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Wilmar Silva





O RETORNO DO POETA: vis-à-vis Anelito de Oliveira & Wilmar Silva





Anelito de Oliveira, mineiro de Bocaiúva, volta ao mundo e lança "Três Festas/ A Love Song As Monk", após um silêncio híbrido de poesia, como as palavras de um olímpico que pratica esgrimas - poeta, ensaísta, performer, editor -, um dos mais férteis e lúcidos criadores do Brasil contemporâneo, com uma obra vasta quase toda inédita. "Lama", estréia solo aconteceu em 2000 pela Orobó Edições. Em "Três Festas", edição conjunta da Orobó e anomelivros, o poeta explora com veemência o estado complexo do ser humano mergulhado em si e em seu espaço, a exemplo de uma arma grávida como revelam os versos: "Se eu lhe disser que estou triste,/ Você não vai acreditar, se eu/ Lhe disser que estou perdido,/ Você não vai acreditar, se eu/ Lhe disser que estou à beira do/ Suicídio, você, sem dúvida,/ Não vai acreditar, então, creio/ Que seja melhor ficar calado".

Aqui, vis-à-vis, essa língua de palavras criativas é uma extensão de muitos diálogos que sempre tivemos, iniciados em 1999 quando o meu livro "Pardal de Rapina" foi publicado por ele. Vidente do caos, Anelito de Oliveira é uma espécie de humanista da essência, "a religião original da humanidade" (Novalis), mas sinto que a poesia para esse esgrimista é também uma ciência selvagem. Translúcido, Anelito de Oliveira fala sobre a sua estadia como editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, sensível e perdidamente apaixonado pelas letras, abre uma interseção entre o livro, objeto de escala industrial, e o lírio, aquele símbolo sagrado da natureza, provocações que mesmo lançadas se quedam: fosse servido um banquete aos poetas, quem você convidaria para esse manjar? Surpresas, as viagens de Anelito de Oliveira acabam refletindo um compêndio do estado político em que vivemos, nós, os poetas:

WILMAR SILVA:

1) Mais de 4 anos de Suplemento Literário: o que significa essa frente de trabalho no Suplemento Literário de Minas Gerais depois de um estado de letargia?

ANELITO DE OLIVEIRA:

Quando cheguei ao Suplemento, em janeiro de 99, seu estado de letargia propriamente dito já tinha passado. Encontrei-o já ativado, saindo mensalmente e sendo distribuído por MG, pelo Brasil e exterior. Tanto seu conteúdo quanto forma eram realizados com rigor. Destaquei diversas vezes a positividade do trabalho do editor ao qual substituí, Carlos Ávila. Eu mesmo colaborei pela primeira vez com o Suplemento exatamente naquela fase. Tal era meu respeito pelo trabalho ali desenvolvido que, ao ser convidado para o cargo, não hesitei em ir até o editor e dizer-lhe que deveria continuar para o bem do próprio periódico, que a meu ver deveria se colocar acima de efemérides políticas. De mais a mais, o próprio Secretário de Cultura empossado naquele momento, Ângelo Oswaldo, queria que Ávila continuasse. Diante de sua recusa, de sua insensibilidade para a questão cultural como um todo que embasava meu argumento -, decidi aceitar o convite para editar o Suplemento. Estava bastante preocupado com a possibilidade de uma queda no nível da publicação. Durante quatro anos, trabalhei incansavelmente para manter acesa a chama criativa do Suplemento, fazendo jus a seus melhores momentos, especialmente seu momento inaugural. Minha admiração pela obra e a conduta de Murilo Rubião, bem como a certeza da importância cultural do Suplemento, alimentaram meu entusiasmo. Estive ali não por mera vaidade que realmente não tenho , mas como mais uma prova de um compromisso com a defesa dessa causa sempre perdida, que é a literatura, a arte, a cultura, enfim, neste país banal.

2) Fora do SL, por onde anda Anelito de Oliveira e por que esse silêncio acerca de seu nome?

Ando sozinho, assim como anda todo aquele que pensa neste momento, ando por todo e nenhum lugar geográfico como resultado natural de uma postura digna, que é aquela não pode ser outra que ousa dizer não, que se permite discordar do Poder. Depois que disse não ao projeto do atual governo de Minas Gerais, encaminhado pelo Secretário de Cultura Luiz Roberto Nascimento e Silva, de destituição do Suplemento do lugar conquistado ao longo de três décadas, decidi sair da cena cultural belorizontina e andar por outros lugares. Fiquei, como não poderia deixar de ficar, pasmado diante da hipocrisia enorme que caracteriza as relações culturais na capital mineira, mesmo sabendo, claro, que isso não é privilégio só dessa capital. Todavia, em outras capitais não se vê a aceitação pura e simples, pelo meio cultural, da elevação deum nome estranho a esse meio à condição de Secretário de Estado da Cultura. E o que é pior: um nome estranho que chega destruindo aquilo que buscamos sim, não posso negar nem admito que se negue minha participação nessa história construir ao longo de tantos anos. Ninguém desse meio cultural disse nada a respeito de eu ter sido obrigado a me demitir, ninguém se posicionou, pairou um silêncio enorme sobre o fato apenas notícias precárias, imprecisas. O Suplemento ficou meses sem circular - e ninguém disse nada, numa legítima demonstração de medo, ou apenas de educação mineira, enfim, prefiro entender como demonstração de conivência com um Secretário inconseqüente. Explica-se esse silêncio, sem dúvida, pelo fato de que grande parte dos partícipes do meio cultural artistas, críticos, jornalistas, professores universitários etc émesquinha a ponto de achar que se dissesse alguma coisa estaria apenas contribuindo para a minha continuidade no Poder. Que poder?! Pensei e realizei tudo - e sobretudo o Suplemento como contrapoder, como linguagem diluidora do Poder. Poucos querem entender isso.

3) E o Performer Anelito de Oliveira, o que é encenar Arthur Rimbaud e Cruz e Sousa?

Antes de mais nada, são poetas com quem dialogo freqüentemente, nos quais intercedo, à maneira deleuziana, programaticamente, assim como Rilke, Lezama, Valéry, San Juan de la Cruz, Octavio Paz, Baudelaire, Mallarmé, Sáde Miranda, Lorca e tantos, tantos outros. No momento, estou compenetrado na escrita de uma tese de doutoramento sobre Cruz e Sousa, um trabalho que constitui, na verdade, o ponto culminante de uma relação textual que completa dez anos em 2005. Relação sincera, feita de altos e baixos, de acertos e erros, de sucessos e fracassos, a partir de 1995, quando aludi a Cruz num texto demasiadamente genérico intitulado Limite do negro. Externo ali uma leitura que hoje entendo como equivocada sobre o simbolista, e é uma luta pelo desfazimento desse equívoco, ou aprofundamento desse equívoco, que move minha tese sobre ele. Claro que num artigo só é possível mesmo lançar dados ao léu, considerações urgentes que, no território ensaístico, podem ser tensionadas motivo pelo que qual entendo o que digo ali, e discordar de mim mesmo implicou um mergulho intenso no universo sousiano. Quanto a Rimbaud, devo lembrar que, antes de empreender minha versão vocal de Une saison en enfer, já tinha escrito sobre sua obra em relação com a de Baudelaire num ensaio de 96 intitulado A despedida da Europa, ainda inédito. Tanto a performance AfroRimbaudelia, sobre saison, quanto Desmarcado / impressões extemporâneas, que coloca Cruz e Sousa em diálogo com autores que o antecederam e sucederam nas práticas culturais do Ocidente, foram meios de que lancei mão para despertar o interesse das pessoas não só para os dois poetas, mas para o poeta-em-si que eles acabam por atualizar, o poeta como já não se tem sido: o estranho, o radicalmente outro, o intransigente.

4) Anos 90, Brasil, poesia contemporânea, o que você tem a falar sobre as muitas vozes híbridas?

Tantas vezes já falei sobre essa cena, mas certamente ainda tenho o que falar, ou re-falar, falar de novo sem me repetir literalmente. Tentei abordar essa poesia como refratária à desarmonia que caracteriza a sociedade brasileira (ensaio Contestação da harmonia,1997). Tentei abordá-la, numa seqüência naturalmente lógica, como sonegação da experiência material (ensaio A sonegação da experiência,1998). E também tentei abordá-la como espaço em que se confundem elementos que definem o poeta (o libertador), o político (o negociador) e o polícia (o repressor) conferência Poetas, políticos e polícias, proferida no Congresso da Universidade Federal do Espírito Santo, dezembro de 2001. Meu ponto de vista, como se pode ver, radica na esfera social, não apenas na literária, mas não se trata de uma radicação de base sociologizante, não se trata de enxergar a literatura como algo decorrente da realidade, entendimento que, como se sabe, sequer tinha o próprio Marx. Trata-se de enxergar a literatura, bem como a arte em geral, numa linha benjaminiana, como algo que se dáinevitavelmente em relação com a realidade experienciada socialmente. Falar de relação não é naturalmente atestar qualquer submissão, postular hierarquizações, mas encontro, uma cena do Eu-Tu, para lembrar Buber, como princípio de tensionamentos, complexidades. Entendo que isso é exatamente o que a poesia dos anos 90, precisamente sua faceta mais hegemônica, evita: relação enquanto encontro, e este enquanto evento tenso, agonístico, insuportável. A relação, por isso mesmo, é sempre um evento de vida, enquanto a não-relação, como queria Lévinas ainda há pouco evocado por Derrida, é a morte. Essa poesia, portanto, ao evitar a relação, evita a vida e adere à morte, é uma poesia a hegemônica apenas, já que há Eucanaã Ferraz, Jussara Salazar, Fernando Paixão e outros que acabam por comprometer essa questão cronológica que nos convida a deixar de existir. Ultimamente, venho procurando nessa própria poesia que se dá a ler elementos que contradizem aquilo que ela parece ser, sua aparência, sem que constituam objetivamente sua essência. Antes de tudo, essa procura é demonstração, para mim mesmo, de que não se trata de nomes, que minha questão não é pessoal. Assim, tenho visto algo de relação, alguma vontade de relação, nos últimos trabalhos dos aclamados Carlito Azevedo e Régis Bonvicino, um comportamento de linguagem que ameaça corroer o pressuposto de auto-suficiência da linguagem, pressuposto desde sempre insustentável, para mim, na esfera da arte.

5) Você mesmo chegou a falar que o poeta produz um livro porque não consegue fecundar um lírio, que metáfora é esta?

Obrigado pela lembrança. Meu intuito ao deixar emergir essa fala metafórica, durante um café cultural público ao relento no Palácio das Artes numa noite de 2003, foi chamar a atenção para a dicotomia entre natureza e indústria, entre naturalidade e artificialidade, para lembrar Max Bense. Também quis chamar atenção, agora próximo a Bloom, que o grande rival do poeta, o maior de todos, éDeus, o criador absoluto, em face de quem o poeta se afigura um Lúcifer, o ex-anjo sagrado, agora anjo demonizado. Na verdade, o grande desejo do poeta, o desejo que o define como poeta, é de se colocar no lugar do criador, não de apenas mais uma criatura, e fazer algo realmente original, de trazer à tona o completamente inusitado, o-jamais-visto, um lírio, por exemplo. Entretanto, esse desejo não é passível de realização, estando o poeta fadado a apenas realizar cópias de um original já pré-estabelecido, a re-presentar aquilo que já foi apresentado pelo Criador, o próprio poeta é cópia, não no sentido de cloneobviamente, mas de segundo acontecimento (événement), de segundo caos, digamos, algo já cosmicamente formatado, um já-cosmos, um já-mundo. Disso deriva a angústia, não da influência literária específica, a grande angústia que caracteriza o poeta: a vontade de fazer um lírio em face da certeza de que se é limitado e só se pode fazer um livro, isto é, um produto, como outros. Não que se trate, evidentemente, de uma angústia peculiar ao poeta na modernidade ou na pós-modernidade, como quiserem (tais determinações dizem pouco), mas o fato é que neste tempo, depois de Novalis e Baudelaire, nosso tempo, o poeta sente com mais intensidade a impossibilidade de fazer algo natural,de fazer a poesia-em-si, não um mero artefato chamado livro. Sente com mais intensidade do que se sentia nos períodos clássicos, medieval e renascentista. Tal intensidade deriva, como se sabe, da consciência da cisão definitiva entre homem e natureza, do assassinato dos mitos, enfim, da morte de Deus e também de Nietzsche, do demasiadamente humano.

6) As duas últimas escolas públicas de poesia da Casa Grande, Concretismo e Geração Marginal, ainda produzem alunos CDF?

Sim e não. Sim, em relação ao grosso da produção poética brasileira, tanto de veteranos quanto de iniciantes, que insiste em usar poesia, sobretudo, como meio de chamar atenção para si mesmo. Concretices e marginalices acabam se lhes apresentando como recursos eficientes, ainda passíveis de chocar alguém, a despeito de datadas. Penso que a prevalência dessas maneiras poéticas só demonstra o quão difícil é atingir voz própria em poesia, o quão difícil é livrar-se das teorias-avós bebidas, para lembrar o velho e mal selvagem Mário de Andrade. Mas não. Em relação ao que realmente conta na poesia brasileira atual penso em poetas como Marcos Siscar e Sylvio Back, de quem acabo de receber o destemido Eurus, bem como Fábio Weintraub e o silenciado Antonio Fernando de Franceschi, em Moacir Amâncio e Janice Caiafa, Antonio Cícero e tantos outros, inclusive os citados acima, também penso em nomes como Maurício Vasconcelos, Maria Esther Maciel e Guilherme Mansur, em Minas Gerais -, nãovejo alunos cdfs do concretismo ou da poesia marginal, vejo poetas lutando para nascer enquanto tais e atormentados pela consciência de que é preciso inevitavelmente matar em si o já nascido, cometer um pecado capital. Sem dúvida que mesmo nisso que realmente conta nesta poesia, há muito de subserviência à idea, ao modelo, concretista, pelo simples fato de que não é possível partir do nada. Mas há uma vontade de chegar a algum lugar outro, e sólamento que essa vontade, na maioria dos casos, não seja uma vontade rimbaudiana de tornar-se outro.

7) Mestrado em Affonso Ávila pela UFMG e agora doutorando em Cruz e Sousa pela USP, paradoxos ou confluências?

Paradoxos. Porque pensar é enfrentar paradoxos. Paradoxal também pode ser a identificação de qualquer confluência entre os dois, compreensão tornada possível pelo próprio paradoxo que encerraria. De fato, ao decidir fazer uma tese de doutorado sobre Cruz e Sousa, minha intenção foi sair do presente imediato, mais próximo, em que Affonso Ávila e sua geração se encontram. Senti necessidade de compreender com mais agudeza o presente remoto, mais distante, que nos é oferecido como passado. Em temos históricos, um século não é nada. Quando o poeta mineiro em questão lançava seu Carta do solo, em 1961, livro que marca uma reviravolta no seu fazer poético, Andrade Muricy e outros tantos devotos lutavam pela comemoração do centenário de nascimento de Cruz e Sousa. No meu trabalho sobre Ávila, analiso sua poesia inaugural reunida nos livros O açude e Sonetos da descoberta , mas a analiso exatamente em função do impacto que me causaram livros como Carta do solo e Discurso da difamação do poeta, bem como Carta sobre a usura. Minha análise ali busca plasmar exatamente a cartada decisiva de um procedimento não apenas poético, mas estético, per-formador. Entendo que cada acontecimento estético, cada obra, tem suas próprias razões, que encontram-se na sua raiz e toda raiz é rizomática, para falar com Deleuze e Guattari, é um emaranhado. Entender essa raiz éa maneira pela qual nos tornamos realmente dignos desse acontecimento estético que se nos apresenta, é a maneira pela qual damos uma contrapartida inteligente ao artista. Quando me volto para Cruz e Sousa, estou buscando aquilo que é não só a raiz do procedimento do catarinense, mas de tudo que realmente há de mais significativo na poesia brasileira que se fez ao longo do século XX, incluindo-se a poesia de Affonso Ávila. Cruz e Sousa, para dizer de maneira que apraz a um país movido a rótulos, foi vanguardista na acepção forte da palavra, esteve inegavelmente à frente do seu tempo, foi radicalmente estranho, e, por isso mesmo, não foi seguido pelos vanguardistas do século XX. Poderia haver maior paradoxo? Os vanguardistas do século XX aproximaram-se, em termos nacionais, de autores como Machado de Assis, Olavo Bilac, Raimundo Corrêa, Sousândrade, Hernani Rosas, Pedro Kilkerry, Odorico Mendes, Marcelo Gama, José de Alencar etc. Autores importantes, sem dúvida, decisivos para a configuração da literatura brasileira, mas que não foram artistas nem homens intransigentes, movidos a uma idéia fixa de originalidade, como Cruz e Sousa. A intransigência de Cruz o levou à tragédia, à miséria, à morte, em menos de uma década, todo um sofrimento que ninguém quer para si. Minha questão, o que coloco em relevo na minha tese em construção, não é obviamente esta, pois penso que, por mais que se diga que não, sempre verão uma tal abordagem como despropositada, ressentida. Minha questão écompreender a raiz, a floração e o definhamento do acontecimento estético sousiano, com o que pretendo contribuir, na medida do possível, para uma reavaliação da poesia brasileira que veio depois dele. Por que o século XX se calou sobre Cruz e Sousa?, é a pergunta que não me sai da cabeça.

8) Poetas se elegem nas Antologias de Heloísa Buarque de Holanda, Cláudio Daniel e Frederico Barbosa, Assis Brasil, Olga Savary, você também publicou Fenda 16 poetas vivos, o que aproxima e distancia o caráter dessas Antologias?

Antologias são boas para quem nelas é incluído e melhor ainda para quem delas é excluído. Apenas aparentemente é uma dádiva participar de antologia; no fundo, é um castigo, uma redução a um determinado horizonte. Talvez essa redução não seja tão acentuada nas antologias citadas, uma vez que têm caráter mais panorâmico, pouco objetivo. Mas, sem dúvida, há uma redução. Entendo que Fenda 16 poetas vivos tenha querido se diferenciar das demais em função, sobretudo, de desejar reduzir menos os autores a determinado horizonte literário, já que é inevitável a redução (e esta aparece, por exemplo, no fato de que são todos autores mineiros). O que eu quis - e está pontuado no ensaio introdutório ao livro foi revelar aspectos que denotam naqueles autores um movimento em direção ao lugar de origem histórica, mais mítica até que cronológica. Não foi meu intuito oferecer um amplo painel da produção poética mineira atual, mas apenas um determinado número de autores. Não esteve comigo a preocupação de disponibilizar textos para a compreensão didática da literatura de um Estado. E de tudo isso deriva uma insubordinação que faz de Fendaalgo menos ou mais que uma antologia, apenas um livro coletivo.

9) Lama, seu único livro publicado até agora, por que essa fuga para os inéditos?

Na verdade, nunca quis ser o poeta de um livro só, um Augusto dos Anjos ou Cesário Verde, grandes admirações, mas também nunca quis ser o poeta de inúmeros livros descartáveis, que nada acrescentam. Desde os 17 anos, planejo publicar livros, escrevi tanto, desejei tanto, mas venho esbarrando em problemas reais pela vida afora e só consegui publicar um opúsculo produzido industrialmente em 2000, mesmo assim pela Orobó Edições. Antes, 1993, fiz circular uma edição artesanal, pela Ed. Xerox, de um poema chamado O nada se atira ao relento, que é o primeiro fragmento de um poema chamado Fragor. Tenho inúmeros trabalhos inéditos que me perturbam diariamente pelo fato de que gostaria que chegassem éditos até outras pessoas a quem eventualmente poderiam interessar. Mas não é fácil publicar poesia no Brasil quando não se é participante das muitas panelas, quando se é solitário, como no meu caso e de muitos outros autores. A única saída para publicação, na maioria das vezes, é financeira, a contratação dos serviços gráficos de uma editora-barriga-de-aluguel, mas, mesmo assim, é raro encontrar editores profissionais, competentes e compromissados com a divulgação do trabalho. Enfim, sempre quis e quero publicar, mas como?

10) Foi preciso a experiência nervosa da metrópole para produzir Três Festas / A Love Song As Monk?

Sim, crio a partir da experiência material, bruta, dilaceradora, monstruosa, da experiência de existir, que, evidentemente, não é fácil para mim, assim como não acredito que seja fácil para todo aquele imbuído de humanidade, de sensibilidade. Não é que eu tenha ido ao encontro desse sentido de experiência na metrópole apenas para escrever esse livro, bem como Lama e outros trabalhos em que se revela o mesmo transtorno metropolitano. Na verdade, essa experiência acaba por ser inerente à vida na metrópole e sua revelação acaba por se impor como elemento de dignidade poética do que se perfaz como poesia. Como essa experiência é freqüentemente sonegada pela poesia hegemônica atual, chegamos mesmo a relutar em revelá-la e creio que tal aspecto se ressalta em Três Festas / A Love Song As Monk: queremos fazer uma canção de amor, mas como falar de amor, ouvir amor, diante da realidade tão dura, tão desumana e desumanizadora, da metrópole? Esse trabalho tenta revelar a dificuldade de se alegrar, de sonhar, de amar, de ser feliz no mundo atual, que não éfeito só de metrópoles, mas que, sem dúvida, é marcado pelos males que assolam as grandes cidades. Mundo sem saída. Esta composição, como prefiro chamar este trabalho, tenta encontrar no jazz a imagem de uma forma que comporta elementos díspares sem, todavia, desdizer-se enquanto forma, restando apenas como conteúdo. Realmente, seria muito fácil apenas expor os dados da realidade pura e simplesmente, mas aí o que teríamos seria não mais que uma crônica dos dias que correm. Três festas é poesia, e épara se atestar enquanto tal que desce, no seu movimento mais longo, às raias do prosaísmo, onde mais ouve do que fala. Poesia como jazz, poesia à beira da não-poesia assim como o jazz é música à beira da não-música, poesia em face daquilo que a nega, poesia que se propõe também com o que a nega. Enfim, foi o modo que encontrei para externar esteticamente o experienciado por tantos sujeitos atualmente pelo mundo afora.

 



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04/11/2005