Carlos Augusto Viana
O barroco revisitado
20.05.2001
Ele traduz a experiência humana, presa, vinculadamente, ao século
XVII
O Barroco traduz a experiência humana, presa,
vinculadamente, ao século XVII. Na Península Ibérica -Portugal e
Espanha - singularidades do momento histórico implicaram em mudanças
substanciais no panorama cultural, tais como: a fundação da
Companhia de Jesus (1540); a Contra-Reforma - Portugal e Espanha
tornaram-se o centro da reação da Igreja Católica à Reforma
Protestante -a partir da tentativa de harmonia entre as idéias
renascentistas - antropocentrismo - e a tradição religiosa medieval
- teocentrismo. O Concílio de Trento (1545-1553) delibera, assim,
uma Contra-Reforma, cujo órgão executivo passa a ser a Santa
Inquisição, que, através do Tribunal do Santo Ofício, investigará,
perseguirá, julgará e condenará os que, de uma forma ou de outra,
não estavam contribuindo para a preservação, defesa e disseminação
da doutrina de Roma.
O Barroco é, desse modo, marcado por intensa dualidade: ao apelos do
racionalismo e ao prazer, oriundos do Humanismo renascentista,
opõem-se às igrejas Católica e Protestante, pregando um retorno ao
teocentrismo medieval, ao estoicismo, à mortificação da carne, à
renúncia dos prazeres. O homem, por conta disso, vê-se oscilando
entre fé e razão, carne e espírito, céu e terra, virtude e
prazer...; ou seja: um espírito voltado para a religiosidade
medieval, mas, ao mesmo tempo, atraído pelas seduções seculares.
O livro Poesia Barroca - Antologia do século XVII em
língua portuguesa (Editora Ágora da Ilha, Rio, 204 páginas), de
Nadiá Paulo Ferreira, constitui uma rara possibilidade de, segundo
uma seleção criteriosa de autores e de textos, palmilhar um universo
que, apesar de rico, é, ainda, muito pouco explorado. O leitor,
assim, se deparará, ao longo das páginas, consoante uma riqueza
formal e temática, com os múltiplos aspectos de uma estética que,
acima de tudo, foi escritura, uma vez que inseriu suas marcas na
pintura, na escultura, na arquitetura, na música e, nesse caso
particular, na poesia.
Antes do contato com a seleção de autores, o leitor,
obrigatoriamente, detém-se sobre um estudo introdutório acerca da
estética barroca: o contexto histórico; o movimento
artístico-literário; a poesia lírica; a poesia satírica; os
cancioneiros; as formas poéticas; e, finalmente, amor e sublimação.
A professora e psicanalista Nadiá Ferreira aponta-nos, de maneira
ditática, mas com extrema proficiência, os caminhos por que,
servindo-se de um arcabouço teórico, é possível uma leitura mais
profícua do literário barroco. Objetiva e concisa, perscruta o que
de obscuro possa haver, iluminando ao leitor o próximo labirinto de
formas e de imagens: "... o Barroco não tem uma unidade estilística,
existindo uma diferença fundamental entre o Barroco das comunidades
burguesas e protestantes e o Barroco dos ambientes cortesãos e
católicos" (p. 22); de constante, tão-somente "a ornamentação do
discurso e o virtuosismo com o emprego da palavra" (p. 23) - marcas
encontradas, freqüentemente, nos dois aspectos construtivos do
Barroco: o cultismo (jogo de palavras) e o conceptismo (jogo de
idéias). A seleção de autores e de textos, visando a uma antologia,
é um trabalho que, quase sempre, configura opostos: excessos ou
imperdoáveis lacunas; o que, entanto, não é o caso desse livro.
Aqui, talvez como imposição de uma necessidade, - a de reatualizar
os percursos de tal estética-, assistimos a um desfile de criadores
os mais diversos, porém imperiosos no sentido de uma visão mais
detalhada dos percursos do Barroco em língua portuguesa.
Dentre os autores selecionados, mereceu,
evidentemente, um maior destaque, Gregório de Matos (1636-1696). A
seleção de seus poemas traduz, com proficiência, o seu universo
criador: a poesia lírica (sacra, amorosa e encomiástica) e a poesia
satírica. Seu discurso poético, aliando apurada perícia técnica à
livre sugestão espontânea da crônica, impõe-se como atemporal, não
obstante o vocabulário e a estrutura técnica retratarem a atmosfera
lingüística da Bahia seiscentista. Seus versos trescalam a
fisionomia caótica de uma vida nacional ainda embrionária, cuja
realidade interna, irrompendo na libertinagem dos trópicos, corroía
o modelo institucional extremo, imposto pelo absolutismo.
Cronista, Gregório de Matos compreendia, com grave
tristeza e infelicidade, o modo com que se negociavam os produtos
aqui cultivados, percebendo o prejuízo que as negociatas dos
governantes davam ao Brasil: os bolsos cheios às custas do
empobrecimento da colônia, bem como de seu povo: "Ó triste Bahia! Ó
quão dessemelhante/ Estás e estou do nosso antigo estado!" (p. 107).
Nessa mesma trilha, insere-se o soneto "Ao casamento de Pedro
Álvares da Neiva", cujos decassílabos iniciais, ("Sete anos a
nobreza da Bahia/ Servia a uma pastora Indiana bela,/ Porém servia a
Índia, e não a ela,/ Que à Índia só por prêmio pretendia" (p. 127),
parodiando Camões, revelam o poder de sarcasmo de Gregório de Matos.
Exemplar espelho da técnica cultista é o soneto:
"Desenganos da vida humana metaforicamente" (p. 124). Utilizando-se
de disseminação e recolho, o eu lírico, em tom exortativo, dirige-se
a um vocativo, "Fábio" (disfarce de si mesmo?), chamando-lhe a
atenção para a efemeridade existencial; inútil a vaidade, pois,
sendo esta, metaforicamente, rosa matinal, planta na primavera e
barco, encontrará, respectivamente, e de modo inexorável, a tarde, o
machado e o penhasco, - índices inquestionáveis de sua destruição.
Todo o virtuosismo formal de Gregório de Matos
revela-se no poema "Achando-se um braço perdido do menino Deus de N.
S. das Maravilhas, que desacataram infiéis na Sé da Bahia";
leiam-se, por exemplo, os decassílabos iniciais: "O todo sem a parte
não é todo;/ A parte sem o todo não é parte; / Mas se a parte o faz
todo, sendo parte,/ Não se diga que é parte, sendo o todo./ Em todo
o Sacramento está Deus todo/ E todo assiste inteiro em qualquer
parte,/ E feito em partes todo em toda a parte,/ Em qualquer parte
sempre fica todo." (p. 123).
Nesses versos, o jogo de palavras (todo e parte)
sustenta a temática deísta: sendo as partes (pessoas) da Santíssima
Trindade - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - são, também, o seu
todo.
Poesia Barroca - antologia do século XVII em língua
portuguesa é leitura indispensável ao espírito perscrutar de quem
sempre está disposto a novos desafios.
Carlos Augusto Viana
Editor
|