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Jornal do Conto

Vivaldo Lima de Magalhães




A travessia



 

Encontrava-me num descampado verdejante, rodeado de montanhas ao longe. Pela paisagem local havia indícios de que estava em algum lugar ao Sul da Europa – Portugal, Espanha ou Itália... Muito assustado, andava apressadamente em companhia de dois amigos: o Silva e o Raimundo, excelentes criaturas, amigões. De repente, um deles falou: “Estamos em terras do Santo Ofício!” Estas palavras provocaram em mim um grande pavor. O Santo Ofício era, na Idade Média, o Tribunal da Inquisição. A Santa (?) Inquisição. Estávamos sendo observados à distância por um grupo de homens a cavalo, a serviço da organização eclesiástica, que vinha em nossa direção, enquanto nós três andávamos a pé. Cerca de dois quilômetros nos separavam dos cavalarianos e, por isso, tínhamos uma boa vantagem sobre eles.

Todavia, era preciso apressar-nos, para atravessar um rio e passar a salvo para o outro lado. Os cavaleiros cavalgavam rapidamente, e fomos obrigados a correr. O cansaço já tomava conta do nosso corpo e, em pouco tempo, poderíamos ser alcançados. Súbito, nos deparamos encarapitados em cima de um rochedo de uns 30 metros de altura, aproximadamente. Tentamos saltar para dentro do rio, cujas águas cristalinas permitiam ver no fundo a variedade da flora aquática, e peixinhos nadando. No trecho em que tentávamos a travessia era como um lago sereno, encravado no sopé da montanha. O Raimundo, mais arisco, atirou-se no rio com roupa e tudo, conseguindo atravessar para o outro lado, seguido pelo Silva. De minha parte, muito receoso e com medo de afogar-me, ou bater com a cabeça em alguma pedra no fundo do rio, detive-me sobre a rocha. Procurava um meio prático para descer, apoiando-me nas encostas, até alcançar a água.

Após manter-me durante alguns instantes em reflexão, criei coragem e dei início à descida. No entanto, meus braços e pernas enrijecidos não obedeciam ao meu comando, dificultando os movimentos, impedindo-me que agarrasse com maior firmeza os pontos saliente e depressões do rochedo. O pânico apoderou-se de mim. O desânimo e o cansaço vieram logo em seguida. Do outro lado do rio estava a minha salvação. O Silva e o Raimundo já haviam escapado e, da margem oposta, acenavam para mim, incentivando-me a cair na água. Era só cruzar o rio.

Por outro lado, alguma coisa mais forte e sinistra me impediam de tomar a iniciativa, impondo-me mais e mais obstáculos a cada tentativa e a cada movimento. Os homens da Inquisição já estavam bem próximos e, com toda certeza já me avistara, agarrado nas paredes do penhasco, ora tentando esconder-me entre as depressões da escarpa (pequenas grutas), ora tentando pular no rio, a fim de livrar-me daquela terrível perseguição. Em pouco tempo senti que os cavalarianos, por alguma razão, desviaram do rumo, tomando outra direção, desistindo da busca. O que teria feito eles mudarem de idéia?... Cessado o perigo de ser aprisionado, adquiri coragem e atirei-me no rio, iniciando, assim, a travessia.
 

 

 

 

19/01/2005