William Lial
Ela ainda vive
10.02.2003
Sua morte ainda não
foi apregoada, entretanto, temos a impressão de que ela está caindo
no esquecimento. Cada vez mais somos impulsionados a crer que não
mais é buscada, não mais é percebida. No entanto, será mesmo chegado
o seu fim? Não acredito. O último capítulo dessa epopéia ainda não
foi lido, se quer foi escrito e, com certeza, nunca será.
Atualmente ela sofre
arremessos de desdém e descuido por parte dos seus praticantes.
Contudo está voltando, ressurgindo devagar da penumbra de uma
lembrança, feito vislumbre de uma alegria há muito vivida, feito
fiel paladino. Ela vem assim, pé ante pé, galgando os degraus que
sempre foram seus, até chegar ao topo outra vez. Talvez esse topo
não seja mais como era antes, quando não existia seu grande rival, o
tubo mágico de imagem, transmissor do moderno mundo novo. Se me
permite o termo arcaico. Entretanto ela vem, mais madura, mais rica
e mais vigorosa, como convém a sua idade. E não perca tempo se
perguntando o que você tem com isso. Não se pergunte essa
barbaridade. Ela pode ser a sua ponte para um mundo novo, longe da
ignorância dos sentidos e da falta de sensibilidade para ver e
sentir tudo. A capacidade de se comunicar, perceber e interpretar o
mundo é, indubitavelmente, mais verossimilhante sobre sua corte. Os
olhos de quem a conhecem são sempre mais vivos que os olhos de quem
a ignoram. Mesmo sob a modernidade, ela vive. Vive para aqueles que
nunca a esqueceram e para aqueles que ainda não a conheceram, talvez
como você. Vá até ela e fale como nunca falou, sorria como nunca
sorriu, chore como nunca chorou e ame como nunca amou. Ela continua
a sua espera na estante mais próxima, na biblioteca mais próxima, na
livraria mais próxima.
A Literatura é sua.
Encontre-a, e se encontrará também.
O velho
24.02.2003
Ele era a imagem da
desolação. Caminhava pela praça, ainda molhada pelos últimos pingos
da chuva, como se vagasse no deserto. Nada parecia existir-lhe, além
dele. Talvez nem mesmo ele existia-lhe. Olhava a frente como se
quisesse algo enxergar e não enxergava, pois sempre olhava novamente
e parecia não encontrar o que procurava. As gotas de chuva que
debalde voltavam a cair, não o incomodavam, afinal, se o mundo não
existia, a chuva também não. Algumas vezes sentava, como se desolado
estivesse por alguma desventura. Mirava o chão, o vento, o céu, mas
nunca as pessoas que para ele não estavam ali. Comportava-se como se
consigo mesmo conversasse, como se fosse sua única companhia, o que
acredito fosse verdade. Será que pensava em suicídio, eu imaginava.
Talvez tenha perdido a mulher, os filhos, a família, quem sabe.
Idade possuía para ter esses parentes. Tinha por volta de uns
setenta anos, também tinha pele parda e cabelos brancos, em poucos
fios que lhe avultavam a cabeça. Eu bem que poderia ir lá, ver se
não lhe podia ajudar em alguma coisa. E era só um pensamento que eu
não realizava. Nunca fui frio ou despreocupado para com os
sentimentos dos outros, mas ali era diferente. Não fui ao seu
encontro, acho que ele também não me viu. Partiu após alguns
instantes, contornou a esquina a direita, raspou a parede do banco,
antiga e desbotada, sumiu entre os transeuntes apressados que
desfilavam suas alegrias ignotas, e eu nunca mais o vi. Havia algo
de familiar naquele homem, havia algo de mim naquela figura. Havia
uma possível saudade de um mundo sonhado e não realizado, havia uma
desolação, havia o prenúncio de encontrar-me velho e vazio numa
praça banhada pela solidão.
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