Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Entre ordem e caos: narrativa equilibrista
Rio, 6 de maio de 2005 - O romance
"Dom Casmurro", de Machado de Assis, é narrado por um homem amargo e
solitário, que busca produzir, por meio do relato, a conexão entre
dois extremos, a infância e a velhice. Para ele, é impossível se
esquivar do apelo de recompor, pelo imaginário, aquilo que estaria
no meio, entre as duas pontas da vida. A proximidade da morte o
incita a tentar dissolver as incertezas em relação ao próprio
passado. Entretanto, como o narrador machadiano não consegue vencer
as forças inarredáveis dessas incertezas, que o corroem e que
habitam as lacunas do seu discurso, a possibilidade de uma
tranqüilizadora concordância entre o princípio, o meio e o fim da
história lhe escapa. Alguma coisa resiste à ordem que o enredo lhe
impõe, nessa narrativa que nasce da ruína do sentido.
Por esse viés, se poderia dizer que
"Dom Casmurro" é uma história mal contada. É, por esse viés também,
que o mais recente livro de contos de Silviano Santiago faz jus ao
título: "Histórias Mal Contadas". As histórias mal contadas são
aquelas que nos perseguem, as que não se deixam calar, pois
precisariam ser bem contadas para que pudéssemos morrer em paz, como
uma alma reconvertida à verdade, conforme o desejo do personagem do
conto inicial do livro de Silviano, "O Envelope Azul".
As histórias mal contadas são, ainda,
as histórias dos outros, os relatos pessoais, que não podem ser
legitimados por uma verdade partilhada coletivamente e também já não
se beneficiam da "boa consciência" dos narradores da época áurea do
romance, no século XIX, nem tampouco apelam para a lógica
compensatória dos melodramas televisivos. São, no entanto, histórias
que se impõem, alimentando-se da tensão entre a ordem que almejam e
o caos que as ameaça. E, paradoxalmente, é preciso tentar contá-las
bem, buscando o fio da meada que organizaria o aleatório dos
acontecimentos, articulando princípio, meio e fim, numa luta
permanente contra a dispersão.
Os contos de Silviano Santiago,
sobretudo os cinco primeiros, falam dessa necessidade de organizar o
vivido por meio de narrativas, com o objetivo de ir além do caráter
contingente da vida, embora se trate de uma tarefa quase impossível,
em meio à balbúrdia pós-moderna, mesmo para um narrador que se
confessa cartesiano e obcecado pela verdade sobre o seu passado: as
notações digressivas conduzem o velho narrador por atalhos que o
desviam de seu suposto eixo narrativo, sendo preciso a todo instante
corrigir o rumo tomado ou redefinir o eixo.
Pode-se dizer que os contos do livro
se constroem a partir de uma indagação: como contar, hoje, uma
história bem contada, se a identidade única é permanentemente posta
em xeque? Essa é a pergunta que o personagem do conto "Hello, Dolly!"
dirige, numa carta, a Walter Benjamin, ao refletir sobre a
possibilidade da clonagem humana e da substituição das narrativas de
origem pelos códigos numéricos do DNA.
As "Histórias Mal Contadas" são
narradas em linguagem coloquial e abordam temas como suicídio,
assassinato, arrivismo, preconceito, pedofilia, espionagem e guerra
fria - temas que povoam as páginas dos jornais. No entanto, à
diferença do que acontece nos meios de comunicação, os relatos não
são feitos a partir de um lugar fixo. Os narradores estão sempre em
trânsito, deslocam-se no espaço buscando conhecer as manhas da
classe dominante do primeiro mundo, como o colunista social de
"Envelope Azul"; emigram visando melhores oportunidades de emprego
em terras estrangeiras, como o professor de "Bom dia, Simpatia".
Os deslocamentos mais importantes dos
personagens, entretanto, são aqueles que se realizam entre o eu e o
outro, entre as identidades frágeis, intercambiáveis e, por isso
mesmo, sempre ameaçadas. O livro reúne histórias que giram em torno
dos deslizamentos entre fronteiras, problematizando as proximidades,
as distâncias e os estranhamentos entre o eu e o outro, e entre
centro e periferia. Assim, em "Ed e Tom", o personagem nascido no
Harlem e perfilhado por um casal de irlandeses declara: "Perdi meu
rosto, minha identidade de preto." E acrescenta: "O que tenho me foi
dado de presente, quando não foi tomado de empréstimo."
Os personagens de "Histórias Mal
Contadas" são, por vezes, indivíduos desenraizados, que não sabem ao
certo qual o lugar que lhe permitirão ocupar na sociedade. Buscam,
sem sucesso, romper o isolamento, falar a língua do outro, como
acontece com o narrador de "Borrão", ao conversar com o passageiro
que senta ao seu lado numa viagem de ônibus: "Sei que eu entendia
menos da metade das palavras que ele proferia em resposta. Eu
decifrava sucessivos telegramas, pior: montava frases e mais frases
alheias, a partir das duas três palavras que compreendia." O mesmo
movimento para o diálogo com o outro está presente nos contos
reunidos com o subtítulo de "Histórias Apropriadas", na segunda
parte do livro, só que voltado para o passado, para o outro
distanciado no tempo, constituindo o que o próprio Silviano denomina
"prosa limite", aquela que se constrói na intersecção do biográfico,
da crítica, da poesia e da ficção.
Se a identidade do narrador é algo a
construir no movimento em direção ao outro, este outro também é
cambiante. Assim como cambiante é a própria narrativa literária na
relação com o seu grande outro, a cultura de massa. Não é à-toa que
várias referências são buscadas no cinema hollywoodiano, na música
popular, nas telenovelas. A exemplo do que ocorre em obras
anteriores do autor, as narrativas são tecidas sob o signo do falso
verdadeiro: "Tudo é disfarce, mentira e falsificação na escrituração
do íntimo?", pergunta o narrador de "Bom-dia, Simpatia", para logo
em seguida responder: "Tudo é verdade." Os contos situam-se no
limiar entre dois pólos, lugar, por excelência, da ficção. Lugar das
incertezas, mas também da convicção de que é preciso continuar
narrando histórias, sobretudo se elas nos parecem mal contadas.
(Gazeta Mercantil/Fim de Semana - Pág. 4)
(Vera Lucia Follain de Figueiredo - Professora do departamento de
Comunicação da PUC-Rio )
Leia
Silviano Santiago
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