Wilson Martins
Prosa & Verso, O Globo
A sombra inteligente de
Nelson Rodrigues
Tendo sido um poderoso fator de
modernização do teatro brasileiro, o primeiro paradoxo na vida de
Ziembinski está em que renovou mais o espetáculo teatral do que
Nelson Rodrigues recriou a literatura correspondente (Yan Michalski.
"Ziembinski e o teatro brasileiro". São Paulo/Rio: Hucitec/Funarte,
1995). Os dois nomes estão inseparavelmente ligados, ainda que de
forma contraditória: os triunfos posteriores de um e de outro foram
sempre implicitamente medidos pelo estalão de "Vestido de noiva"
(espetáculo de 1943), fantasma ominoso que pairou para sempre em
suas vidas e em certo sentido lhes determinou o sentido.
Nelson Rodrigues percebia muito bem
que "Vestido de noiva" era obra de Ziembinski, para sempre associada
ao seu nome, mais que as dele próprio: são significativas e
psicanaliticamente reveladoras de rancorosa hostilidade as suas
declarações contra os que denominava de "diretores inteligentes", no
que, além do natural ressentimento pelo segundo lugar que lhe foi
conferido em toda essa história, havia uma dose imensa, embora
explicável e compreensível, de ingratidão, porque, afinal de contas,
foram os "diretores inteligentes" que sempre se esforçaram por
recuperar-lhe as peças, conferindo-lhes a qualidade artística que
lhes faltava e continuaram a faltar cada vez mais nas obras
subseqüentes, se a rigor excluirmos as duas ou três em que os
"diretores inteligentes" encontraram o texto teatral de que
necessitavam.
Tão significativo que, ao organizar a
antologia desse teatro, espécie de magnum opus que as condensasse e
simbolizasse todas, Antunes Filho ("Nelson Rodrigues e o eterno
retorno", 1981) começasse pelo projeto de sucessivas e implacáveis
eliminações. Em outras palavras, o teatro de Nelson Rodrigues ganha
qualidade na exata medida em que lhe tirarmos o que tem em excesso
de fabricação mecânica.
O curioso é que Ziembinski só pôde
renovar o teatro brasileiro por havê-lo encontrado numa idade
primitiva e rudimentar (depois da vigorosa florescência oitocentista)
e já então claramente desatualizado com o que se fazia no resto do
mundo. Renovou-o por ser um teatro obsoleto, renovando-o de tal
maneira que lhe fixou os parâmetros por cerca de vinte anos: o TBC e
companhias posteriores que dele se destacaram por cissiparidade nele
encontraram a sugestão do que devia ser feito e passaram a fazer. A
contratação de numerosos diretores estrangeiros inspirou-se no seu
exemplo, tudo isso instituindo uma das épocas mais brilhantes, se
não a mais brilhante, do nosso teatro.
Em perspectivas históricas mais
largas, ele e João Caetano ocupam os dois momentos germinais de uma
arte que se desenvolve, e não só no Brasil, pelo sistema
alternativo, mas complementar, das crises criadoras e crises
esterilizantes. Por isso mesmo, enquanto o nosso teatro se renovava
pelo trabalho de Ziembinski, o teatro universal se renovava sem
Ziembinski e até contra ele, sendo demonstrativo, a esse propósito,
o seu reencontro com o teatro polonês nos anos 60. Ele próprio,
vanguardista no Brasil, observou R. Szydlowski, aqui citado, sendo,
embora, um excelente diretor, utilizava "a técnica expressionista,
que conhecemos das realizações do teatro polonês dos anos 30." Ou
Erwin Axer: "durante muitos anos ele não acompanhou nem o teatro
europeu nem, segundo tudo indica, o americano. Permaneceu exatamente
no mesmo lugar em que estava em 1939, ou quem sabe até caminhou um
pouco para trás."
Na vida intelectual, "ficar no mesmo
lugar" é caminhar para trás e, no caso, tendo a obscura consciência
do inexorável, Ziembinski endureceu a sua rejeição das "novidades",
seja ao ignorá-las, no sentido forte da palavra, seja, mais tarde,
abandonando o teatro, como sempre acontece, em sucessivas
experiências malogradas. Os seus sortilégios estavam esgotados. Em
desafio repleto de perigos, "Vestido de noiva" foi reencenada em
1976, com o propósito, dizia ele, de "verificar até onde esse
espetáculo da década de 40 permanece vivo". Nas palavras de Yan
Michalski, "o resultado situou-se mais como curiosidade histórica do
que real impacto teatral", provocando "invencível sensação de tédio
e monotonia." E pondo em evidência, por inesperado, o que a euforia
de 1943 não havia permitido perceber, isto é, a pobreza literária do
texto (refiro-me, claro está, à literatura dramática). Em 1943 como
três décadas depois, tudo não passava "de uma formidável exibição de
técnica, perfeição formal e rebuscamento esteticista."
A partir de 1960, conclui Michalski,
Ziembinski "perdeu a sintonia com o espírito do seu tempo. Homem por
natureza apolítico, permaneceu à margem da revolução do teatro
nacionalista liderada pelo Arena; e continuaria à margem das
motivações políticas da revolução formal e existencial liderada pelo
Oficina." Passava-se de um teatro formalista e estetizante para o
teatro de conteúdo e propósitos ideológicos, mais interessado nas
peripércias do tempo que passa do que na humanidade do tempo que
dura. Nesse período, "O rei da vela" e Oswald de Andrade
desempenharam o papel histórico e simbólico que havia cabido aos
Comediantes e a "Vestido de noiva" na década de 40, com mais esta
vingança póstuma de Ziembinski: o Oficina retomava, pensando ser uma
novidade revolucionária, as técnicas expressionistas que já eram
arcaicas ao tempo dos Comediantes e pelas quais Ziembinski foi tão
censurado que chegou a renegá-las. O teatro político e ideológico
tem no expressionismo o seu idioma natural, mesmo quando o excesso
de expressionismo o identifica com a farsa inconseqüente, tal como
acontecia nas montagens históricas do "Rei da vela".
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