Valéria Nogueira Eik
A queda
A rua conservava o seu habitual
movimento.
Os carros lutavam contra as
motocicletas e bicicletas.
As carroças deixavam rastros de merda
pelo chão.
E os pedestres desviavam de tudo, na
tentativa de alcançar o outro lado da segurança.
Um baque surdo, mais pressentido que
ouvido, maculou a manhã de sol e agitou a curiosidade de todos.
Um corpo despencou lá das alturas.
Espatifou-se na calçada, manchando o
concreto de vermelho, e deixando no ar um imenso ponto de
interrogação.
Por que?
Oras, e desde quando o motivo é
relevante diante do fato consumado?
O morto está estendido no chão.
Pronto.
Está lá.
E mais morto que isso, só se forem
dois mortos.
Estamos todos sobre um fio de
existência, que a cada dia se torna mais teso.
O espaço entre a sanidade e a loucura
se tornou pequeno demais.
Ora estamos sorrindo.
Ora estamos tomados pela fúria.
Ora estamos calmos.
Ora estamos agitados.
E com a mesma mão que acariciamos,
somos capazes de empunhar uma faca e cravá-la no peito mais próximo.
E com a mesma voz que cantamos doces
canções, bradamos urros de revolta e de guerra.
Não sabemos mais quem somos.
Um grupo grande se forma ao redor do
morto que ainda se encontra exposto à curiosidade.
Estamos todos apalermados diante da
morte.
Por que?
Oras, porque somos esse cadáver.
E a sua queda simboliza a nossa
própria queda.
Pois, cada ser humano que naufraga nas
ondas da vida, leva consigo pedaços de alma, arrancados de todos
nós.
Estamos interligados e não nos damos
conta.
Olhem!
Olhem muito bem!
Na calçada, ao redor do cadáver,
pedaços da nossa própria carne decoram o chão, descorando ainda mais
a esperança de uma vida melhor!
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