Wilson Martins
Prosa & Verso, 13.07.96
Drummond no revezamento das
gerações
Celebrado em 'Farewell' como um mestre do passado, o poeta está
sujeito ao parricídio dos seus sucessores. Livro póstumo prova que
qualidade não é obrigatoriamente sinônimo de renovação.
Na conhecida "Antologia poética"
(1962) de sua própria obra, Carlos Drummond de Andrade dividiu-a em
veios temáticos que iam do indivíduo a uma "visão, ou tentativa, da
existência", passando pela terra natal, a família, os amigos, o
choque social, o conhecimento amoroso, a própria poesia e os
exercícios lúdicos. Uma década depois, nas "Impurezas do branco",
escrevia que "as matérias deste livro são Comunicação Persona Viver
Amar Problematizar Morrer Divindade Quixotes Artistas Brasil Uma
Casa" assim mesmo, com maiúsculas e sem vírgulas segmentadoras,
sugerindo que tudo isso concorria, "ao mesmo tempo", para
configurá-lo organicamente como poeta.
São temas que se reencontram, como é
natural, em "Farewell" (Rio: Record, 1996), volume de originais
inéditos, escreve Humberto Werneck no prefácio, "a que veio
incorporar-se o poema 'Arte em exposição', inicialmente destinado a
constituir livro autônomo", tudo acondicionado numa pasta de folhas
datilografadas. No plano da qualidade, podemos imaginá-los
disperses, sem incongruência, pela obra anterior, o que implica, é
evidente, uma clara repetitividade ou, pelo menos, inevitável
redundância. Àquela altura da vida, não seria de esperar, nem mesmo
de desejar, que Drummond se renovasse ou renovasse a poesia
brasileira. Lê-lo agora é como relê-lo, e isso pode causar alguma
insatisfação, aliás injusta, porque, afinal de contas, esta é ainda
uma das boas vindimas drummonianas.
Aqui está o "conhecimento amoroso",
agora imerso nas consciência senil do pecado ("A carne envilecida'),
mas também em memórias pungentes dos amores que se perderam no
passado irrecuperável ("A grande dor das cousas que passaram",
"Enumeração"), versos em que evocava versos de Camões, assim como
Camões se havia identificado com Dante (Nessun maggior dolore ... ).
Nessa linha, o poema mais belo do volume é a meditação sobre o
conhecimento amoroso transformado no desespero dos amores extintos
sob o signo do Tempo, valor supremo da criação poética ("Aparição
amorosa"):
"Doce fantasma, por que me visitas/(
... )/Tua visita ardente me consola?/Tua visita ardente me
desola./Tua visita, apenas uma esmola".
Outros fantasmas esvoaçam por essas
páginas, a começar pelo do próprio poeta ("A casa do tempo perdido",
"Imagem, terra, memória'), como nos versos finais: "0 tempo perdido
certamente não existe./É o casarão vazio e condenado". O passado é,
de fato, um casarão vazio, mas, ainda assim, repleto das "vozes
queridas que silenciaram", como, no soneto de Verlaine chamado,
precisamente, "Sonho familiar".
Desligar-se da família e do casarão
correspondeu a desenraizar-se de sua natureza profunda e, por isso,
sucumbindo às tentações o mundo, o poeta acabou por viver "A ilusão
do migrante': 'Quando vim da minha terra,/ se é que vim da minha
terra/ (não estou morto por lá?)/( ... )/ Ai de mim, nunca saí./ Lá
estou eu, enterrado/ por baixo de falas mansas,/ por baixo de negras
sombras, /por baixo de lavras de ouro,/ por baixo de gerações,/ por
baixo, eu sei, de mim mesmo (... )"
Nem tudo, porém, se passa nessa
atmosfera sufocante de nostalgia e tristeza. Mesmo o conhecimento
amoroso pode despertar as harmônicas dos exercícios lúdicos, como na
"Canção flautim", composta sobre essa rima saltitante e alegre: "Se
gostasses de mim/- mirandolim -/eu morria. Morria?/de gozo no
sem-fim."
A "própria poesia" está ligada, é
inevitável, à ilusão evanescente da Glória e aos caprichos
inexplicáveis da Fortuna (Duração"): "Fortuna, ó Glória, se
evapora,/ e a glória se esvanesce, Glória./(...)/ Há de restar,
Glória - ossatura/desfeita embora em linha espúria -/de modo,
Glória, que a criatura,/morta, de amor ostente a fúria."
O indivíduo era a primeira das
"características, preocupações e tendências' que lhe condicionavam a
poesia, mas, aqui, cada momento, por um livro seminal: "A rosa do
povo', em 1945, "Claro enigma", em 1951, e "Amar se aprende amando",
em 1985. Como ele mesmo acentuava com uma epígrafe de Valéry, o
trajeto levou-os dos acontecimentos efêmeros (como a guerra e as
ideologias) para os acontecimentos entediantes (as ideologias e as
guerras) dai para o acontecimento único que foi a liberação
emocional, de fato, no indivíduo em sua última metamorfose a
transformação do conhecimento amoroso em exercício erótico, outra
face dos exercícios lúdicos, com a redescoberta do corpo superando
as censuras mentais e morais da sociedade e da educação.
Não era, realmente, uma novidade na
sua obra, mas foi preciso o jogo conjugado de dois fatores para que
se decidisse ao salto definitivo, enfrentando o desafio da Glória,
que o colocava acima do bem e do mal, predispondo-o à complacência
de uma época liberada, e o do envelhecimento orgânico, tornando mais
urgentes todas as impulsões fisiológicas: "Claro que o corpo não é
feito só para sofrer, / mas para sofrer e gozar" (o poema "Missão do
corpo").
Condicionando tudo isso, o sentimento
obscuro de ter tido sobre o berço não a Fada Benfazeja das
historietas infantis, mas o Anjo Torto que o condenava a ser o
desajeitado sem remissão pela vida afora (0 malvindo"): "Vive dando
cabeçada./Navegou mares errados,/ perdeu tudo que não tinha,/ Amou a
mulher difícil./ Este, o triste cavaleiro/ de tristíssima figura
(....
Aí está o Quixote incluído em sua
temática sentimental, figura que falta, por inesperado, na galeria
mussorgskiana dos seus "quadros de uma exposição". Lá estão,
entretanto, alguns paradimágticos (Santa Teresa com seu orgasmo
(sic), Miró, Goya), enquanto, de seu lado, ele parece reconhecer-se
no "Auto-retrato" de Soutine: "Sou eu não sou eu?/Sou eu ou sou
você?/ Sou eu ou sou ninguém,/ e ninguém me retrata?"
I'm Nobody!", escrevia também Emily
Dickinson: "Who are you? Are yoy Nobody too?" "Meu nome é Legião,
dizia, no entanto, o Diabo, o mesmo que presidia aos pecaminosos
rituais eróticos de Drummond ("A carne envilecida"): "A carne
encanecida chama o Diabo/e pede-lhe consolo. O Diabo atende/sob as
mil formas de êxtase transido./Volta a carne a sorrir, no vão
Intento/de sentir outra vez o que era graça/de amar em flor e em
fluida beatitude./Mas os dons infernais são novo agravo/à envilecida
carne sem defesa,/e nada se resolve, e o aroma espalha-se/de flores
calcinadas e de horror".
Situado, já agora, entre os mestres do
passado, Drummond, destina-se a sofrer o parricídio ritual com que
as gerações artísticas se afirmam em face dos antecessores. É o que
fazia Mário Faustino, Acusador Público do Tribunal Revolucionário,
desde 1956, com clara precipitação. A literatura parecia-lhe uma
cidade morta, povoada pelos fantasmas de um mundo desaparecido: "...
há o sr. Carlos Drummond de Andrade... há o sr. João Cabral de Meio
Neto... há o sr. Manuel Bandeira... há a sra. Cecilia Meirelles (...
)."
O livro chamava-se
"Poesia-experiência", e isso diz tudo, no momento em que o
Concretismo e a Geração 45 proclamavam o fim definitivo da era
modernista, aliás encerrada com o falecimento de Mário de Andrade em
1945 - o ano da "Rosa do Povo".
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