Vânia Vasconcelos
Novos mundos, eternas pelejas
06 de maio de 2006
A escritora e mestra em literatura
Vânia Vasconcelos mergulha no romance Desmundo, e nos conta da
odisséia de Oribela
"Senhor, a noite veio e a alma é vil./ Tanta foi a tormenta e a
vontade! / Restam-nos hoje, no silêncio hostil,/ o mar universal e a
saudade"
(Fernando Pessoa)
Na sua obra Mensagem, Fernando Pessoa
canta as dores e glórias do ser português em sua odisséia na busca
de construir e, sobretudo, possuir o novo mundo, que éramos nós, ó
pá. Magnífica, além da construção, a capacidade de ser tão lírico,
tão pessoal, sendo coletivo em seu discurso: o poeta é a própria
nação ou transforma a nação num ser, embora fragmentado em tantos
personagens que desfilam nas partes do livro. Por isso tantas vezes
lê-se o que ele disse sobre Portugal como metáfora da própria
condição humana: "valeu a pena? Tudo vale a pena...". Assim, podemos
usar muitos versos de Mensagem para ilustrar a saga escrita por Ana
Miranda, nossa artesã da história e dos poetas, sobre a donzela
portuguesa Oribela, sua personagem no livro Desmundo, que é trazida
num grupo de órfãs criadas em convento e conduzidas para o Brasil a
fim de se casarem com os homens brancos, apartando-os do pecado de
estarem se deitando com as naturais de cá e poderem enfim, essas
mancebas, salvas pela bênção do casamento, parir nesta terra
crianças brancas a serem batizadas, conforme pedira em carta a Vossa
Alteza o jesuíta Manuel da Nóbrega.
Às órfãs, serviriam bem os versos de
Pessoa: "Que importa o areal e a morte e a desventura/ se com Deus
me guardei?". Pois se sentem diante de grande martírio e pavor
quando são apresentadas aos 'noivos', homens desgrenhados, brutos,
feros, que lhes examinam como a animais e essa apresentação
mercantil, que lhes merca os pendores domésticos, é feita pelos
representantes da mesma igreja que lhes ensinara a fé e que
entendiam como lar no mundo; a mesma igreja que lhes prometera
castelos e cuidados de rainha nas terras do novo mundo para
trazê-las mais conformadas e sem choro. A fé, é a esta que precisam
recorrer para suportar a pressa com que uns querem se livrar delas e
outros as querem tomar.
Esse é o mote do livro, o tema da
narrativa que nos conduz num longo discurso em estilo de diário
entrecortado às expectativas, esperanças, ao medo, desespero, dores,
descobertas, aos prazeres e tudo enfim que vive e aprende Oribela
desde sua chegada ao Brasil até quando aprende como sobreviver ao
novo mundo que, para ela, não é apenas o novo continente, mas o
mundo dos homens, esses seres estranhos e barbudos que mandam em seu
corpo e ignoram sua alma enquanto devoram seus sonhos entre
dentadas, xingamentos e surras. Até descobrir as doçuras de um homem
bom, que supunha ser um demônio, como a ensinara chamar um mouro a
apostólica religião cristã, Oribela atravessa um grande oceano de
dor e susto.
O mundo era novo; a peleja é eterna. É
o homem pequeno, ser desterrado em seus direitos todos de ser diante
dos grandes, do poder, dos interesses, das guerras de quem pode
mandar. E as verdades que se forja para justificar seja o que for
que se faça. Assim chamou-se bárbaro a quem não era romano e ainda
se chama infiel a quem não é cristão. Assim Oribela vê chamarem-na
puta, ela, órfã e donzela que crescera entre os doces das irmãs e as
preces de hora certa, quando não quer atender aos mandos e desmandos
dos que se fizeram seus donos. Nas mãos do marido - Francisco de
Albuquerque - apanha e ouve suas ordens de silêncio, seus elogios
tortos e sofre sua ira e desejo de bicho. Tenta fugir, é traída,
violada e de novo presa. O novo mundo que fora esperança inventada
em mentiras é o caos, o inferno, sendo porém chamado paraíso.
Maior reviravolta quando começa a
descobrir as doçuras do contrário. Quase tudo que antes lhe fora
ensinado como mal, se revela redenção, abrigo e felicidade nesse
mundo pelo avesso, nesse desmundo. É assim que "nesse tempo se deu
de minha amizade se encantar por uma natural, de cor muito baça,
bons dentes brancos e miúdos...que me falava a língua com a rudeza
dos matos e modos de animais silvestres". É essa a amiga única
naquele mundo avesso, a moça Temericô, índia doce que lhe levava
comida, curava feridas do corpo e da alma e trazia um carinho que
antes lhe pareceria, quando antes os preceitos do mundo antigo eram
sua terra firme, pecado. Ali, naquele novo mundo de seu desencanto,
ia aprendendo que os homens não se distinguem pela pele ou língua,
mas pela alma que têm.
Assim Temericô lhe prepara o espírito
para receber, numa outra fuga, o desejo que lhe acende o mouro - um
homem entre feras - e descobrir que os pés dele eram de gente, que
as mãos eram suaves, que a alma era superior em respeito, palavras e
saber. Assim, abrigada pelo mouro Ximeno, é ela quem aprende enfim o
desejo pelo outro e "lhe fui sentir a boca, ele despertou e me tomou
em seus braços num desatino e grandíssimo ímpeto, correndo suas mãos
em mim, dizendo suas palavras de amante...e me querer deixar como as
naturais, a mim dava um gosto muito bom".
Mas o mundo novo era antigo nos seus
desmandos e Oribela termina por ter que se submeter à ordem suposta
ou, ao menos, fingi-la, como convém ao mundo sempre. É bela e triste
a odisséia de Oribela, a manceba que atravessa o oceano para
descobrir um continente de revelações e essa história, como o livro
de Pessoa, serve de metáfora ao aprendizado do homem sem poder no
mundo grande, esse "bicho pequeno" quando enfrenta os interesses de
quem pode e quer mandar. O que faz Ana Miranda é o novo romance
histórico. São narrativas que tomam a matéria histórica não para
idealizar ou "tecer ilusões", mas ao contrário, para dizer com a
matéria histórica aquilo que a história nos faz entender: crescer
dói e o mundo é ainda o velho mundo dos grandes bichos que comem os
assim pequeninos.
Vânia Vasconcelos é escritora,
autora de Mergulhos, mestra em Letras pela UFC e professora da UECE
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