda
outro dia, assisti o maranhense Luís Augusto Cassas confessar a José
Godoy Garcia que o ritmo desse poema serviu para construção de
alguns versos de sua autoria. Moisés Velinho, que publicou na
revista Província de São Paulo alguns poemas do Rio do Sono, antes
de sua edição; e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros, saudaram o
livro em notas de rodapé. Do exterior, Vinícius de Morais, e do Rio
de Janeiro, Manuel Bandeira, escrevem entusiasmados para o autor.
Numa época, portanto, em que havia reconhecimento e orgulho do
lançamento das obras importantes. Dalcídio Jurandir discute o livro
em encontro de escritores realizado no Rio de Janeiro, publicando
síntese do debate em revista local. Dava-se mais as mãos para a
divulgação literária, sem muita observação da região de seu
surgimento.
Em rodapé do Diário de Notícias (RJ,
12/12/48) e encartado no livro O Espírito e a Letra (Companhia das
Letras, 1996), com um título – Província – que reflete a tendência
natural dos grandes centros de menosprezar a produção literária de
outras regiões, Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar o primeiro
livro de José Godoy Garcia, aponta que o poeta goiano está mais
próximo de certo modernismo da fase heróica. Poesia de cromos, de
visões fugidias, de confidência sentimental, não quer vestir-se da
tragédia e nem pintar-se de cores lúgubres.
Desde o primeiro livro, portanto, vai
se firmando como o primeiro poeta goiano de nomeada. Antes, em 1928,
vinham os rasgos modernos de Léo Lynce, mas titubeantes; e, em 1937,
a poesia marcante de João Accioli, que logo desapareceria, antes do
amadurecimento e da afirmação de um nome e de uma poética. Com o
advento da obra de José Godoy Garcia, desencadeia-se o surgimento
daqueles que darão representatividade à poesia goiana: Afonso Félix
de Souza (1948), Antônio Geraldo Ramos Jubé (1950), José Décio Filho
(1953), Gilberto Mendonça Teles (1955), Cora Coralina (1956).),
Jesus de Barros Boquady, por exemplo, só começaria a publicar em
1959, atrasada cumplicidade com a Geração de 45, ala menos radical,
ligada a João Cabral de Melo Neto. E Yêda Schmaltz (1964), que
transcenderia o simples jargão de voz feminina da poesia.
Os movimentos literários, como se pode
notar, repercutem tarde em Goiás, se é de 1937, quinze anos após a
Semana de 22, o primeiro livro de poesia modernista editado no
Estado, de João Accioli; e só em 59, quatorze anos após o início da
Geração de 45, sai o primeiro livro de Jesus Barros Boquady. Já Rio
do Sono, de José Godoy Garcia, que sairia vinte e seis anos após o
início do Modernismo, transcenderia as linhas do movimento. Traz
poética própria, sem obrigatoriedade de ligar-se aos mentores da
Semana de 22, ensejada pela maneira peculiar da formação e da
vivência do homem da região. Mesmo que seja tentador para muitos
críticos qualificá-la de regional, nem toda produção literária da
região obedece puramente o coloquial. Se a única luta, no
Modernismo, é por um caminho, José Godoy Garcia interna-se numa
forma peculiar de sentir a região, já que participa de outra
realidade do País, onde nem seria preciso o Manifesto Antropofágico,
pois, no Centro-Oeste, com a natureza exuberante e o nascimento de
novas cidades, seria impossível fazer poesia de gabinete. Até hoje,
ao se ler este livro, é impossível ficar impassível diante dele. Há
a sensibilidade do autor para nos carregar de emoção. E essa
característica, mesmo com os longos silêncios na sua produção, ele
jamais abandonaria. Seus versos, além de fazer pensar, levam o
leitor a emocionar-se. Não é uma arte crua, indiferente, amarra pela
emoção e torce o pescoço do leitor.
Com o ingresso no Partido Comunista,
José Godoy Garcia só retomaria a literatura em 1958, depois de
instalar-se nos canteiros de obra da nova Capital (dezembro de 1957)
e em cidades goianas circunvizinhas. Sua produção só viria a se
intensificar após consolidar-se financeiramente na nova Capital.
Escreve o romance Caminho de Trombas (Editora Civilização
Brasileira, 1966), que retrata sua experiência no partido comunista
em plena vigência do regime militar; e o segundo livro de poemas, o
antológico Araguaia Mansidão (Editora Oriente, Goiânia, 1972), que
representará o amadurecimento total do autor, sendo o cume de toda a
poesia produzida até agora em Goiás. O livro é uma viagem pela
paisagem goiana. É freqüente o uso de sugestões de seu título em
campanhas publicitárias. Irresistível até para Curt Meyer-Clason,
tradutor do Grande Sertão: Veredas, que transporia para o alemão
alguns poemas deste livro para a antologia da poesia brasileira
publicada em 1997, na Alemanha. Araguaia Mansidão passaria a
integrar a lista das obras exponenciais da literatura goiana junto
com Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos; de Veranico de
Janeiro, de Bernardo Élis; e Os Cavalinhos de Platiplanto, de José
J. Veiga, figurando quase isolado na área de poesia.
Complementa a sua bibliografia: Aqui é
a Terra (Editora Civilização Brasileira/Editora Oriente, 1980), que
reúne os dois primeiros livros de poemas e o inédito A Casa do
Viramundo, que reflete a atmosfera do regime militar e da Guerra
Fria; Entre Hinos e Bandeiras (1985); Os Morcegos (1987); Os
Dinossauros dos Sete Mares (1988); Florismundo Periquito (1990),
contos e novela; O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho (1994);
O Aprendiz de Feiticeiro (1997), artigos de crítica – estes últimos
pela Thesaurus (Brasília).
Desde o primeiro livro, até os poemas
enfeixados no inédito A Última Nova Estrela, incluído na coletânea
de suas poesias completas, José Godoy Garcia apresenta uma rara
coerência produtiva, sempre no percurso de fidelidade ao sonho, à
vida e à madura juventude nunca perdida. O poeta insiste em tecer de
palavras o mundo, para ele que quer ampliar a beleza do mundo. É uma
poesia que convida o homem a integrar-se nessa beleza: Perdão a toda
natureza que envenenei./…/Como do alimento que pássaros buscavam.
/…/É engano pensar que a poesia não dá sentido ao dia. E num poema
mais à frente: A vida de um homem é a vida do dia. Mesmo nos poemas
de construção e beleza mais intrincadas, como naquele que começa com
o verso Minha mão se fosse a sua minha lembrança, do novo livro, há
uma vertigem exigindo que tudo se veja e se complete. O homem não se
completa sem a nuvem, que não se completa sem a água, que não se
completa sem o rio, que não se completa sem a canoa… E tudo se
gostando. A poesia de José Godoy Garcia faz parte deste corolário de
necessidades do mundo. Sem ela, as belezas não seriam as manhãs e os
caminhos. As laranjas não existiriam com tanta exigência de beleza,
de sex appeal.
Se José Godoy Garcia, enquanto ser
social e político, é marxista, quase extremista, provocativo;
enquanto escritor é aquele que pratica o equilíbrio – não como o
simples neoliberal, que não assume que está prejudicando o social. É
o poeta dialético, que não se leva pela simples esperança – esperar
é aguardar que outro agente venha nos substituir na ação –, pois tem
consciência de que o mundo se transforma não só pela ação, mas
também pelas idéias. E para ele as idéias de transformação podem ser
novas, devem ser novas, não podendo se pautar sempre por posições
pré-fixadas. As novas idéias passaram a fazer parte do mundo,
proclama um de seus versos dO Flautista e o Mundo Sol Verde e
Vermelho. Assim, a sua poesia de reafirmação deste embate dialético
entre ação e idéias, que possibilita o sonho de todos – ser feliz.
Todo poeta para ser grande tem de
estabelecer uma rotina de trabalho e de descobrir o ritmo de sua
própria poética. (Esta assertiva, como muitas outras, tanto pode ser
minha como deve ser dele, tão entrelaçadas estão nossas vidas nestes
últimos anos.) Justamente por ter produzido com regularidade, num
ritmo que sempre teceu de forma coerente sua maneira de pensar, de
escrever e de conviver com a realidade, a poesia de José Godoy
Garcia é uma das produções mais importantes da Literatura Brasileira
nos últimos cinqüenta anos (não poderia avançar mais no tempo, já
que é de 1948 seu primeiro livro). Incompreensível, no entanto, que,
no cinqüentenário de sua poesia, ele ainda tenha de cuidar das
edições de seus livros. Se ainda não está ao lado dos grandes nomes
da poesia brasileira se deve à incapacidade e à intolerância dos
críticos e dos editores para com a literatura que não se liga às
correntes dominantes e para com os escritores das regiões do País
fora do parque editorial capaz de distribuição em todo território
nacional. Dispensa-se à obra poética de José Godoy Garcia o mesmo
tratamento incivil (a palavra é dele? ou de Oswaldino Marques?) com
que foi abordada a publicação dos livros de Sosígenes Costa.
Pode-se vislumbrar que os novos poetas
serão os responsáveis pela consolidação dessa obra. Basta ver que
Nicolas Behr, desde o início de sua carreira, é um dos seus
admiradores, e que, dos poetas da Capital com uma produção
definitiva, foi um dos únicos a ser convidado a participar da
antologia Mais Uns, que reúne importantes poetas marginais e
emergentes de Brasília.
Quem quiser entender essa poesia não
poderá tomar homem e obra de forma isolada. O seu primeiro verso
surgiu – se fosse possível remontar o instante inicial de sua gênese
literária – quando viu pela primeira vez um homem, ou o nascedouro
do veio de um rio, ou o cintilar de um mínimo inseto. Quando José
Godoy Garcia fala de sua poesia, fica explícita a sua poética:
ritmos simples, naturais, nunca discursivos, sempre como caixa de
ressonância do dia, com uma pauta que elimina o vago, o insosso;
amplo de ansiedades e eventos da vida do ser humano comum. (Para ele
que transforma todo ser em um evento grandioso.) E conclui a visão
sobre o trabalho do poeta: O rapsodista é um escravo da razão. Ele
quer ser um palhaço, um clown desnudando tudo que encontra em seu
caminho. Pensa que a tragédia vai virar comédia.
Não será o menosprezo, a
discriminação, a indiferença que arranhará o vigor dessa poesia de
importância incontestável, sem grandiloqüência filosófica, sem
falsas vanglórias, pois nela não há supremacia do homem sobre a
vida. Há apenas um integrar-se. A semente não questiona quando vem a
chuva: nasce. Assim é o homem para José Godoy Garcia: reagir sempre
que a harmonia for ameaçada. Sempre está diante da vida sem ter medo
ou rancores, por isso a jovialidade de toda a sua obra. Escrever
para ele é como transpirar, abrir as folhas de uma janela, de um
livro. Sabe que a realidade está ali e terá apenas de achegar-se de
olhos abertos, com a abertura do coração, para imprimir-lhe
dignidade. Nunca esteve preocupado em fundar uma nova escola
literária, em estabelecer novos ditames poéticos. Preocupou-se
sempre em fazer que cada verso fosse íntimo da vida.
Nunca se sentiu atraído pelas
correntes literárias dominantes nos últimos cinqüenta anos. No
entanto, soube conviver com os seus agentes, sendo amigo de alguns,
sem necessidade de amarrar sua poesia a nenhum ditame só para o
merecimento crítico. Contudo, manteve sempre postura crítica de
oposição por entender que a literatura é autora de enriquecimento
humano e de aberta controvérsia crítica.
Acabou duplamente perseguido. Por
estar sempre envolvido com os movimentos de crítica e ruptura
social, foram longos os períodos em que teve de viver na
obscuridade. Por manter-se alheio às práticas poéticas de sua época
em fidelidade à vida e à construção da própria obra, a sua poesia
foi deixada à margem pelo processo crítico defensor das escolas
literárias, que, depois do Modernismo até o advento dos marginais,
talvez por fuga da crítica social, estiveram compromissadas com o
esvaziamento da palavra (vanguardas concretistas e Geração de 45).
Mas como nenhuma corrente consegue aprisionar a verdadeira poesia, a
obra de José Godoy Garcia continua cumprindo a sua trajetória de
beleza, de juventude, e de dignidade.
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