Vânia Vasconcelos
Mergulhos
Vânia Vasconcelos
Articulista do Vida & Arte,
Jornal O Povo, 3.9.2000
A palavra mergulho e seu verbo correlato extrapolam o sentido
conotativo e ganham nuanças íntimas, profundas: imergem no abismo da
alma humana, tão insondável quanto as profundezas do mar sem fim.
Gosto de palavras sem motivo algum, apenas para vadiar a imaginação
por suas estruturas flexíveis, seus sons e sabores. Mas algumas
inspiram-me respeito maior pelo poder imagético. Assim é o verbo
mergulhar ou seu substantivo abstrato, ambos providos de uma força
de ação rápida, de uma liquidez fonética que nos conduz logo a um
salto e imersão completa em água, em alguém, em ar.
O dicionário nos ensina sinônimos que parecem ir aprofundando o
mergulho numa gradação na qual quase vai faltando o ar e a luz:
submergir, aprofundar-se, embrenhar-se, entranhar-se. O oceano
guarda seus segredos e permite ao homem mergulhos muito limitados,
daí inventarmos tantas lendas de tesouros e cidades inalcançáveis.
Sobretudo o oceano presta-se a uma metáfora de nós mesmos não na sua
imensidão e largueza, mas no que tem de instabilidade, perigos e
matéria desconhecida, guardada em profundidades que nos assustam.
Por isso, inábeis mergulhadores, ficamos na superfície segura.
Quando o oceano é o outro, falta-nos talvez vontade, talvez coragem
e fugimos nadando em busca de uma ilha. Mergulhar é saltar no
escuro, é arriscar-se de alma solta em busca de alguém que pode
também assustar-se e fugir, deixando-nos no meio do oceano, sozinhos
e inúteis com nossa descoberta de tesouros; quando o oceano é nossa
própria alma, arriscar-se a encontrar seus próprios monstros
marinhos também não é decisão fácil. No entanto, quem nunca quis dar
o salto na alma do outro? Quem não deseja e teme ser o oceano de
alguém?
Revi a versão americana do filme Cidade dos Anjos. Nesta e na alemã,
a imagem que me emociona é a do mergulho do anjo no ar, na vida,
impulsionado pelo mergulho anterior, na alma da mulher. Quem não
invejou o desejo nos olhos do anjo quando, na versão americana, ele
pergunta à mulher o sabor da pera e ela o faz mergulhar na idéia
sensorial da fruta? Preciosa a imagem do mergulho no espaço
associado ao nascimento dos sentidos e à decisão de mergulhar em
alguém. Ao final, o anjo caído mergulha no mar, completando a idéia
ligada a renascimento, que tem na água uma de suas mais fortes
representações.
Chico Buarque, numa música chamada Futuros Amantes, fala de
vestígios de um amor não vivido, cartas, poemas, retratos, ecos de
palavras a serem descobertos no futuro por escafandristas, quando o
Rio for uma cidade submersa, e de como estes ecos alimentarão
amantes de então. A música é linda, mas a idéia mergulha em imensa
melancolia. Então, todo o tesouro do que somos e sentimos, que não
entregamos a ninguém e nem a nós mesmos, já que não mergulhamos,
guardamos para quem? Para quando? E se tudo ficar apenas submerso no
lodo oceânico sem que ninguém queira mergulhar? Afinal, porque
fazemos do amor tesouro perdido no fundo do mar?
Consolo-me um pouco com Vinícius, que não tinha medo de mergulhar na
alma e no corpo feminino, e seu poema O Mergulhador: ``Como dentro
do mar, libérrimos, os polvos/ no líquido luar tateiam a coisa a
vir/ assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos/ passeiam no teu
corpo a te buscar''. Feliz tradução. Afinal, que é o sexo, senão o
desejo e o medo de mergulhar no outro e se deixar mergulhar, a busca
do impossível tesouro do encontro?
Enfim, submersa em mim, oceano possível, continuo buscando, entre
monstros marinhos, seixos, algas e silêncio escuro, alguma luz quase
tesouro, como o poeta romeno Marin Sorescu em Concha: "Escondi-me
numa concha, no fundo do mar, mas esqueci-me em qual/ Cotidianamente
desço às profundezas e côo o mar por entre os dedos a ver se dou por
mim.(...) Quantas vezes fui diretamente a uma concha, dizendo: -
Este sou eu/ Quando abria a concha/ estava vazia".
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