Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Tiago Coutinho


 

Vou-me embora pra Marduk

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

 

A figueira da Casa do Sol faz a sombra sobre o terreno. Naquele espaço, haverá, logo mais à tarde, a celebração de uma missa em homenagem à escritora mais subversiva que este País já viu. Saudosos, amigos e cachorros se reúnem numa celebração íntima para lembrar dela. Parece mentira, mas já faz um ano que Hilda Hilst nos deixou, devido à falência múltipla de seus ossos, oriunda de uma fratura no fêmur.

Ela deixou saudade. Mas provavelmente fora para um lugar melhor: Marduk. “Seria um bom planeta, onde ela acreditava que Eisntein e outros seres geniais se encaminhariam depois da estada no planeta Terra”, explica Rita Ruschel, amiga e vizinha de Hilda durante muitos anos.

Em 66, Hilda optou por morar com dezenas de cachorros na Casa do Sol, um sítio no interior de Campinas onde abrigava e recebia seus amigos e também se dedicava à literatura. Hilda deixou nada menos do que 41 obras repletas de qualidade e polêmicas. Classificada muitas vezes como subversiva e amoral, seus textos e livros dividiam o público. Para alguns críticos, ela fora um dos maiores poetas da língua portuguesa. Poeta e não poetiza, pois para ela, o feminino reduzia o valor do artista. Para outros, Hilda fora simplesmente ilegível, incompreensível, uma farsa.

Muitas vezes sua obra também fora limitada e avaliada pela crítica como autora pornográfica, devido publicações de livros salientes como “O caderno rosa de Lori Lamby”; “Contos d´escárnio/Textos grotescos”; “Cartas de um sedutor” (compondo a “trilogia obscena”), além, é claro, da tão famosa “A obscena senhora D ”. Mas Hilda vai muito além disso. Sua grande marca está na inovação na linguagem poética. “Sou essencialmente poética, minha ficção também é poética, assim como meu teatro”, disse ela em uma entrevista ao Caderno 3, há dois anos.

No entanto, independente de se gostar ou não, há pelo menos um consenso já comentado por Caio Fernando Abreu (1948-96), em correspondências com a escritora: a obra de Hilda é marcante. “Ficar impassível, diante de sua obra, tenho certeza que ninguém fica”, dizia ele ainda na década de 70.

A vida de Hilda fora tão transgressora quanto a sua obra. Começou na vida boêmia, quando cursava Direito, período em que começou a chocar a conservadora sociedade paulistana e conheceu sua grande amiga, a escritora Lygia Fagundes Telles. “Nos anos 40/50, as mulheres só pensavam em casar e ter filhos, Hilda era livre e tinha os relacionamentos amorosos que tivesse vontade, sem prestar contas à sociedade paulistana”, comenta Rita Ruschel.

Rita Ruschel, que é jornalista e fora amiga de Hilda desde a infância, fala da vontade de escrever a biografia da poeta, mas, lamentavelmente, nenhuma editora até agora se interessou pelo projeto. “Procurei também uma emissora de tv para realizar um documentário, mas ninguém se interessou. Hoje é assim: se tiver patrocínio, você exibe até seus pais fazendo sexo na televisão. O critério é financeiro. Valores culturais e humanos não existem mais”, lamenta.

Se a Casa do Sol não será filmada por hora, ela se tornará brevemente a instituição Hilda Hilst-Casa do Sol Viva. A missa celebrada hoje marcará informalmente o início do projeto, com lançamento oficial previsto para o dia 21 de abril, quando a autora completaria 75 anos.

A Instituição será coordenada pelo eterno amigo Mora Fuentes (hoje responsável pela Casa do Sol) e terá como objetivo divulgar a obra Hilda Hilst, preservando a Casa do Sol com sua mágica circunstancial. Depois da missa de hoje, só haverá celebração nos dias do aniversário da escritora, uma celebração mais jocosa, assim como era a essência da escritora que partira. Partira do mundo mortal, mas permanece em seus escritos. “Essa era sua missão. A sensação que eu tenho com relação à morte dela é a de que ela fez um ótimo trabalho, deixou uma obra que é um oceano de possibilidades e nuanças”, comenta Adriano Moraes, estudante de psicologia da UFRGS e leitor voraz da obra de Hilda.

Sua obra ficará para eternidade. Portanto, nada mais justo do que seu próprio adeus, ou quem sabe, um até logo, para aqueles que também forem um dia para Marduk.

“Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus./ Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos/ Porque me fiz tanto de ressentimentos/ Que o melhor é partir. E te mandar escritos”.

 

Hilda Hilst

Leia Hilda Hilst

 

 

 

 

 

 

20.01.2006