Carlos Augusto Viana
´Silêncio em forma de unicórnio´
Não menos desafiadora é a leitura de
´Soneto ao unicórnio´:
Teu passo pequenino rompe a treva,
onde repousa, imersa em nostalgia,
a imagem do animal que não se eleva
sequer para morder a luz do dia.
Silêncio em forma de unicórnio. Leva,
ó tempo, em tuas asas, a magia
fugaz da lúcida pupila! Neva.
Neva em meu ser, aurora em agonia.
Teu passo pequenino esmaga o sonho
que se desenha nas escarpas nuas
do espaço apunhalado pelo vento.
Ao longe o espasmo flácido das ruas.
Noite murcha. (Ouvir meu pensamento
é coisa que não creio, mas suponho.)
O leitor, evidentemente, vê-se diante
de um poema hermético - o que, aliás, é uma recorrência na obra de
Ivan Junqueira: ´A uma erudição que salta aos olhos, ao gosto por um
léxico rebuscadíssimo, ao pleno domínio das formas fixas e de toda e
qualquer técnica que se pretenda, Ivan adiciona aquele algo mais que
só os grandes poetas possuem, aquilo que alguns chamam dom, outros,
inspiração, outros, ainda, gênio. Aquilo que não se pode - para nos
utilizarmos de uma expressão cunhada por ele mesmo - reduzir ´a
inútil condição de esqueleto ou de víscera dissecada´, de coisa
quantificada, de objeto mensurável.´(29)
Entretanto, hermetismo não implica
impossibilidade de leitura, apenas exige uma maior concentração e
paciência diante do que somente pouco a pouco se revela; afinal de
contas, a ´arte vive da coerência e da complexidade, de combinações
e de superposições. Os princípios repetitivos asseguram a coerência.
Asseguram também a valorização daquilo que não é repetido, os
contrastes, as variações, as menores nuances do tecido poético´.(30)
Esse poema se alicerça em duas
imagens-chave: ´Silêncio em forma de unicórnio´ e ´Ouvir meu
pensamento / é coisa que não creio, mas suponho´; esta esclarece,
numa circularidade, os ruídos daquele ´passo pequenino´; aquela, ´a
imagem do animal´, ou seja, o próprio o silêncio, - alfobre do
enigma por que andeja o pensamento do eu lírico, em mais uma de suas
especulações metafísicas.
As passagens, tais como: ´rompe a
treva´, ´morder a luz´, ´em tuas asas´, ´Neva em seu ser´, ´aurora
em agonia´, ´esmaga o sonho´, ´escarpas nuas / do espaço apunhalado
pelo vento´, ´Noite murcha´, indicam, antes de tudo, a predileção de
Ivan Junqueira pelo discurso metafórico, orientada no seguinte
sentido: ´na impossibilidade de explicitar o conteúdo de sua
interioridade, mas diligenciando não perdê-lo ou destruí-lo, o poeta
lança mão do recurso da metáfora´.(31) Desse modo, tal sucessão
metafórica se propõe a constituir-se a argamassa dessa construção.
Conforme já se ressaltou aqui, a
estrutura do poema é circular; portanto, o que o eu lírico supõe
ouvir é o ´passo pequenino´ de seu próprio ´pensamento´, rompendo ´a
treva´, ou seja, o ignoto, onde, ´imersa em nostalgia´, ´repousa´ a
imagem daquele ser ancestral: ´que não se eleva / sequer para morder
a luz do dia´.
Provoca estranhamento a
imagem-síntese: ´Silêncio em forma de unicórnio´. Por que
´unicórnio´? Para a sugestão da natureza poderosa do silêncio? Pelo
´misterioso poder de denunciar o impuro´?(32) Estabeleceria, a
partir da imagem de seu único chifre, uma relação intra-textual com
aquela ´adaga´ do poema ´Solilóquio´, denunciando, assim, o desejo
do eu lírico em lancetar sua própria intimidade?
A apóstrofe dirigida ao tempo, para
que este leve, em seu fugidio tecido, ´a magia / fugaz da lúdica
pupila!´ faz aparecer no poema, através da metonímia ´pupila´, o
único indício da corporeidade do eu, que se reconhece um brinquedo,
manipulado pelas mãos de forças fatais, desconhecidas, e contra as
quais ainda não pode insurgir-se.
A imagem da neve traduz, incisiva, a
opacidade do ser, embora este, ao definir-se uma ´aurora em agonia´,
sinalize uma possibilidade, ainda que parca, de mudança. Mas,
inexorável, o ´passo pequenino´, porém implacável, ´esmaga o sonho´,
já desenhado ´nas escarpas nuas / do espaço apunhalado pelo vento´.
Resta, então, ao eu lírico, a contemplação da paisagem em desolação,
compactada em ´Noite murcha´, - intemporal, evidentemente, e,
sobretudo, corroída, símbolo, portanto, do próprio eu, cujo ´sonho´
fora esmagado. Ora, ´entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde
se misturam pesadelos e monstros, as idéias negras. A noite é a
imagem do inconsciente e, no sono da noite, o inconsciente se
liberta´.(33)
Vejam-se os versos de ´Cavalo azul´:
E assim de azul vestiram tua imagem,
outrora esboço lento e fatigado,
andrajo dissolvido na paisagem
do tempo, como um gesto abandonado.
Recordo tuas crinas, teu selvagem
perfil rasgando o espaço calcinado,
teus flancos de aleluia, tua linguagem
onírica - monólogo cifrado...
Depois não vi mais nada: em meio à [bruma
dos píncaros desfez-se teu clarão.
Às vezes, todavia, quando o grito
de minha infância acorda a escuridão,
ainda ouço teu tropel pelo infinito
- catarse azul, visão, corcel de espuma!
Todo esse poema é construído por
imagens abstratas. A indeterminação, presente em ´vestiram´, põe a
trama poética no espaço do passado longínquo, abrigo natural do
mítico. O advérbio ´Depois´ demarca a existência de dois tempos: o
da experiência da experiência onírica e da dissolução desta. A
princípio, o que assoma é o mundo da infância, representado pela
´imagem´ do cavalo, engenhosamente edificada pela oralidade
familiar, que a vestiu de ´azul´. É tudo muito envolto em brumas,
difícil, portanto, de ser recuperado em sua plenitude, pois
dissolvido ´na paisagem / do tempo´.
O tempo da experiência onírica pode
ser perfilado pelo seguinte achado poético: cavalo-infância. O termo
´Recordo´ só aparentemente alude a uma exatidão, pois, em verdade, o
que a memória recupera são ´crinas´ indefinidas e um ´selvagem /
perfil´, referentes ao cavalo; bem como ´flancos de aleluia´ e
´linguagem / onírica´, configuradores da infância. Então,
cavalo-infância, em suma, é o ´monólogo cifrado...´.
O tempo em que se desfaz a experiência
onírica, onde se dá a passagem da ignorância do mundo para o
conhecimento deste, inscreve-se no desaparecimento do ´clarão´; com
isso, saber, em vez de associar-se à luz, é pura ´escuridão´, só
dissolvida pelo ´grito´ da ´infância´; ocasião em que o eu lírico,
em múltiplas sensações sensoriais, reencontra o que perdera de si
mesmo: ´catarse azul, visão, corcel de espuma!´.
Leiam-se, por fim, os versos de ´O
polvo´:
No golfo um polvo hermético se move
entre algas de silêncio e solidão;
no golfo, um polvo, aquático espião,
agita seus tentáculos, remove,
sem trégua, a lama espessa que recobre
o tácito esqueleto de seu pão.
Mas não sabe a polpa nem o grão
do plasma em chamas que o molusco [engole.
Sabe-se apenas que o animal se inclina,
voraz, sobre a nudez da essência pura
e nela enterra a fome de seu dente.
Sabe-se mais: que o mar se transfigura
e à tona envia um anjo incandescente
quando no golfo o polvo se ilumina.
O tema desse soneto é a própria
criação artística. Para desenvolvê-lo, o eu lírico, metaforicamente,
reconhece-se um ´polvo´, movendo-se pelas águas escuras de um
´golfo´, (o mundo imaginário) por entre ´algas de silêncio e
solidão´, (a entrega e a concentração necessárias à concepção do
poético) a remover, incansavelmente, ´a lama espessa´ (os resíduos)
que, como uma crosta, envolve ´o tácito esqueleto de seu pão´ (a
poesia em seu estado puro). No entanto, não se trata de um
conhecimento exato e medido, pois, da mesma forma que o ´polvo´
ignora o que alimenta o ´molusco´ que o alimentará, isto é, ´o
plasma em chamas´, o eu lírico desconhece tanto a ´polpa´ quanto o
´grão´ que, ao fim de tudo, hão de envolver o ´esqueleto´ daquele
´pão´.
Há, entretanto, um saber coletivo,
fruto, evidentemente, de incontáveis metapoemas, nos quais os pares
do Autor depositaram suas experiências. O que se sabe, então? Em
primeiro lugar, da tenacidade com que os poetas encaram o ofício:
ante a folha em branco do pensamento, ávido, o eu lírico ´enterra a
fome de seu dente´. Depois, dá-se o momento epifânico da criação,
iluminado, ´o polvo´, em águas límpidas, vai ao encontro do ´anjo
incandescente´, sendo este a própria poesia, agora, em estado de
poema.
Nesse, como em muitos outros momentos,
constata-se a consciência com que Ivan Junqueira trabalha a imagem,
principalmente quando a concebe como uma expressão metafórica; vê-se
que a imagem não resulta, simplesmente, de uma comparação, consoante
definição de Pierre Reverdy, mas da ´aproximação de duas realidades
mais ou menos distantes´(34); desse modo, ´quanto mais as relações
das duas realidades aproximadas forem longínquas e justas, mais a
imagem será forte - mais ela terá poder e realidade poética´.(35)
NOTAS
(01)OLSEN. 1979. p. 51
(02)BANDEIRA. 1997. p 159
(03)BOURDIEU. 1996. p. 323
(04)Cf. POUND, s/d. p. 25
(05)BENJAMIN, 1975. 40
(06)CRUXÊN. 2004. p. 18
(07)ADORNO, 1980. p.208
(08)ANDRADE. 1980, vol. II. p. 297
(09)AGUIAR E SILVA. 1993. p. 584
(10)SELLEY. 2002. p.177
(11)ARISTÓTELES, s/d. p. 176
(12)JUNQUEIRA, 2003.
(13)AGOSTINO. 1973. p. 230
(14)Cf. BACHELARD. 1978, p. 200
(15)ASSIS, 1997, p. 545)
(16)ANDRADE, 1992. p. 84
(17)FRIEDRIC. 1978. p. 15
(18)PAZ. 1972. p. 36
(19)BANDEIRA. Op. cit., nota 2, p. 181
(20)GULLAR. 2002. p. 101
(21)ZAJDSZNAJDER. 1992. p. 69
(22)SHELLEY. Op, cit., nota 10, p. 175
(23)CASTRO LIMA. 1987. p. 175
(24)MAUSSAUD MOISÉS. 1997. p. 276-278
(25)Trata-se de um estado oriundo da mudança de percepção sobre uma
coisa, antes familiar, e que agora nos parece absurda.
(26)TIETZMANN SILVA. 1985. p. 84
(27)MATTÉI. 2001. p.20
(28)PERRONE-MOISÉS. 1978. p. 26
(29)THOMÉ. 2003. p.12
(30)SUHAMY. 1988. p. 67
(31(MASSAUD MOISÉS. Op, cit., nota 17, p. 236
(32)CHEVALIER, J. & GHEERBRANT. 1989. p. 919
(33)Ibidem, p. 640.
(34)MOURA. 1995. p. 19
(35)Ibidem. p. 19
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