Carlos Augusto Viana
O lirismo de Ivan Junqueira
O discurso poético, independentemente dos caminhos
por que se construa, outra coisa não busca senão o ser: este
fantasma que palmilha a ponte que se estende entre aquele que
escreve e o outro que o lê. Eis o estado poético, consoante Valéry:
a expressão de uma subjetividade; assim, um poeta não é senão seus
outros. Desse modo, a folha de papel funciona, tão-somente, como
depositária de uma voz, pela qual, na angústia ou no êxtase de seu
silêncio, o poeta se sente percorrido. Expressá-la, pois,
sedimenta-se na espera de recebê-la sob a oferta de outras vozes: a
dos leitores. Importa, e muito, que estes se resumam ao próprio
poeta, no anonimato de sua simplicidade, como aquele sapo-cururu,
posto por Manuel Bandeira, à beira dum rio.
Ezra Pound sempre insistiu na função social do
escritor, defendendo que a poesia não existe no vazio. O compromisso
com o outro, evidentemente, é proporcional à habilidade daquele que
escreve. Estaria aí a principal utilidade da literatura; qualquer
uma outra função seria relativa, efêmera, destinada, portanto, à
dissolução. Mas em que, fundamentalmente, consiste tal compromisso?
Talvez em pôr o homem diante de si mesmo, apresentá-lo a seu duplo,
fazê-lo enxergar, também em si, o que no outro é uma sucessão de
perdas; fundir os filamentos do presente e do passado, projetando,
então, as teias do futuro. Mensagem que deve ser mais remoída e
triturada do que posta sobre uma bandeja no aparador das cartilhas
inconseqüentes.
A escritura de Ivan Junqueira retoma a polêmica de
Benjamin acerca da linguagem como meio de transmissão de conteúdos:
o que comunica, em seus versos, é, a rigor, a ´essência espiritual´
do homem. Não se trata apenas de uma mensagem a ser decodificada por
um receptor; sim, de uma rede de signos, a princípio, emaranhados,
aberta, e tão-só, a uma leitura paciente. Por tais caminhos,
chegar-se-á às revelações. Theodor Adorno entende a expressão como
resultado da relação do criador com a verdade de sua criação:
´quanto mais precisa, conscienciosa e adequadamente se expressa, o
resultado literário será avaliado como mais dificilmente
compreensivo´. Entanto, do desleixe da expressão, resulta a absorção
fácil, mas estéril, pelo menos em termos da edificação do haver
humano. Não à toa, Shelley, em sua ´Defesa da poesia´, define os
poetas como os ´espelhos onde se refletem as sombras gigantescas que
o futuro projeta sobre o presente; são as palavras que exprimem
aquilo que eles não compreendem´. Por isso, abriga em si os outros,
e nestes também se reconhece. Aristóteles, em sua ´Poética´, vê, no
ofício de poeta, não o de narrar o que acontece, mas o de
representar o que poderia acontecer; ou seja, o que é possível,
segundo a verossimilhança e a necessidade.
O discurso literário de Ivan Junqueira orienta-se no
sentido da captação dos meandros que revestem a condição humana. Em
sua atmosfera, as forças de Eros e de Thanatos - ordenadoras do
equilíbrio do haver - se digladiam, integrantes que são de uma
corrente de elos que não se desfazem. Não há, pois, vencedores ou
derrotados, e qualquer vitória é sempre parcial: se as ondas do mar
apagam os escritos nas areias, sobre estas, também, depositam a
espuma inaugural.
A composição de abertura do livro Ivan Junqueira:
melhores poemas - seleção Ricardo Thomé, (Global, São Paulo, 2003,
253 páginas) sob o título ´Os mortos´, constitui a síntese dessa
cosmovisão:
Os mortos sentam-se à mesa,
mas sem tocar na comida;
ora fartos, já não comem
senão côdeas de infinito.
Quedam-se esquivos, longínquos,
como a escutar o estribilho
do silêncio que desliza
sobre a medula do frio.
Não devendo, embora lisas,
suas frontes, onde a brisa
tece uma tênue grinalda
de flores que não se explicam.
Nos beirais a lua afia
Seu florete de marfim.
(Sob as plumas de neblina
os mortos estão sorrindo:
um sorriso que, tão tíbio,
não deixa sequer vestígio
de seu traço quebradiço
na concha azul do vazio.)
Quem serão estes assíduos
mortos que não se extinguem?
De onde vêm? Por que retinem
sob o pó de meu olvido?
Que se revelem, definam
os motivos de sua vinda.
Ou então que me decifrem
seu desígnio: pergaminho.
Sei de mortos que partiram
quase vivos, entre lírios;
outros sei que, sibilinos,
furtaram-se às despedidas.
Lembro alguns, talvez meninos,
que se foram por equívoco;
e outros mais, algo esquecidos
que de si mesmos se iam.
Mas estes, a que família
de mortos pertenceriam?
A que clã, se não os sinto
visíveis, tampouco extintos?
Ou quem sabe não seriam
mortos de morte, mas sim
de vida: imagens em ruínas
na memória adormecidas.
Mas eles, em seu ladino
concílio, disfarçam, fingem
não me ouvir. E seu enigma
(névoa) no ar oscila e brinca.
II
Ó mortos que, sem convite,
à minha mesa finita
sentastes só para urdir
tal intriga metafísica!
Quem vos pediu me despísseis
vosso segredo mais íntimo?
E, ao despi-lo, não me abrísseis
seu núcleo de morte e vida...
E por que tanto sigilo
em vosso verbo melífluo,
se a morte em si já é signo
transfigurado de vida,
se apenas um morto em mim
é o que basta de agonia
para que o tempo o redima
e logo inverta sua sina?
Assim, estes mortos (vivos)
não estão aqui nem ali:
pertencem todos à minha
carne, agora feita espírito.
E mesmo que se retirem
(e eis que o fazem, de mansinho)
algo deles, pelas frinchas
da noite cúmplice, fica.
E me invade, vago líquido,
tingindo fibra por fibra
o ser que em meu ser persiste
conta o outro, que o mastiga.
III
Sobre a mesa, sono e cinza,
dissolvem-se as iguarias
- viandas, aspargos, vinhos -
que ofereci às visitas.
Visitam porém omissas,
não cuidaram de comida,
aos da mesa preferindo
requintes talvez mais finos.
À cabeceira, sozinho,
a coisa alguma presido
senão a mim mesmo: abismo
que em si próprio se enraíza.
Quanto aos convivas - repito -,
de algum modo ainda me habitam;
não fosse assim, como ouvi-los,
agora, em meus labirintos?
Sim, ei-los meus inquilinos,
os mortos, tão coisa viva
que a morte já não os cinge:
deixa-os fluir, linfa, comigo.
Para além da alteridade especular, - configuradora da
alienação humana - tornada emblemática pelo poeta Rimbaud, ao
afirmar que o eu é um outro, a voz lírica faz, incisiva, o seguinte
convite ao leitor: pensar os mortos; mas como aqueles que nos
devolvem algo de não especular em nossa própria imagem, porque esses
seres longínquos, convivas da mesa do eu lírico, são seres sem
fendas, sem faltas, capazes, até mesmo, de escutar o silêncio real
que se inscreve no corpo como perda. Por isso mesmo, a presença
deles, mais que tormento, é enigma e convite à metafísica.
(Curiosamente, a epígrafe de Carlos Drummond de
Andrade orienta o leitor para o avesso desta escritura de Ivan
Junqueira: em vez da suposta comunhão, aludida por aquele através do
recurso de única estrofe em que se desenvolve a redondilha-maior do
poema ´A mesa´, em ´Os mortos´, o mesmo ritmo ocupa quartetos,
aventando, por meio dos espaços vazios, a incomunicabilidade e
desencontros.)
Os mortos, no entanto, não são iguais, pois diversas
são as mortes; a rigor, quatro: os que ´partiram quase vivos´; os
enigmáticos ou bruxos, de anônima partida; os ´meninos´, ceifados
por engano; e os ´que de si mesmos se iam´. Dentre essas múltiplas
encenações, somente a última é capaz de atormentar o eu lírico, uma
vez que, nesta, a morte é uma presença antiga, ainda, em vida,
modelada.
No restante do poema, o eu lírico indaga somente
acerca dos mortos esquecidos de si mesmos, incapazes de perceber a
morte, porque esta de vida é cerzida. São estes os mortos que fingem
não escutá-lo; e que fazem da morte um ´signo transfigurado de
vida´. São mortos inscritos na carne, são mortos de desejos
insuspeitos, desejos de Outra coisa: ´requintes talvez mais finos´.
Interroga-lhes, com tenacidade, o tênue enigma. Tal
qual o trapezista ou o domador de feras circenses, a voz lírica se
edifica como mestre do abismo, pois, para ela, os mortos, deveras,
não morrem; uma vez que, ao fenecerem, tornam-se mais vivos; assim,
a morte não consegue, não obstante suas lâminas, decepar a
eternidade da vida. Observa-se, nisso, a conjugação do ser, com os
seus convivas, sentida como perda, como desperdício de gozo, a
localizar-se, de forma parcial, no corpo: ora, enquanto sensação
física, pois medular; ora, enquanto experiência anímica, a remover o
´pó´ depositado sobre o que, até então, no esquecimento adormecia.
A morte propicia, desse modo, a inserção da palavra
como uma lâmina a recortar o real do corpo. O eu lírico é afetado
por uma perda que se reduplica: a vida engendra a morte; e esta se
faz em vida. Se, a princípio, reduz a morte a seus convivas, ao
final surpreende-a em si: é ele mesmo - o eu lírico - um morto em
vida. Considerando-se tal reflexão, o morto que o atormenta - o
morto esquecido de si - é seu duplo. Mais do que mestre da morte,
ele é o seu escravo, - aquele que, consoante, Hegel, não arrisca a
vida; mas evita o desejo; e, por isso, o faculta ao senhor, no caso,
ao morto. Sua servidão, é, no entanto, disfarce? Um desejo de
partilhar, pelo menos em parte, dessa plenitude que faz dos mortos
os comensais apenas das ´côdeas de infinito´? Se aquele servo -
disfarçado em mestre - não pode ter o prazer de desfrutar a leveza
daquela iguaria, resta-lhe, pelo menos, o deslizar do silêncio na
´medula do frio´.
Ivan Junqueira é poeta obcecado pela fôrma e forma de
sua poética. Pós-moderno, sabe, como poucos, relê metros e rimas os
mais diversos: percorre, com a mesma leveza e intimidade, os
tetrassílabos, pentassílabos, heptassílabos, octossílabos -
dispostos, predominantemente, em quadras - decassílabos, mais
abrigados em sonetos; quanto ao uso da rima, opta, amiúde, pela
toante, com predileção pelas vogais /a/ ou /i/, pois, e delas se
utiliza, em geral, de maneira uníssona, conforme a leitura do poema
´Os mortos´, bem como a do livro ´A rainha arcaica´, ou, ainda, a de
esparsos dessa ´Antologia´. Tais procedimentos estilísticos não o
impedem de, conforme a imposição lírica, servir-se de estrofe
heterométrica, como a do poema ´Hoje´:
A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
Este poema se realiza a partir de dois movimentos: no
primeiro, (v.1 a v. 4) a presumida destruição; no segundo, (v. 5 e
v. 6.) a lenta e sofrida tarefa da reconstrução. Em primeiro lugar,
saliente-se o fato de que o título do poema, ´Hoje´, funciona,
ainda, como uma espécie de primeiro verso, pois, implica o
desdobramento de uma síntese, de que partem todas as imagens e para
onde retornam. A ausência de um fio condutor do discurso poético,
isto é, de um eu anunciador do discurso, universaliza aquela
´sensação oca´, que, não sendo, explicitamente, de um eu, é inerente
a qualquer um. Como num espelho, o poeta tanto pode estar
contemplando a si mesmo quanto a realidade circundante. E o que vê?
Na face, o pânico; na carne, a solidão; e a dor da consciência de
tudo isso. A escolha vocabular aponta bem a intenção de perscrutar o
universal humano: ´face´, em vez de rosto; ´carne´, em vez de
´corpo´ mais dizem da humanidade do que do indivíduo; da mesma
forma, aquela ´lágrima´, a escorrer de um olho geral. Por que
´impossível´, se flui? Não ela em si, mas a outra, a ´doce lágrima´,
isto é, o sentimento de resignação ante a combustão ao redor.
O último movimento promove o entranhar-se de Eros a
partir do processo de antropomorfização da natureza: ´a chuva
soluçando´. Se antes, a construção se alicerçava numa seqüência de
pretérito, particípio e expressões nominais, emoldurando uma
estagnação, agora, a idéia de ´soluçando´ imprime um ato continuum,
a sugerir, mais que arquejo, pulsação, a alimentar o ´esqueleto
tortuoso das árvores´. Aliás, intrigante esta imagética: se, por um
lado, aceita a presença de uma hipálage - pela transposição do
aspecto ´tortuoso´ das árvores para o ´esqueleto´; por outro, não
elimina a possibilidade metonímica, em que o singular - ´esqueleto´
- conforma uma desolação plural.
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