Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, O Globo



Retratos da elite com cores ideológicas

 


 

Num livro de grande originalidade, competência e inteligência interpretativa, para o qual eu só desejaria um título mais feliz ("Imagens negociadas - Retratos da elite brasileira (1920-40)". São Paulo: Companhia das Letras, 1961), Sérgio Miceli propõe a leitura sociológica e mental dessa época da vida nacional: de um lado, o mecenato praticado por seus vultos representativos e, de outro, os artistas que com ele se beneficiaram, fixando-lhes a personalidade pública e ideológica, mais do que os traços fisionômicos por assim dizer sinaléticos.

O propósito era tomar os retratos naquele período pintados por Portinari e, subsidiariamente, outros artistas conhecidos (Ismael Nery, Vicente do Rego Monteiro ou Segall) e analisá-los "como um repertório de informações indispensável para a compreensão dos projetos concorrentes de construção de uma imagem pública condizente com os níveis de investimento e consagração, bem como as orientações artísticas e político-doutrinárias dos intelectuais e artistas do período." Trata-se, pois, de um "tratamento eminentemente sociológico dos retratos", evidenciando a persona, mais do que a pessoa, dos retratados, tal como se viam e desejavam ser vistos, tal como Portinari e os outros complacentemente se esforçavam por vê-los.

A regra do gênero é, como se sabe, o retrato ideológico, não só no Brasil e naquele momento, mas em todas as épocas e países: o pintor não propõe a imagem física de Luís XIV ou Catarina da Rússia, do Papa Paulo III ou do general Napoleão, mas a figura abstrata e idealizada do rei, do grande sacerdote, do herói invencível. A leitura das análises de Sérgio Miceli sugere interessantes observações no plano mais largo da história intelectual, social e política do país em que se inscreviam tanto os artistas quanto os seus benfeitores (sem excluir o poder público no caso do Estado Novo).

Assim, por exemplo, verifica-se que Portinari, ao contrário da sua reputação convencional como artista de vanguarda, é um pintor acadêmico e rotineiro, mesmo na fase das pinturas "modernistas"; ele, como, de resto, os artistas que então se tornaram conhecidos ou famosos (Niemeyer, Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Tarsila), praticavam o academicismo da arte moderna, qualquer coisa como a arte moderna das famílias. Todos faziam-se passar por ideologicamente esquerdistas e nisso respondiam por instinto ou deliberação aos postulados academicistas do realismo socialista, mais o desejo de agradar aos meios burgueses com o escândalo moderado. Assim se explica a aparente incongruência de serem de esquerda os artistas oficiais do Estado Novo, regime tido por direitista.

Regime que, aos olhos da opinião, era uma forma de socialismo cristão, oposto ao socialismo ateu da União Soviética. As polarizações ideológicas do momento contracenavam a "Rerum novarum " com o "Manifesto comunista", Leão XIII com Karl Marx, Getúlio Vargas com Luís Carlos Prestes, Lenin e Azevedo Amaral (se não Plínio Salgado, até 1938), encarados antes como irmãos inimigos do que realmente como adversários inconciliáveis.

Pelos menos para os espíritos realistas, como Getúlio Vargas e Luís Carlos Prestes, eram antinomias ilusórias. Basta acompanhar a história alternada das suas alianças e rompimentos: o segundo, como se sabe, recusou o comando da Revolução de 1930, oferecido pelo primeiro, que, entretanto, o mandou prender no momento próprio e preso conservou-o até 1945, quando Prestes, por sua vez, comandou o movimento da Constituinte com Getúlio. Que, em troca, mandou soltá-lo: as duas partes cumpriram o que haviam combinado. A realidade profunda é mais complexa e maquiavélica do que fazem crer as simplificaçòes polêmicas. Em outras palavras, é preciso aceitar as contradições aparentes para compreender as harmonias reais.

Desde 1926, o crítico Flexa Ribeiro, aqui citado, assinalava o "tradicionalismo" de Portinari, suas "resistências diante dos novos desafios postos pela pintura moderna." Já nos anos 40, observa Sérgio Miceli, o poeta Manuel Bandeira terá sido o primeiro a enxergar nos seus dois retratos portinarescos "o quanto tinham de artifício e retoque, ou melhor, o quanto possuíam de um certo engodo visual, recurso que deve ter lhe parecido tão decisivo numa etapa militante de fabricação de sua reputação literária mas cujo tônico imagético tendia a esmaecer uma vez superadas as circunstâncias envolvendo sua negociação e fatura."

Em matéria de retratos "ideológicos" ou simbólicos, os exemplos mais ilustrativos estão na série Jorge Amado como "jovem militante de esquerda". O de 1934 foi pintado num momento "turbulento de arranque e dupla afirmação, seja como intelectual, seja como militante político de esquerda", acentuando-se, de retrato para retrato, a representação simbólica. O bigode, por exemplo, "constitui um traço tão decisivo no plano visual porque será a partir dele que todos os futuros retratistas buscarão organizar as demais feições de sua imagem pública como escritor e militante comunista".

Onze anos mais tarde, Pancetti completa a imagem do verdadeiro (e perigoso...) revolucionário acrescentando-lhe o capotão escuro, talvez mais apropriado para as estepes soviéticas, mas peça de vestuário que o identificava com os heróis do partido: "Jorge Amado aparece literalmente ‘fantasiado’ de revolucionário comunista, envergando um casaco cinza de militar em campanha, estando a figura como que murada pelos elementos arquitetônicos sugeridos ao fundo, e o rosto tendo sido composto novamente em torno dos bigodes e sobrancelhas negros espessos."

Finalmente, em 1941, o retrato executado por Scliar "leva ao paroxismo a construção do "santinho" imaculado de Amado como corajoso militante de esquerda, enfiado num casaco em estilo de farda cossaca, abotoado e de gola fechada, compondo um posicionamento severo de figura erecta (...)". Quem não reconheceria nessa imagem o clonezinho bem sucedido do genial Pai dos Povos?

 

 

 

 

 

11/08/2005