Wilson Martins
Prosa & Verso, O Globo
O grande confessor da
República das Letras
Confessionário certamente por baixo,
João Etienne Filho ("Cartas do irmão maior". Belo Horizonte: Mazza/
Belas Artes Liberdade, 1994) calcula em cerca de 20 os volumes da
epistolografia andradina publicados pelos destinatários, aos quais
virão juntar-se dentro em pouco as sete mil cartas da
correspondência passiva, já agora liberada das restrições
testamentárias (mas não das legais, risco a correr pelos editores,
pois será ridículo e inconseqüente imprimi-las com os discretos
asteriscos de estilo). Quanto aos palavrões, andam incorporados ao
vocabulário canônico das letras e das artes, tornando inoperante o
cuidado preventivo que o próprio Mário de Andrade dizia tomar, ao
multiplicá-los generosamente pelos textos, com o propósito de
impedir-lhes a divulgação futura. Outros tempos, outros costumes!
Na República das Letras, ele exerceu
por duas décadas as funções de Grande Confessor Apostólico in
partibus infidelius. Trata-se, pois, de reordenar de forma coerente
e sistemática o material disperso, em ordem cronológica e não por
destinatários (o que invalidaria, justamente, a simultaneidade
histórica que se procura). Caberia evitar, por desnecessários e
descabidos, os requintes paleográficos em que se comprazem tanto os
andradinos do IEB-USP quanto Marcos Antônio de Moraes na edição da
correspondência ativa e passiva Mário de Andrade/ Murilo Rubião
("Mário e o pirotécnico aprendiz". Belo Horizonte/ São Paulo: UFMG/
IEB-USP, 1995). Não havendo dúvida quanto à autoria, aos
destinatários e às datas, não se justifica tratar originais modernos
como se fossem manuscritos antigos, indicando a máquina em que foram
datilografados, a milimetragem exata das folhas, as marcas de fundo
no papel e a cor da tinta usada nas assinaturas.
Tais identificações, pertencendo ao
domínio da falsa erudição, nada acrescentam nem ao conhecimento, nem
à história literária, nem à biografia dos autores: não há em tudo
isso nenhuma significação anagógica, sendo indiferente que as
anotações marginais tenham sido feitas com lápis vermelho ou Faber n
2. Se os paleógrafos podem usar, por exemplo, as marcas d’água para
datar os manuscritos ou sua origem, o cuidado torna-se excessivo
quando se compram na papelaria da esquina as resmas de fabricação
industrial.
No caso, a edição crítica pode se
limitar com vantagem a identificar as alusões pessoais e factuais,
além, bem entendido, das referências cruzadas e índices analíticos,
que não excluem o volume final com a consolidação dos índices
parciais. Varia grandemente o interesse das coletâneas até agora
publicadas, tanto no que se refere ao conteúdo quanto à importância
maior ou menor dos destinatários.
Nessa estante, as cartas a Manuel
Bandeira ocupam lugar privilegiado pela abundância biográfica,
bibliográfica e de história literária. Sob esse aspecto, pode-se
pensar que na correspondência trocada com Álvaro Lins e Alceu
Amoroso Lima é sensível o distanciamento afetivo e psicológico entre
os autores, para nada dizer da falta de espontaneidade de coração:
são "cartas profissionais" entre profissionais, não epístolas
paulinas de direção espiritual enviadas aos catecúmenos de Belo
Horizonte.
Entre eles, João Etienne Filho parece
ter sido algo marginal, ou que os outros marginalizavam, da mesma
forma por que Murilo Rubião, com seus aflitivos complexos de
impotência criadora, era apenas o visitante ocasional. Nesse grupo,
Otto Lara Resende foi o filho bem amado, o único que soube
afagar-lhe a vaidade com um poema de fervorosa adoração. Foi a
personalidade que mais o impressionou:
"(...) Vocês formam um grupo
extraordinário dentre os grupos de moços que conheço no Brasil (...)
E você é a paz (...) a lembrança mais grata e mais profunda dentre
os conhecimentos que fiz desta vez em Belo Horizonte (...) Eu já
vinha distinguindo você dentro do grupo (...) como a inteligência
mais profunda do grupo (...). Eu me revivia em você".
Perito em amizades amorosas, Mário de
Andrade percebeu que, assim singularizando Otto Lara Resende, o
texto poderia desencadear ciumeiras assassinas caso chegasse ao
conhecimento dos outros amigos. Era preciso recorrer às táticas
clássicas:
"E também considero outra coisa: lhe
peço mostrar a carta aos que ela interessa de perto, ao Hélio, ao
Paulo, ao Murilo. Fica mais leal assim e assumo a responsabilidde do
que penso e sinto nela".
Nem por isso as feridas teriam sido
menos profundas e incuráveis, embora subconscientemente recalcadas.
A Mário de Andrade tudo foi perdoado porque muito amou, o que não o
impedia de ocasionalmente mostrar inacreditável insensibilidade para
com a sensibilidade alheia.
É aspecto ainda a estudar na sua
personalidade. Mestre imperioso e até esterilizador a julgar pela
história dos seus assistentes mais chegados, reagia com ultrajada
hostilidade quando percebia nos discípulos qualquer vislumbre de
libertação ou independência, como se pode ler na correspondência com
Anita Malfatti e Oneyda Alvarenga, aliás falecida numa enfermaria de
indigentes em São Paulo.
Começando como consultor literário,
Mário de Andrade logo se transformava em diretor de consciência,
orientando os pupilos até em problemas de ordem íntima, como no caso
em que Fernando Sabino confidenciou-lhe as próprias hesitações
matrimoniais ("Cartas a um jovem escritor", incorporadas à "Obra
reunida", volume III). No estilo consagrado dos consultórios
sentimentais, Mário de Andrade (que se recusou a servir como
padrinho), examinou os prós e contras, acentuando, entretanto,
tendenciosamente, a incompatibilidade entre o casamento "burguês" e
as exigências da carreira literária.
De minha parte, vejo nisso o vírus
infeccioso que, a longo prazo, acabaria pro desfazer o casamento, o
que Fernando Sabino, respondendo subliminalmente às advertências,
celebrou como uma libertação psicológica.
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