Sérgio Vilas Boas
Olhares modernos sobre um
romântico
São Paulo, 10 de agosto de 2001 - A
obra de Jorge Amado nunca excitou a academia. Mas a maioria dos
poucos ensaios críticos foi implacável. Argumentou-se que
personagens de Jorge - coronéis desumanos, negros viris, brancos
arrivistas, proletários utópicos, especuladores, biscateiros,
prostitutas beatíficas, cafetões manipuláveis, etc. - eram
caricaturais, estereotipados e psicologicamente vazios; que seus
enredos eram melodramáticos, com soluções sobrenaturais (às vezes
embebidas em sincretismo religioso) para conflitos sociais
concretos; que o conteúdo era panfletário, machista e folclórico;
que sua linguagem popularesca negava a literatura como arte; que
imperava a pornografia gratuita, quase perversa; que o pano de fundo
socialista era, na verdade, populista, pois acreditava que tudo o
que vem do povo é necessariamente bom.
Diante da inabalável empatia de várias
gerações de leitores, multiplicados anualmente aos milhares, tais
argumentos (luminosos nas décadas de 60 e 70) podiam soar invejosos
e até levianos. contrapunham-se a defesas veementes, como as feitas
por Roger Bastide, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Pablo Neruda,
Gabriel García Márquez, Celso Furtado, José Paulo Paes, Antonio
Candido e outros. Muitas opiniões favoráveis a Jorge estiv eram
marcadas também pela amizade e admiração que sua figura sempre
cultivou entre personalidades de diversas ideologias. Para os
estrangeiros, principalmente, os romances de Jorge Amado são uma
espécie de carteira de identidade do Brasil.
Mas Jorge e os acadêmicos habitaram
mundos diferentes, pensaram de modos diferentes e pouco se
comunicaram. O autor de 'Gabriela, Cravo e Canela' (1958) tinha a
convicção de estar tocando um projeto de popularização do livro e da
literatura de ficção no Brasil em mo ldes marxistas. Mas os
princípios embutidos em seu projeto - principalmente a partir da
publicação de 'Jubiabá' (1935), o quarto livro -, já haviam sido
superados pelos padrões do modernismo, base de formação de pelo
menos três gerações de críticos liter ários no Brasil.
Jorge era um fabulador sem pompas, um
contador de histórias auto-crítico, antiintelectual, criador de
personagens que ganharam vida própria até em outros campos da arte.
Ele não mediu esforços para se expor às massas. Se atingiu-lhes a
consciência, como pretendeu durante longo tempo, é outra questão que
tampouco capturou a atenção da universidade.
Os críticos literários Eduardo de
Assis Duarte (UFMG) e Silviano Santiago (UFRJ) - Eduardo é um
especialista em Jorge Amado; Silviano, um admirador de 'Seara
Vermelha' (1946) - concordam em um ponto: o grosso da obra de Jorge
Amado é antimodernista e foi examinada com um 'olhar torto'. Para os
modernistas, a grande questão era o tratamento estético do material
literário, com ênfase na ela boração da linguagem. Não que houvesse
uma fórmula. Graciliano era enxuto e direto; Oswald de Andrade,
fragmentário; João Guimarães Rosa, obstinado por criar um
regionalismo 'cosmopolita', calcado na filosofia. Esses e outros
autores nutriam um desejo, explícito ou não, de inovar e reinventar,
de buscar a simplificação por meio da complexidade ou vice-versa.
Jorge Amado nem cogitava disso. Ao
contrário, pode-se dizer que Jorge Amado era um narrador do século
XIX. Suas personagens evoluíam ou involuíam com o tempo que se grava
nos relógios, os conflitos eram nítidos e postulados pelos extremos.
'Não por acaso, Jorge se dizia discípulo de José de Alencar e sua
Gabriela tinha muito de Iracema. Jorge nunca procurou a sofisticação
narrativa ou a participa ção em grupos de vanguarda. Queria (e
conseguiu) produzir dramas de rápida aceitação popular', diz Eduardo
Duarte.
O sucesso de público foi imediato.
'Cacau' (1933) esgotou a primeira edição de dois mil exemplares em
40 dias, enquanto 'Macunaíma', de Mári o de Andrade, levou oito anos
para vender 700 cópias. 'Ninguém pretendeu ser estritamente
contrário à figura de Jorge Amado. Mas minha geração tem princípios
políticos e estéticos muito diferentes dos dele', diz Silviano
Santiago. 'O pouco interesse que despertou ou as análises, digamos,
negativas que sua obra tenha recebido se devem à perspectiva com a
qual ele foi criticado. Não é uma questão de leviandade, elitismo ou
soberba', diz Santiago.
Outra 'zona erógena' dos modernistas,
não manipulada por Jorge Amado, são as formas de narrar, o
reconhecimento das perspectivas e limitações de quem narra, a recusa
à linearidade e ao enredo de fronteiras (princípio, meio e fim, por
exemplo) rapidamente assimiláveis. Como a 'grande história' da arte
não é evo lucionista, mas pendular e oscilatória, interpretações
baseadas em retrocessos e avanços estéticos correm uma série de
riscos. Um deles é o de padronizar a metodologia crítica. Mário de
Andrade dizia que o mau crítico é aquele que só procura defeitos.
Nos tempos das sociedades 'castas' do
século XIX, a palavra do especialista tinha enorme peso na percepção
dos leitores, que não compunham uma massa significativa dentro de um
universo imensamente maior de iletrados. Com a industrialização da
cultura, a academia foi a primeira a perder o poder de 'canonizar'.
'De certa forma, Jorge Amado foi canonizado pelos leitores',
acredita Eduardo de Assis Duarte, autor de 'Jorge Amado: Romance em
Tempo de Utopia' (Record, 1996).
O que teria motivado gerações e
gerações de leitores em todo o Brasil (e também fora dele) a devorar
um conjunto de narrativas vistas como de baixo valor estético? A
pergunta vale para vários autores, e vem sendo formulada há séculos.
O pensador Walter Benjamin notou que a mesma massa que reagia de
modo retrógrado diante de um quadro de Picasso assumia atitudes
progressistas frente ao filme 'Luzes da Cidade', de Charles Chaplin,
por exemplo. Chaplin e Amado bateram na mesma tecla: o bem vence o
mal e a justiça se faz. 'Para Benjamin, i sto se devia à
indissociabilidade, por parte do público, entre o olhar da reflexão
e o olhar do prazer', escreve Eduardo Duarte.
É fato que Jorge Amado colocou o povo
como personagem para ganhá-lo como leitor, para levá-lo a se
identificar com as figuras e ações representadas em seus romances.
Ele próprio assumia isso, o que ajudou a transformar o escritor
baiano em personagem de si mesmo e uma verdadeira instituição. 'A
partir de 'Jubiabá', ele começa a abraçar os modelos do 'romance
romanesco', que combina realismo social com imaginário popular e
aposta no engajamento partidário', diz Eduardo.
Durante muito tempo, Jorge Amado e
Erico Verissimo, politicamente opostos, foram os únicos escritores
independentes do Brasil. Viveram da literatura e para ela, sem
necessidade de servir ao Estado como funcionários públicos ou lidar
com censuras e autocensuras. Por ser comunista, Jorge sofreu com a
censura - 'Capitães de Areia' (1937), por exemplo, foi queimado em
praça pública - mas também se beneficiou dela. Vendeu milhões de
exemplares no Leste Europeu.
O sucesso comercial a partir das
restrições da censura forçou-o a lançar ainda mais luz sobre os
marginais e assim tentar entender classes, gêneros e etnias. O bom
baiano tensionava drama de seres irr ealizados como cidadãos, que
tinham de enfrentar as adversidades de uma estrutura econômica
herdada do passado colonial. Neste sentido, é natural que seus dotes
se pareçam com os dos autores do século XIX. Mas mesmo sem a 'água
com o açúcar', típica da Belle Époque, os modernistas jamais o
perdoariam.
(Gazeta Mercantil Fim de Semana/Página 4)
Leia Jorge Amado
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