Urariano Mota
Pingüim e livros
Uma notícia de Londres nos diz: “A
Penguin, editora de livros de bolso mais famosa do mundo, que
revolucionou o mercado editorial, comemora 70 anos”. E mais nos diz,
no seu inglês de tradução literal, of course: “Curiosamente, seu
editor Allen Lane, nascido em Bristol (Inglaterra), em 1902, estudou
só até os 16 anos de idade e não mostrou inicialmente muito
interesse pelos livros... No entanto, aprendeu rapidamente todos os
segredos do ofício e, embora não fosse intelectual, tinha grande
tato para perceber, lendo apenas algumas páginas, o que valia a pena
ser publicado”.
É este “no entanto” que nos interessa,
que nos move a contar algo de viva experiência, que não está nas
agências de notícias que despacham da Inglaterra. Ele nos lembra uma
editora, que chamaremos de Editora R, e o seu editor, que chamaremos
de B, ainda vivo e próspero, que Deus o tenha, porque vive do santo
ofício de espalhar cultura a mancheias. O ano e o lugar diremos já,
sem artifício de B e de R: foi no ano de 1977, em São Paulo.
A Editora R nasceu de uma livraria,
como um prolongamento da venda de livros feita pelo Senhor B. Quando
chegamos a ela foi o mesmo que flagrar o nascimento de uma estrela –
ela, a editora, ainda era uma livraria. E para que haja e aja mais a
verdade, deixemos esse falso nós: quando lá cheguei, eu, como todo o
mundo, acredito, possuía o maior respeito por livros e pelo mundo
dos livros. O que vale dizer, se perdoam a rima: a minha relação com
os livros era, em razão de respeitosa, cerimoniosa, mui respeitosa,
com cheiros de religiosa.
“No entanto”, a livraria, o santuário,
a nascente estrela, ficava no meio de uma ladeira, com uma entrada
para seu interior, ao qual descíamos por uns seis degraus, como quem
entra num subterrâneo. E se o leitor, com a vista em sombra por essa
caverna olvida o óbvio, acrescento: era entrar naquele antro e se
deparar com livros, do chão ao teto, em curvas, em labirintos, em
esconderijos secretos, até mesmo em portas ocultas, que se abriam
pelo dom de um vendedor baixo, gordinho, que se movia perpétuo pelos
títulos da Espanha ao México, do México à Argentina, da Argentina ao
Brasil. Um vendedor que, não bastasse a extraordinária desenvoltura
por tantas civilizações, e aqui não pensem que invento, atendia pelo
nome de Virgílio. Esse homem vivamente me impressionava. Para mim,
saído do Recife, de uma província em que o livro, o mais ordinário
livro, tinha o peso cultural de um livro sagrado, e o valor também,
porque possuía o valor material de uma Bíblia impressa em letras de
ouro, pela impossibilidade do bolso para a compra, esse homem
vivamente me impressionava. Que naturalidade! Que simplicidade! Que
cultura extraordinária possuía esse homem, tão baixinho no físico e
ao mesmo tempo tão grande e tão alto como um moderno Virgílio, um
homem que sabia todos conteúdos e nomes de livros e autores e
editoras e pronúncia na língua dos títulos e anos de edição e preços
e locais e origens e países!!! Quem lhe poderia fazer frente, que
filósofos, que intelectuais da velha Europa e do Novo Mundo poderiam
dialogar com Virgílio? – Ninguém. Ninguém nem nadie, me parecia. (E
mesmo até hoje, nesse particular de conhecimento aéreo, vasto, não
sei quem lhe faça frente.)
Um dos meus defeitos, ou virtudes, a
esta altura da maturidade não sei, e quanto mais os anos passam mais
misturo e confundo os pólos, e por isso perco inabaláveis certezas,
em resumo, para simplificar, uma das minhas características é não
saber ocultar uma admiração. Em 1977 eu já era assim. Virgílio deve
ter notado, tão transparente eu me punha em sua presença. E uma
noite, antes de fechar a livraria, antes de seguirmos até a esquina
para uma despedida no bar com uma mistura de cachaça e cinzano, ele
quase me põe a ponto de arrebentar pelos poros de tanta admiração.
Pois me disse:
- Eu sei onde está qualquer livro
nesta livraria. Qualquer um. No escuro.
O acervo da livraria R estava entre os
grandes de livrarias de São Paulo. Não lhes digo o número de
exemplares, porque isto me obrigaria, primeiro, a malabarismos de
memória e de estimativa, e em segundo lugar porque eu pareceria
mentiroso. Mas se vocês já viram indivíduos que decoram todos os
números e assinantes de uma lista telefônica de uma grande cidade,
de São Paulo ou Madri, poderão dar algum crédito a minhas palavras,
ao mesmo tempo que ganharão uma idéia do espetáculo que Virgílio me
oferecia. Porque lhes digo que ele me disse:
- Peça qualquer livro, qualquer um,
que eu apago a luz, e com a livraria no escuro, eu encontro o livro.
- A Era das Revoluções, eu lhe disse.
- Este é muito fácil. Peça mais outro.
Eu lhe trago os dois.
Se eu vivesse em 1977 a experiência de
2005, eu lhe teria pedido que me trouxesse Os Corações Futuristas,
somente para derrubar o estro e a poesia de Virgílio. Mas não, eu
lhe disse:
- Traga-me O Capital.
- Siglo XXI ou Grijalbo?
Ele me trouxe, em poucos minutos,
sorridente, o que eu lhe pedira. E lhes asseguro que fez sua busca
no escuro, porque na porta da caverna eu o esperava. E com isto me
deixou literalmente sem palavras. Os volumes que me exibia não
estavam antes com ele, com absoluta certeza, até porque entre as
suas habilidades intelectuais não estava a adivinhação, o saber por
antecipação o que eu queria. Fiquei sem palavras. Pior, ou melhor,
para ele, com a cara de um camponês que acabara de ver a pessoa de
Nossa Senhora de Fátima: Virgílio a sair do escuro com O Capital e a
Era das Revoluções.
Fomos até a esquina. E me pus então a
estudar em silêncio o fenômeno, está visto, a estudá-lo com uma cara
de idiota, porque ele me disse:
- Pergunte, que eu respondo.
- Virgílio, você sempre gostou de ler?
- Sempre, muito. Eu gosto muito de
ler.
- Quando você sai daqui, você mergulha
nos livros...
- Depois do bilhar. Primeiro o bilhar,
depois a leitura. Isto pra mim é sagrado.
Os gênios são mesmo estranhos, eu me
disse. Ele deve fazer combinações de lances no pano verde com os
livros enquanto joga. E como quem nada quer, enquanto mais e mais o
admirava, eu lhe perguntei:
- Sei... o que você mais gosta de ler?
- Eu adoro o Pato Donald.
E quase caí, e somente não caí, hoje
sei, por força da mistura de cachaça e vermute. Mas no bar me
encostei a um banco, a contemplar aquela revelação do mundo dos
livros. Havia naquilo uma vulgaridade que a meu espírito humano
revoltava. Virgílio e o Pato Donald. Eu adorava Virgílio, que
adorava o Pato Donald. Um de nós dois seguramente era idiota. E
Virgílio sabia, com toda certeza, que o idiota não era ele.
Mas amigos, de Londres vem a notícia
de que o editor da Penguin estava longe de ser um intelectual, que
por tato, à primeira leitura, avaliava um livro para a edição. Não
sei se Virgílio em 1977 já sabia dessa notícia. Porque ele, o
moderno Virgílio, mais sereno, sem alarde, no escuro fazia a
diferença entre o Marx da Siglo XXI e o Marx da Grijalbo. E somente
agora ao fim percebo a associação que em minha mente se fez entre
Virgílio e Allen Lane: pela estatura e tamanho do ventre, o genial
vendedor de São Paulo lembrava um pingüim. Embora atendesse pelo
nome do nobre poeta.
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