Wagner Lemos
Entrevistando Nélida Piñon
Membro da Academia Brasileira das
Letras (ABL), da qual foi presidente entre 1996 e 1997, a escritora
Nélida Piñon é uma de nossas entrevistadas deste mês. Recentemente,
Nélida foi laureada com o Prêmio Príncipe das Astúrias das Letras
2005, ano de em que esse prêmio completa 25 anos de existência.
Piñon foi a vencedora dentre de 31 candidatos, do Canadá, Estados
Unidos, Holanda, Hungria, Índia, Israel, Kuwait, México, Noruega,
Peru, Portugal, República Dominicana, Reino Unido, Suécia e Espanha.
Nélida Cuinãs Piñon nasceu em 03 de
maio de 1937. Formou-se em jornalismo pela Faculdade de Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio e fez sua estréia na
literatura com o romance Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, de 1961.
Jornalista, romancista, contista e professora, Piñon foi eleita em
27 de julho de 1989 para a cadeira 30 da ABL, sucedendo Aurélio
Buarque de Holanda.
Com mais de 35 anos de atividade
literária, Piñon teve seus livros publicados em MAIS DE 20 países,
entre eles Argentina, Polônia, França, Cuba, Espanha, Estados
Unidos, Suécia, Rússia, Inglaterra, Alemanha, Itália, Portugal e
Colômbia, e traduzidos para mais de dez idiomas.
Nélida foi professora da Johns Hopkins
University (EUA, em 1988), da Columbia University (EUA, em 1978), da
Universidade de Harvard, da Georgetown University. Atualmente
leciona na Universidade de Miami, onde é titular da cátedra Dr.
Henry King Stranford de Ciências Humanas.
Via internet, quando de uma longa
temporada da escritora em Paris, fizemos a entrevista que se segue.
Wagner Lemos - Literariamente falando, quando
você começou a escrever?
Nélida Piñon - Comecei a escrever menina ainda, lendo os livros que
me davam, inventando os que eu não tinha à mão. Inventar é uma saga
antiga, precedeu-me antes do nascimento. Talvez tivesse sido a
vocação de meu avô, Daniel, imigrante galego , que se aventurou cedo
a cruzar o Atlântico, obedecendo ao gosto da aventura, e à
necessidade de instalar-se numa terra que lhe ofertasse horizontes
mais amplos. Ou talvez inventar tenha começado com meu pai, Lino,
igualmente disperso e com a cabeça tantas vezes mergulhada nos
livros.
Não saberia inventariar o meu passado, dar-lhe credibilidade,
apontar razões determinantes de um quotidiano ultrapassado e já
entregue à minha mitologia pessoal.
As aspirações humanas, afinal ,se confundem entre tantos escombros.
Sabemos tão pouco dos instantes que foram fazendo o nosso destino, a
ponto de traçarmos uma biografia completa, que não colida com o
tempo e o espaço interiores.
Mas, com oito anos, proclamei-me escritora. Não sei, porém, em que
instante, e de que abrigo, saiu mais tarde esta outra escritora, que
sou eu hoje, que aspirava abarcar os seres e os enigmas. E que,
reconhecendo o trato difícil com as coisas, empenhava-se em ir além
do visível, do possível. De onde terá vindo ela para resistir às
formas convencionais que não aceitam retoques? Penso que esta
escritora, exigente, e em estado de vigília, foi consolidando-se com
a reflexão, com a experiência, com as manhas e as seduções do
próprio ofício.
Wagner Lemos – Como foi esse processo de sua
formação literário-cultural?
Nélida Piñon - Tive a sorte de ler tudo que queria. Jamais sofri
censura. Portanto, tive acesso a toda classe de escritores que
foram, de verdade, meus mestres. Lia-os com volúpia, aprendendo como
forjavam eles um texto que me induzisse a crer em seus inventos.
Percebi, cedo ,que para armar uma estrutura narrativa , não bastava
talento .A ele era mister aduzir trato diário com a palavra, com a
emoção , que a epopéia secreta do texto filtra, definir o tempo que
é simultaneamente sutil e pesado , entrelaçar espaços e ação ,
aprender a pensar enquanto cria, sem perder de vista a carnalidade
misteriosa dos personagens. Jamais esquecer que a ilusão ,de
qualquer parágrafo, tem por fim convencer o leitor de que é ele
cúmplice da nossa odisséia narrativa.
Wagner Lemos – Quais autores a influenciaram?
Com que aprendeu mais?
Nélida Piñon - Insisto que aprendi com todos. Com autores e seres
fora do âmbito literário , uma vez que circulei intensamente por
formas de vida e de literatura .Fui e sou leitora atenta da história
, da teologia , da filosofia. A narrativa, porém, abriu-me caminhos
e consolidou minha consciência moral e estética . Assim , leio e
releio Homero , Shakespeare , Proust . O russo Dostoievsky
mostrou-me a escuridão que mantém o humano prisioneiro de apetites
bestiais. No Brasil, Machado de Assis está invicto. No mundo que
provém da península ibérica, das raízes latinas, reverencio
Cervantes. Poderia acrescentar tantos nomes. Homenageio ,porém, a
Monteiro Lobato e Karl May. A aqueles autores que, de tanto mentirem
e difundirem as peripécias, abriram a porta da aventura por onde eu
circulava absorvendo os postulados da liberdade.
Qualquer avanço que terei acumulado, originou-se de uma devoção
intensa ao meu ofício. A persistência em prosseguir , em jamais
desistir de considerar meus textos imperfeitos. Sempre em busca do
meu Graal que constituía simplesmente de uma página relativamente
limpa, próxima à minha aspiração literária.
Wagner Lemos - Fale um pouco de sua
experiência como presidente da Academia Brasileira de Letras.
Nélida Piñon - À frente da ABL , tratei de levar adiante o bastão
recebido dos meus grandes antecessores. Fiz o que eles fizeram,
manter a dignidade da Casa no ano do seu Centenário .Esta
instituição ilumina o Brasil e aprendi muito naquele período.Posso
mesmo dizer que o trabalho trouxe-me alívio, aprendizagem .
Sobretudo o sentimento de haver devolvido ao Brasil, à minha língua,
tudo que recebi das entidades míticas que ainda hoje fecundam a
minha alma.
Wagner Lemos – Como é sua experiência de
representação cultural brasileira no exterior?
Nélida Piñon - Tenho orgulho da cultura brasileira que apresento nas
universidades estrangeiras, nos congressos internacionais .É difícil
desempenhar este papel uma vez que somos minoritários , tão
desconhecidos. Tenho a contínua sensação de havermos sido esquecidos
ao longo da história . Contudo, não renuncio a travar o combate
indispensável.
Wagner Lemos – Mais recentemente, como você
enveredou pelos caminhos do Oriente Médio em sua obra?
Nélida Piñon - Após haver explorado a gênese brasileira no romance A
República dos Sonhos, nos anos que se seguiram empenhei-me a fazer
da própria narrativa personagem de um romance. Queria imergir em um
universo que explicasse a vocação humana para resgatar valores de
que dependemos para legitimar nossa história pessoal e , aquela
outra ,que nos circunda . Para isto, ao olhar o mapa, ancorei no
Oriente Médio. Aquela região que quebrou o paradigma da
invisibilidade e engendrou o monoteísmo. Um deus invisível e
abstrato. Um novo conceito de fé. Portanto, avançando um pouco mais,
enveredei pelo deserto, esta pairagem cruzada por caravanas,
mentiras, histórias, intrigas, demônios, especiarias, seda. Estas
rotas propícias a toda espécie de narrativa. Depois, coloquei a
emblemática Scherezade no âmago mesmo de Bagdad, a cidade mítica e
eterna . Com Scherezade e sua trupe à frente, circundados pela
tirania do Califa, a imaginação se alvoroça e pretende triunfar. Daí
, foi o fazer do romance ao longo de cinco anos , enquanto lia ,
estudava , adentrava-me pelo mundo islâmico . Um saber que, afinal,
precisei dissolver em prol da integridade ficcional.
Wagner Lemos – O contexto literário
contemporâneo, segundo Nélida Piñon.
Nélida Piñon - Vejo turbulência, inquietação, um período secreto.
Não é tanto uma hibernação. Talvez a pausa que precede a grandes
revelações. Aplaudo o grande número de jovens que enfrentam
corajosos o fazer literário. Estou na expectativa, com o coração
emocionado.
Wagner Lemos – Quanto ao Brasil da atualidade
o que você tem a dizer?
Nélida Piñon - O Brasil, de hoje, é rotineiro. Esforça-se, mas
parece não se mover, dar o salto que o levaria à mínima
transcendência, à justiça social. Tenho desalento, mas cobro
liderança de todos, de cada um de nós. Mas, como combater um Estado
que se armou para nos desconsiderar?
Wagner Lemos – Como você soube da premiação na
Espanha do troféu Príncipe das Astúrias e o que tem a dizer sobre
isso?
Nélida Piñon - Na antevéspera da premiação, soube que era uma das
finalistas e favorita à láurea. Mas fui dormir serena, por volta de
1h30, não sem antes terminar um artigo e de ler mais um capítulo de
"Os Inimigos de Machado de Assis", de Josué Montello. Às 5h já
estava acordada. Por volta de 6h30 recebi o telefonema do Presidente
do júri, e da Real Academia de Espanha, Dom Victor Garcia de la
Concha dizendo que havia sido uma vitória consagradora. Fico muito
feliz, porque é um dos grandes prêmios do Ocidente, portanto, do
mundo. Fico feliz também por ter sido dado a um brasileiro.
Wagner Lemos – Para finalizar, Nélida por
Nélida...
Nélida Piñon - Sou taurina e meu ascendente é sagitário. Conjugação
de terra e fogo. Será que me explica? Quanto aos sonhos, eles são
discretos. Talvez quisesse aprender a viver, a morrer. A manter a
dignidade, a seguir considerando a compaixão e a misericórdia
sentimentos altaneiros, indispensáveis para o exercício da nossa
humanidade. Será que falei demais?
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