Vássia Silveira
Pássaros nasceram para voar
O mundo sempre me pareceu um grande
mistério. Lembro que ainda pequena, eu devia ter uns seis ou sete
anos, vi minha irmã mais velha abater um passarinho para depois, com
a ajuda de alguns amigos, dissecá-lo como a um sapo de laboratório
familiar. Não arrisco explicar, aos olhos daquela menina, todo o
sentimento que a cena lhe trouxe. Mas desconfio que deva ter sido
algo aterrador, pois desde então, e observe que já se passaram
muitos anos, passei a sentir a vida como uma eterna sucessão de
enganos. Eu não cabia na família, na escola, no trabalho e, de
resto, nem em mim mesma.
De início, achavam que se tratava
apenas de timidez. Depois, os suores nas mãos e o silêncio que podia
durar uma festa inteira, passou a ser visto pelos outros como
arrogância. ‘Sofia, você precisa aprender a controlar suas emoções’,
diziam-me os amigos mais próximos. No meio em que convivia,
tornei-me o laboratório ideal para as frustrações alheias. E de
tanto ouvir conselhos e repreendas, acabei por ter a sensação de que
me dissecavam como àquele passarinho morto por minha irmã.
Primeiro arrancaram-me as pernas.
Disseram-me que elas não me levavam na direção correta e que,
portanto, não me eram úteis. Em seguida, analisaram e descartaram,
um a um, os componentes desse pobre corpo. Foi quando descobri que
ao invés de músculos, eu possuía raízes que se entrelaçavam e que
pareciam expressar as mais longínquas memórias. E que no lugar de
sangue, meus corredores vertiam um líquido gelatinoso e branco, uma
seiva de vida que encerra um susto qualquer.
A simples idéia de que tal segredo
pudesse vir a ser desvendado por algum de meus perscrutadores,
congelava-me a alma. Pobre de mim. Como se não bastasse ter
emprestado a esse mundo pernas, bocas e gestos aceitáveis, tinha
ainda que esforçar-me para trocar com o ambiente externo,
sentimentos corriqueiros, enxaquecas plausíveis, preocupações banais
e um choro compreensível aqui e acolá.
Foi agarrada a essa indiscutível
certeza que procurei encenar, neste grande palco, um medíocre, porém
razoável, papel. Fiz-me mulher e deixei que rasgassem, dentro de
mim, as mais finas veias. Como um acrobata, lancei-me em mãos e
teias de palavras vilipendiosas. Deixei-me sugar até a última gota e
derramei intranqüilas lágrimas em lençóis que nunca envelheciam. Ao
final de cada espetáculo, retornava sozinha para o camarim. E ali
ficava, ora imóvel – perturbada pelas ondas que me engoliam na
mansidão do nada -, ora debatendo-me nas paredes invisíveis que me
serviam de prisão.
Com o tempo, desisti de procurar
aceitação. Percebi que de alguma forma não merecia ser amada, nem
tampouco compreendida. Agarrei-me aos galhos que cresciam
silenciosamente em meu mundo, adubando, no frescor das noites
insones, algumas poucas lembranças que me pudessem ser úteis. Deixei
que transbordasse nas veias partidas pelos inúmeros erros que
cometi, aquilo que outrora era líquido e que não sei por qual motivo
específico, tornara-se uma gosma pegajosa. Na solidão e na ausência,
preguei em cada parede um retrato do que poderia ter sido minha
existência e lancei-me aos ventos, experimentando a liberdade do
pássaro que desconhece o momento exato da morte. E é feliz por
existir na inocência de que está sempre pronto para o abate.
|