Vivian Rangel
Ironia contra o gênero feminino
A literatura feita por mulheres se divide em múltiplas vozes
dissonantes
Especial para o JB
Arquivo JB
Experimente classificar
algumas obras como literatura feminina e é muito provável que as
autoras exijam direito de resposta ou acendam uma fogueira para
queimar hereges politicamente incorretos. É claro que ainda hoje há
quem relacione duplas de cromossomos X a romances açucarados e
narrativas leves e intimistas, mas são poucos os que se atrevem a
classificar a produção feminina como algo único, até porque não se
ouve falar sobre características próprias da literatura masculina.
Mas, se nos anos de ditadura o discurso feminino utilizava o rótulo
para marcar a diferença perante o mainstream masculino, hoje
a expressão feminina na literatura está longe de configurar um
nicho, e desfruta de seu direito à multiplicidade.
- Essa generalização da
cultura é histórica e científica. Há pontos de vista ideológicos que
dividem o mundo em masculino, responsável pela razão e ciência, e
feminino, sexo das paixões e da família. Por conta disso, alguns
afirmam que há gênero feminino na literatura. Eu não acho. Não
existe relação direta entre o sexo e o estilo literário - afirma a
professora de literatura comparada da Universidade Federal
Fluminense (UFF), Lucia Helena.
Na discussão sobre a
existência ou não de um gênero feminino, há quem afirme que é
possível identificar dialetos de gênero, atribuindo às mulheres
mecanismos lingüísticos comuns, como o uso do condicional e um
discurso confessional e intimista, configurando uma estética mais
passional. Em contraponto, feministas ou não, que destroem o clichê
que relega a literatura feminina à esfera do privado, da delicadeza
ou das emoções.
Essa associação de
literatura feminina a um gênero exclusivo também pode ser explicada
pela recente conquista do mundo da escrita pela mulher, já que a as
letras femininas no Brasil só começam a ter uma publicação
expressiva no início do século 20. Influenciadas por mulheres de
participação política de peso, como Rosa Luxemburgo e Olga Benário,
é nos anos 60 que a literatura feminina conquista um espaço maior no
país, seja expressa nos contos intimistas de Clarice Lispector ou em
obras de feministas como Rose Marie Muraro. Segundo define ao JB a
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
editora da Aeroplano, Heloisa Buarque de Hollanda, era preciso
marcar uma diferença em relação ao domínio masculino na escrita para
sobreviver e ganhar visibilidade.
- Nos movimentos de contracultura, as mulheres precisaram se
associar e estabelecer uma identidade feminina no país. Mas isso
logo muda nos anos 70, quando a guerra de manobra abre espaço para o
diálogo entre as minorias. Então a literatura feita por mulheres
deixa de ser conceituada como gênero feminino - explica.
O fim da classificação ganha força com ensaios publicados por
teóricos dos estudos culturais, como Stuart Hall, que considera que
a questão dos gêneros na literatura não deve ser estudada em
separado da análise dos discurso de outras minorias, opinião
compartilhada por todos os teóricos ouvidos pelo Idéias.
- Não existe gênero feminino, mas um conjunto de circunstâncias
históricas que compõem a literatura feita por mulheres, que pode ou
não ter características comuns. Influências como a educação para a
sociabilidade e papel que ocupa na família são traços identificáveis
no discurso feminino, assim como um negro, um judeu ou qualquer
outra minoria traz indícios de sua história na linguagem - detalha
Heloisa.
- Ana Cristina Cesar afirmava que a linguagem não tem sexo. As
especificidades do gênero estão ao lado das diferentes vozes
presentes em grupos de determinadas classes sociais e raças, que
contrapõem o domínio da voz do homem branco - completa o professor
de letras da UFRJ, André Bueno.
Passados os anos de afirmação, continua Heloisa, a luta contra os
resquícios ou resíduos da hegemonia masculina é feita de maneira
mais sutil:
- As escritoras atuais usam o rótulo de produção feminina a seu
favor para ironizar e fazer denúncias. Artistas como Ana Miguel
servem-se de estereótipos para revertê-los - exemplifica.
Essa ironia demonstra que as mulheres contemporâneas desfrutam das
vantagens de escrever depois do movimento feminista. Claro que nem
todas as batalhas estão ganhas, mas o direito à palavra, em todas as
suas manifestações, está garantido na maioria da cultura ocidental.
Com leveza ou não, sem que isso configure um rótulo. Até porque
quase ninguém duvida da sensibilidade de Flaubert ou da delicadeza
de Chico Buarque.
Leia
Heloísa Buarque de Hollanda
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