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Vânia Vasconcelos

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia da autora:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Vânia Vasconcelos


 

Biografia


Natural da cidade de Salvador, Vânia Vasconcelos vive em Fortaleza desde 1995. É professora de língua portuguesa e respectivas literaturas. Mestra em Letras pela UFC já coordenou o Núcleo de Literatura do Dragão do Mar e a programação da 6ª Bienal Internacional do Livro do Ceará em 2004. Atualmente, leciona na Faculdade Ciências e de Letras do Sertão Central –FECLES/ UECE.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Vânia Vasconcelos


 

Mergulhos



Vânia Vasconcelos
Articulista do Vida & Arte,

Jornal O Povo, 3.9.2000


A palavra mergulho e seu verbo correlato extrapolam o sentido conotativo e ganham nuanças íntimas, profundas: imergem no abismo da alma humana, tão insondável quanto as profundezas do mar sem fim.

Gosto de palavras sem motivo algum, apenas para vadiar a imaginação por suas estruturas flexíveis, seus sons e sabores. Mas algumas inspiram-me respeito maior pelo poder imagético. Assim é o verbo mergulhar ou seu substantivo abstrato, ambos providos de uma força de ação rápida, de uma liquidez fonética que nos conduz logo a um salto e imersão completa em água, em alguém, em ar.

O dicionário nos ensina sinônimos que parecem ir aprofundando o mergulho numa gradação na qual quase vai faltando o ar e a luz: submergir, aprofundar-se, embrenhar-se, entranhar-se. O oceano guarda seus segredos e permite ao homem mergulhos muito limitados, daí inventarmos tantas lendas de tesouros e cidades inalcançáveis. Sobretudo o oceano presta-se a uma metáfora de nós mesmos não na sua imensidão e largueza, mas no que tem de instabilidade, perigos e matéria desconhecida, guardada em profundidades que nos assustam.

Por isso, inábeis mergulhadores, ficamos na superfície segura. Quando o oceano é o outro, falta-nos talvez vontade, talvez coragem e fugimos nadando em busca de uma ilha. Mergulhar é saltar no escuro, é arriscar-se de alma solta em busca de alguém que pode também assustar-se e fugir, deixando-nos no meio do oceano, sozinhos e inúteis com nossa descoberta de tesouros; quando o oceano é nossa própria alma, arriscar-se a encontrar seus próprios monstros marinhos também não é decisão fácil. No entanto, quem nunca quis dar o salto na alma do outro? Quem não deseja e teme ser o oceano de alguém?

Revi a versão americana do filme Cidade dos Anjos. Nesta e na alemã, a imagem que me emociona é a do mergulho do anjo no ar, na vida, impulsionado pelo mergulho anterior, na alma da mulher. Quem não invejou o desejo nos olhos do anjo quando, na versão americana, ele pergunta à mulher o sabor da pera e ela o faz mergulhar na idéia sensorial da fruta? Preciosa a imagem do mergulho no espaço associado ao nascimento dos sentidos e à decisão de mergulhar em alguém. Ao final, o anjo caído mergulha no mar, completando a idéia ligada a renascimento, que tem na água uma de suas mais fortes representações.

Chico Buarque, numa música chamada Futuros Amantes, fala de vestígios de um amor não vivido, cartas, poemas, retratos, ecos de palavras a serem descobertos no futuro por escafandristas, quando o Rio for uma cidade submersa, e de como estes ecos alimentarão amantes de então. A música é linda, mas a idéia mergulha em imensa melancolia. Então, todo o tesouro do que somos e sentimos, que não entregamos a ninguém e nem a nós mesmos, já que não mergulhamos, guardamos para quem? Para quando? E se tudo ficar apenas submerso no lodo oceânico sem que ninguém queira mergulhar? Afinal, porque fazemos do amor tesouro perdido no fundo do mar?

Consolo-me um pouco com Vinícius, que não tinha medo de mergulhar na alma e no corpo feminino, e seu poema O Mergulhador: ``Como dentro do mar, libérrimos, os polvos/ no líquido luar tateiam a coisa a vir/ assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos/ passeiam no teu corpo a te buscar''. Feliz tradução. Afinal, que é o sexo, senão o desejo e o medo de mergulhar no outro e se deixar mergulhar, a busca do impossível tesouro do encontro?

Enfim, submersa em mim, oceano possível, continuo buscando, entre monstros marinhos, seixos, algas e silêncio escuro, alguma luz quase tesouro, como o poeta romeno Marin Sorescu em Concha: "Escondi-me numa concha, no fundo do mar, mas esqueci-me em qual/ Cotidianamente desço às profundezas e côo o mar por entre os dedos a ver se dou por mim.(...) Quantas vezes fui diretamente a uma concha, dizendo: - Este sou eu/ Quando abria a concha/ estava vazia".


 

 

 

 

 

29/05/2006