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Weydson Barros Leal


 


A Poesia de Soares Feitosa


 

Os poemas de Soares Feitosa - este novo poeta, que surge aos cinqüenta anos - são, antes de poemas, uma explosão de amor. O amor de um poeta que dormia, ou do poeta adormecido em si, e que acorda para cantar a sua terra, a sua história pessoal (e ao mesmo tempo universal), a sua e a nossa existência.

Os seus poemas, todos de nomes e estruturas particulares, ora por sua simplicidade de aldeia, ora por sua mesma universalidade, revelam ao leitor atento a cultura e a erudição dos seminaristas de ontem, sabedores do latim e do grego, leitores dos antigos almanaques e de múltiplas traduções bíblicas. Pois este é o caso do nosso poeta.

Também por isso, a leitura dos poemas de Soares Feitosa requer cuidado. Como um Pound, ele utiliza com intimidade os seus conhecimentos de latim e grego; e como os ideogramas chineses nos Cantos do próprio Pound, essas inserções, sempre buscando reforçar o sentido primordial da palavra, pedem um leitor identificado com sua busca.

Isto não quer dizer que esse leitor precise de uma erudição ou de um conhecimento que lhe permita a leitura de línguas mortas. Pois o mesmo “miglior fabbro” que sabia fundamental o conhecimento de outras línguas nessa nossa época mas não dominava por completo outro idioma além do inglês, também sabia que “nenhuma língua é completa” e que “um mestre poderá expandir continuamente sua própria língua, adequando-a para conter alguma carga até então presente somente em alguma língua estrangeira”.

Conheci o poeta Soares Feitosa através de um amigo comum que lhe indicara meu nome a fim de que conhecesse sua poesia. Desde o nosso primeiro contato, procurei desvendar o mistério que envolvia aquela voz explosiva que me falava de seus poemas.

E seu processo criativo, ou da feitura de seus poemas, sabe-se - como se sabe de uma explosão no meio da noite - que são fruto de uma emoção que, provavelmente represada durante décadas, rompera os muros de seu inconsciente passando a fazer parte de sua linguagem.

Isto me fez lembrar I. A. Richards quando diz que “muito do que colabora na produção de um poema é, naturalmente, inconsciente. “E muito provavelmente, os processos inconscientes são mais importantes do que os conscientes”. Este, no entanto, é um ponto polêmico, e bons poetas-críticos, como Baudelaire e Auden, têm posições opostas.

Mas I. A. Richards poderia nos ajudar a esclarecer outros aspectos da poesia de Soares Feitosa, comuns em toda boa poesia: a dificuldade de compreensão por parte do leitor, ou mesmo a sua incomunicabilidade.

Em seus versos, a sintaxe, assim como o encadeamento de algumas “passagens”, é proposital e duramente rompida, o que transforma o poema em um labirinto de luzes, em um terreno acidentado por declives e aclives de compreensão onde, de uma passagem simples e clara, passa-se a uma absoluta falta de direção. Esse desnorteamento, entretanto, é sempre protegido pela estrofe seguinte ou pelas notas que, abundantes, são como guias de sua “commedia” pessoal.

Por isso, na Poesia, (como em outras artes), o que muitas vezes é visto como dificuldade, é o simples resultado da busca do poeta em “ajustar” o seu poema de forma a este refletir com precisão a sua “experiência”, harmonizando-se a ele e representando-a. E mesmo que na obra artística a comunicação seja um de seus principais objetivos, é preciso não identificar, via de regra, “beleza” com “eficiência comunicativa”.

Outro aspecto que não deve ser confundido nos poemas de Soares Feitosa é a sua estrutura plástica. Pela utilização dos recursos de computador, como o simples aumento do tamanho dos caracteres ou utilização de letras e palavras do alfabeto grego ou latino, esta poesia não pode ser chamada de concreta. Não tem nada a ver !

Esses recursos, no caso, exclusivos e característicos de nossa época (quando os computadores fazem parte do mobiliário das casas, como uma cadeira ou uma velha máquina de escrever), são os recursos que marcaram o surgimento simultâneo da poesia visual.

E apesar das invenções concretistas terem sido quase sempre marcadas por resultados visuais, isto não dá ao Concretismo uma sobrevida (equivocada) da nova poesia desenvolvida com a ajuda dos computadores.

A obra disponível de Soares Feitosa está inicialmente dividida em sete volumes ou poemas: PSI, a penúltima (que é o primeiro deles) é um longo poema sobre a migração de raposas no Maciço do Baturité, no interior do Ceará, cuja notícia o poeta lera em um jornal. As raposas estariam invadindo os municípios em torno das matas em busca de água, e infectadas pela Raiva, atacavam as pessoas.

PSI, a penúltima, é um belo poema, e seja pela carga dramática, seja pela utilização de elementos regionais (nome de pessoas, lugares, expressões locais) ou ainda pela aparição de termos em grego e em latim no percurso do poema, o resultado é uma pequena peça que poderia ser declamada com os tempos e as impostações teatrais.

O segundo poema, Um Fractal - Ave, Pax !, remete seus elementos ao poema anterior. De extensão reduzida, é, no entanto, uma fábula; não por sua estrutura sintática - sempre recortada, como se um dos fantasmas de Guimarães Rosa lhe assaltasse a palavra - mas pela utilização, como no poema anterior, de animais que “agem” e “falam” como protagonistas.

Outro poema circunstancial, SIARAH, narra com a linguagem “cifrada” ou codificada pelo poeta - e por isso mesmo a necessidade absoluta das notas explicativas - a saga dos cearenses na construção do canal de 120 Km, recentemente concluído, que corta o sertão do estado.

A notícia, que ouviu pelo rádio juntamente com a informação de que a cidade de Caruaru, no interior de Pernambuco, devido à seca só recebia água a cada dez dias, foi a semente para o poema.

Os outros poemas Compadre-Primo, Padre-Mestre e Castanholas de Toí são textos memorialísticos e têm suas raízes em lembranças do poeta, de sua infância e adolescência no Ceará, e até em recordações de seu tempo de Seminário.

Pequenas variações quanto ao ritmo podem ser observadas nesses três poemas, no entanto, uma tendência dramática, como nos diálogos entre os personagens recordados ou inventados que habitam o poema, são uma marca constante até o último verso.

Chegamos então ao último volume: FORMAT CÊ DOIS PONTOS, que, como observou o poeta e crítico César Leal, é obra de um portador da verdadeira imaginação informática.

Como encerramento do conjunto, este poema funciona como um final de rara força. O poeta une neste texto todos os recursos utilizados anteriormente, acrescentado-lhe, aí sim, termos em inglês que reproduzem o próprio “raciocínio” dos computadores.

Palavras como Delete e Undelete (que parecem gritar no papel, como em Undelete:

Não O destruam, por favor,
Recuperem-No !
Meu files, meus thesouros !)

 

Ou ainda em Enter, Copy, Copied, Save !, que aparecem quase sempre acompanhadas de exclamações que lhes reforçam o sentido de velocidade informática e do grito de sua poesia.

Ainda em FORMAT CÊ DOIS PONTOS as reminiscências da infância no Ceará são trazidas ao poema de forma curiosamente oportuna: a mistura dos arreios de prata, do gato Mimoso, do Cachorro Foguete, do gibão do capoeiro e outros elementos de um tempo passado ou (paralelo) de um bad command or file name criam o contraste do rústico com o contemporâneo, muito em voga, inclusive, na arquitetura atual.

FORMAT tem a velocidade da Informática, e é para ser lido, como faz o próprio poeta, com rapidez mas com a impostação que se dá sobre o palco ou o tablado.

Mas o poeta sabe que sua experiência, como uma busca no passado, corre o risco de não ser compreendida por todos:

“Vigiai, vigiai,
é longo o caminho da Grécia
incerto o resultado da viagem à Grécia !
Vigiai e orai !”

 

Este receio, entretanto, não o impede em sua viagem, e a chegada ao final do poema - como se o poeta chegasse a uma Grécia do futuro - é o seu próprio conhecimento do Universo, e este, como a imaginação humana, é o Infinito:

c CHRIST
the soft,
the omega !!!

: UNIVERSE
the hard,
the infinite.

 

Gostaria de encerrar essas observações sobre a poesia de Soares Feitosa lembrando um ensinamento e uma constatação de Shelley, o maior poeta lírico do romantismo inglês, autor da “Defesa da Poesia”.

Este ensinamento concerne ao problema da imcompreensão ou dos verdadeiros equívocos de interpretação em que podem incorrer os leitores comuns, ou analistas que não sejam verdadeiramente poetas, quando tentam conceituar determinada obra.

Diz Shelley: “O júri - essencialmente intemporal - que julga um poeta, deve ser composto por seus pares; e estes devem ser eleitos pelo tempo e dentre os mais doutos de muitas gerações, pois os poetas são os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade lança sobre o presente; as palavras exprimem o que não compreendem; as trombetas conduzem a batalha e não sentem o que inspiram; a influência que não é movida, mas move”.

Soares Feitosa pode não ser o poeta do século - pois este já é de Gerardo Mello Mourão - mas é certamente um poeta que deve ser considerado pela sua criação.

 




Soares Feitosa, 2003
Leia a obra de Soares Feitosa