Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Valéria Nogueira Eik


 


A queda


 

 

A rua conservava o seu habitual movimento.

Os carros lutavam contra as motocicletas e bicicletas.

As carroças deixavam rastros de merda pelo chão.

E os pedestres desviavam de tudo, na tentativa de alcançar o outro lado da segurança.

Um baque surdo, mais pressentido que ouvido, maculou a manhã de sol e agitou a curiosidade de todos.

Um corpo despencou lá das alturas.

Espatifou-se na calçada, manchando o concreto de vermelho, e deixando no ar um imenso ponto de interrogação.

Por que?

Oras, e desde quando o motivo é relevante diante do fato consumado?

O morto está estendido no chão.

Pronto.

Está lá.

E mais morto que isso, só se forem dois mortos.

Estamos todos sobre um fio de existência, que a cada dia se torna mais teso.

O espaço entre a sanidade e a loucura se tornou pequeno demais.

Ora estamos sorrindo.

Ora estamos tomados pela fúria.

Ora estamos calmos.

Ora estamos agitados.

E com a mesma mão que acariciamos, somos capazes de empunhar uma faca e cravá-la no peito mais próximo.

E com a mesma voz que cantamos doces canções, bradamos urros de revolta e de guerra.

Não sabemos mais quem somos.

Um grupo grande se forma ao redor do morto que ainda se encontra exposto à curiosidade.

Estamos todos apalermados diante da morte.

Por que?

Oras, porque somos esse cadáver.

E a sua queda simboliza a nossa própria queda.

Pois, cada ser humano que naufraga nas ondas da vida, leva consigo pedaços de alma, arrancados de todos nós.

Estamos interligados e não nos damos conta.

Olhem!

Olhem muito bem!

Na calçada, ao redor do cadáver, pedaços da nossa própria carne decoram o chão, descorando ainda mais a esperança de uma vida melhor!

 

 

 


 

27/07/2006