Urariano Mota
A segunda morte dos poetas
Em um texto sobre os feitos de Ayrton
Senna,
www.lainsignia.org/2004/abril/cul_056.htm, escrevemos certa vez
que “os famosos, quando morrem, parecem entrar numa segunda vida”. E
acrescentávamos: “a segunda vida dos famosos é a sua reconstrução na
memória, na lenda, que os sobreviventes lhes fazem. Apagamos mágoas,
críticas azedas, pés de barro dos ídolos, e eles passam a reluzir
sem nódoas ou manchas, quase. Apesar da ilusão, é uma atitude muito
bonita, reconhecemos. Que beleza haveria em espancar um defunto? Que
dignidade existe em acusar, destratar, quem não mais se defende?”.
Essa lembrança nos vem a partir do artigo publicado em 28 de julho
no JC Online sob o título “Centro do Recife vai ganhar esculturas de
poetas”. Mas nos vem com um sinal invertido, com absoluta perversão.
E para maior infelicidade e felicidade dos poetas e Observador,
respectivamente, trata-se de matéria sobre uma homenagem prestada
pela Prefeitura do Recife aos grandes poetas recifenses.
O mal dos poetas
O maior mal dos poetas românticos no Brasil sempre foi a
tuberculose. Em vida, em suas primeiras vidas, queremos dizer. Por
isto, não sem razão, a redatora do JC Online acrescenta estas
informações ao perfil de um dos homenageados, a quem ela rebatiza de
Manoel Bandeira, com O, no Manu, para maior glória: “A maioria dos
seus poemas traz aspectos da sua biografia, como o fato de ter
turbeculose”. Isto mesmo, turbeculose, que deve ter sido assim
grafado para evitar o mal advindo de comer tubérculos, batata,
mandioca, aipim, talvez, nessa ordem. E vejam que não precisamos
tuberculizar o parágrafo, porque ele próprio já está com o vírus e o
veneno inoculado. Leiam, se puderem leiam, porque o parágrafo citado
é, na sua nascente e virgem inocência:
“O poeta recifense Manoel Bandeira é considerado, ao lado de
Drummond e João Cabral, um dos mais importantes escritores do
Modernismo Brasileiro. A maioria dos seus poemas traz aspectos da
sua biografia, como o fato de ter turbeculose. Fatos observados no
cotidiano também foram retratados nos seus textos. O poema "Evocação
do Recife" é considerado um canto de homenagem à capital
pernambucana, ao resgatar a nostalgia do passado da cidade”.
Ao resgatar a nostalgia do passado, esqueçamos essa ordem da frase,
e, supondo que houve isto, nostalgia, esqueçamos a nostalgia que
resgata o passado. Porque sem nostalgia, mas como uma evocação,
citamos, do mesmo cotidiano do texto:
“Esculturas, poesias e personagens que exaltaram a cidade são o
ponto de partida para o lançamento do Projeto Circuito de Poesia -
Cantos do Recife...
O Projeto será viabilizado em duas etapas. Na primeira, serão
confeccionadas cinco esculturas. Manoel Bandeira, João Cabral de
Melo Neto, Carlos Pena Filho, Clarice Lispector e Capiba deverão ser
representados nesta fase. Os locais foram definidos de acordo com as
características de cada personagem.”
Olvidemos, já na primeira frase, na abertura do texto, um tropeço
que é maior que a pedra no caminho de qualquer poeta: “Esculturas...
que exaltaram a cidade”, como uma Loba de Rômulo e Remo na entrada
do Recife. Retiremos da evocação os Manoéis, porque nem por erro,
por ato falho, numa ignorância que houvesse dado certo, num desses
felizes acasos da natureza da inocência, uma só vez sequer Manoel
Bandeira aparece como o seu Manuel. Esqueçamos ainda as esculturas
que se confeccionam, porque confeccionar não é só para remédios,
bolos, panos, ainda que para tecidos o verbo nos viesse com um som
mais próprio. No entanto, se aqui não comparecem as Três Mulheres do
Sabonete Araxá, pois “que outros, não eu, a pedra cortem para
brutais vos adorarem”, aqui comparecem os locais geográficos do
Recife que são de acordo com as características de cada personagem
(o poeta, o poeta, esse arrancador de cabelos dos redatores).
Por mais que dermos tratos à bola não conseguiremos imaginar alguma
praça, ou rua do Recife, tão feia quanto a cara de Manuel Bandeira,
cangulo que engoliu um dia um piano, mas o teclado ficou de fora. Ou
mesmo alguma árvore, ou casa, ou rio, com a voz fanha e fina de João
Cabral de Melo Neto, entende?, entende?, como ele gostava de pontuar
na fala. Ou, quem sabe, um coqueiro, uma palmeira tão delgada e
frágil quanto o perfil magríssimo do poeta que era leve, pena, até
no nome, Carlos Pena Filho.
Mas, atenção, a má vontade é um crime. Porque o texto deseja se
referir mais especificamente à obra dos poetas, conforme a
característica dos poemas, não propriamente à figura física dos
poetas. Ainda que confunda criador e criação, chega, portanto, de má
vontade. Porque concedamos:
A escultura é conforme a obra
Se é assim, está certo. Pausa para um cafezinho, que ninguém é de
ferro. Cigarro, não, que dá câncer, mas um cafezinho pode, é,
vejamos. Soco na próstata. “Santa Clara, clareai estes ares. Dai-nos
ventos regulares, de feição. Estes mares, estes ares clareai”, diria
o mais feio poeta brasileiro dos últimos cem anos. E olhem, que o
páreo é duro. Isto porque ... paremos. Porque lemos: “A escultura
que apresentará João Cabral de Melo Neto trará o escritor sentado em
um banco de praça em um gesto contemplativo, com um dos seus livros
no colo. Um cachorro dormindo nos pés de Cabral representa uma
alusão à obra O Cão sem Plumas.”
Esqueçamos, por ora, o verbo apresentar, que estaria melhor vestido
no papel do verbo representar, esqueçamos, que ninguém é perfeito.
Mas... e o cão, e o cachorro nos pés de João Cabral, a dormir, por
supuesto, porque sem latir, pois cães de pedra não ladram, nem
mordem, o que fazer? No texto se diz que o perro representa uma
“alusão à obra O Cão sem plumas”. Ah, bom, então onde, a que parte
da obra, mais precisamente?
Seria ao trecho “A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é
passada por um cachorro..” ou ao, ao “Aquele rio / era como um cão
sem plumas...”, ou ao, ao, ainda “Um cão sem plumas / é quando uma
árvore sem voz...”? Paremos, porque João Cabral não merece tamanha
asnice, para continuar no terreno animal. Será que a ninguém ocorre
que o cão de João Cabral é metáfora, é criação para ilustrar um rio
da miséria social do Recife? Será que ninguém vê, ou viu, que o rio
é liso como o ventre de uma cadela fecunda, e que nele não se sabe
onde começa a terra, onde começa a lama, onde começa o homem, o
homem também um cão sem plumas?
Não, porque temos pressa, e vamos logo, e vejamos logo Carlos Pena
Filho, porque a ele também está reservada uma escultura onde “Carlos
Pena Filho está sentado à mesa, em que se encontram bancos e copos.
A escultura é uma referência ao famoso poema O Chope que imortalizou
o escritor”. Que dizer, hem? Atenção, jornalistas, atenção,
pesquisa, atenção homenagens: - O texto, ou a escultura, faz
referência a um poema jamais escrito por Carlos Pena Filho em toda a
sua curta vida! Hem? Esta parece uma barriga mais cheia que a da
cadela fecunda. Ora, mas não existem, insistem os sabidos do
Departamento de Preguiça e Desleixo, não existem os versos “são
trinta copos de chope, / são trinta homens sentados, / trezentos
desejos presos, / trinta mil sonhos frustrados” ? – Existem. –
Então?! Esses versos são ou não são do poema O Chope?
Chamem o síndico. Rápido, porque o nível do condomínio atingiu o
inimaginável. Nem o edifício do Balança, mas não Cai, conseguiria
semelhante confusão. Pesquisa, olhos e ouvidos abertos, porque:
1 - No que se refere a esses versos, eles são parte orgânica de um
poema longo e único, por nome de Guia Prático da Cidade do Recife; 2
– Esse poema, como um Guia Histórico, Geográfico e Sentimental,
recebe divisões a que o poeta deu os nomes de O Início, O Navegador
Holandês, Manoel, João e Joaquim, A Praia, Subúrbios, A Lua,
Igrejas, O Bairro do Recife...; 3 - Mas nem por isso O Início, O
Navegador Holandês... são poemas, de existência autônoma - são
versos: braços, pernas, olhos, cabeça, peito, mãos de um ser único,
indivisível, do poema Guia Prático da Cidade do Recife; 4 – Entre os
dedos do poema existe um que se chama Chope, atenção, Chope, jamais
O Chope.
Mas, num esforço último, poderíamos considerar: e se a pobre redação
não teve culpa de tamanho engano, se tiver sido apenas a reprodução
de um release, criado pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do
Recife?
A fonte da homenagem
No Boletim Diário de 27 de julho da Secretaria de Comunicação
Social, da Prefeitura do Recife, é triste, mas lá se escreve sobre o
projeto de homenagem aos poetas do Recife. Com a espantosa chancela
do poder público:
“A escultura representa João Cabral sentado em um banco de praça num
gesto contemplativo. Aos seus pés um cão dorme e no colo ele segura
um livro aberto com o poema sobre o rio Capibaribe, ‘O Cão sem
Plumas’ ”.
Senhores, essa homenagem é real, então. Ela já foi estudada,
pesquisada, aprovada! Testada, aprovada, confirmada. Ele, o poder
público, é a própria fonte, limpidamente burra, do texto da
repórter. Pode-se dizer, houve um diálogo perfeito entre fonte e
notícia: uma perfeita comunhão, o mais belo casamento entre a
ignorância e o redigir inocente do mundo. Não é necessário sátira,
ou acréscimos, ou desenvolvimentos, ou interpretações. Nada.
O monumento a João Cabral terá um cachorro a seus pés, porque é de
sua autoria o poema O Cão sem Plumas! Ele não fala de um cão? Pois.
Está lá: “A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por
um cachorro... Aquele rio / era como um cão sem plumas...”. Estará
lá, portanto, um cachorro a seus pés. Tudo a ver, tão simples,
entende? Então porque não se depõem ao lado do cão muitas plumas,
arrancadas, ao chão, pois é a elas que Cabral se refere, quando diz
Cão sem Plumas? Um cachorro, enfim, que não voa, porque perdeu as
plumas, e que se dane a lógica se cachorro é ou não ave... Ou será
que tal não está previsto, porque pensam que o cão de Cabral é um
cão de plumas coloridas, de avestruz, de plumas e paetês, de escola
de samba no sambódromo no Rio de Janeiro? Rio, Rio de Janeiro, tudo
a ver, ou tudo haver, como escreveria a repórter.
E a redatora da notícia, justiça deve ser feita, não tem mesmo culpa
do acréscimo de um poema à rica obra de Carlos Pena Filho. Porque
está lá, como dizia o cômico portiguês Raul Solnado, “estalá” no
Boletim da Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura do Recife:
“A escultura é um conjunto da figura, mesa, bancos e copos. Baseado
no poema do escritor O chope”. Com um acréscimo, reconheçamos: aqui,
o poeta recebe a antonomásia de O Chope. Isto podemos concluir:
desesperado, a prever a homenagem que receberia da Prefeitura do
Recife, o poeta deu pra beber, e tanto, que passou a ser conhecido
como Carlos, O Chope.
Haveria ainda o questionamento, que não é pequeno, da mistura que
fazem entre poetas e compositores da música popular, pois Capiba e
Luiz Gonzaga também receberão esculturas, e de Clarice Lispector,
outra homenageada, a ocupar a vaga de um Joaquim Cardozo. Mas a hora
e o humor já não mais agüentam. Portanto, dizemos, enfim: talvez
tudo isto manifeste uma permanência além da vida dos poetas.
Matá-los uma segunda vez é sempre uma prova da sua imortalidade.
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