Ubiratan Brasil
Comentário sobre Qorpo Santo
Em 1877, o gaúcho José Joaquim Campos
Leão, já autodenominado Qorpo-Santo, conseguiu autorização para
abrir uma tipografia. Era a oportunidade que lhe restava para
imprimir obras de sua autoria. Seus planos eram audaciosos, mas sua
mente, já enferma, começava a preocupar os familiares. Até sua
morte, provocada pela tuberculose em 1883, imprimiu em mau papel e
com uma ortografia que repugnava o leitor de então os nove volumes
de Ensiqlopédia, seu testamento literário. Da coleção, perderam-se
dois volumes e, dos outros sete, existe apenas um exemplar de cada.
Mais de cem anos depois, a obstinação
em perpetuar a obra parece não ter fim - em 1995, a pesquisadora
Denise Espírito Santo descobriu um daqueles volumes, justamente o
que continha 537 poemas escritos por Qorpo-Santo.
Foram dez meses vasculhando sebos e
bibliotecas particulares de Porto Alegre até encontrar a raridade.
Até então, conheciam-se apenas as 17 peças teatrais de sua autoria,
daí a importância da descoberta. "Foi uma grande vitória pessoal",
conta Denise, que não encontrou, porém, uma editora que aceitasse
imprimir a jóia literária. Foram cinco anos de negociações até que a
pequena Contra Capa, do Rio, apostasse no projeto.
"Fiz questão de exigir cuidados
mínimos com a obra, o que acabou afugentando muitos editores", conta
a pesquisadora, que incluiu uma foto inédita de Qorpo-Santo na capa
do livro, finalmente lançado e intitulado Poemas (Contra Capa, tel.
0--21-236-1999, 384 páginas, R$ 37). Ao analisar o texto, Denise
notou as características mais notáveis do escritor.
"São textos de uma lógica impecável,
que subverte padrões", observa. "Os poemas vão se somar agora ao
teatro, pois têm a mesma linha de intenção de retratar o cotidiano
com um espírito cômico, satírico."
Denise acredita que a obra acrescenta
à poesia brasileira um estilo novo, em que assuntos triviais e
nonsense (adotados depois pelos modernistas) dominam os temas, o que
contraria as convenções estéticas do romantismo do século 19.
Qorpo-Santo inovou também ao propor uma reforma ortográfica da
língua: em sua poesia, a letra "c", por exemplo, deixa de ter o som
de "q". "O cruzamento de línguas e culturas que sempre ocorreu no
Sul foi fundamental em suas inovações vocabulares e também no uso do
português castiço, em que mistura o erudito com o popular."
Os dados conhecidos de sua vida vêm de
uma autobiografia, já escrita com sua peculiar ortografia. José
Joaquim de Campos Leão nasceu em 1829, na Vila do Triunfo, Rio
Grande do Sul. Sua vida transcorre normal, habilitando-se para o
magistério até chegar aos 30 anos, quando acreditou-se santo e
resolveu adotar o pseudônimo.
Em 1862, surgem as primeiras
manifestações da doença que levariam a família a pedir intervenção
judicial de seus bens. É avaliado por dois peritos de Porto Alegre,
mas os médicos divergem sobre sua sanidade mental. Começa, então, a
escrever compulsivamente os textos que vão compor a Ensiqlopédia.
"A análise destes textos me fazem
acreditar que ele não estava louco", comenta Denise. "Há um rigor
impecável, principalmente no uso da sua linguagem própria, o que
seria difícil se estivesse com problemas mentais."
Transgressão- Em 1873, sofre as
primeiras perseguições por suas idéias, publicadas em alguns jornais
locais. Também nessa época, Qorpo-Santo começa a sentir os primeiros
sintomas de problemas respiratórios. Mesmo assim, não interrompe a
escrita - o planejamento, sem ser rigoroso, apresenta divisões não
muito nítidas, alternando texto em prosa e em verso. É o período em
que desenvolve as peças de teatro, com suas características de
transgressoras e de vanguarda (leia texto abaixo).
"Qorpo-Santo tinha necessidade de
falar de seu ofício, além de revelar suas influências, desde as
peças encenadas em circos até as operetas apresentadas por
companhias italianas, em Porto Alegre", conta Denise. Depois de
publicar todos seus textos na própria tipografia, entregou os únicos
exemplares de cada um dos nove volumes a um amigo comerciante. "Os
livros ficaram na biblioteca desta família até que foram vendidos
para sebos e sumiram."
Começou então um período de total
silêncio sobre a obra de Qorpo-Santo, até a redescoberta, promovida
pelo estudioso Guilhermino César, que organizou a primeira edição
das peças teatrais, em 1969. O colecionador Julio Petersen, de Porto
Alegre, localizou três volumes, outro foi doado ao Instituto
Histórico da capital gaúcha e outros três pertencem à família Assis
Brasil.
As obras foram fonte de pesquisa de
Denise. Como estavam irregularmente distribuídos por vários volumes,
a pesquisadora reuniu os poemas por afinidades temáticas. Também
atualizou a ortografia para facilitar o entendimento. "Li todo o
material durante dois anos até chegar à ordem em que foi publicado."
A pesquisadora, porém, não está satisfeita: pretende lançar, até
abril, outro volume, Miscelânea Quriosa, com mais textos de
Qorpo-Santo. "Ainda faltam redescobrir dois livros", justifica.
Leia Qorpo Santo
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