Wilson Martins
Prosa & Verso, O Globo
A uniformidade dos
paradoxos cabralinos
Escrevendo em linguagem referencial, e
não metafórica, João Cabral de Melo Neto é poeta de facil
compreensão, instigando, por um lado, a leitura parafrástica na qual
os críticos repetem em prosa, a narrativa biográfica em que procuram
instintivamente respostas para as perguntas implícitas a que os
textos não sabem responder. São poemas em uma dimensão, como os
antigos desenhos egípcios ou a pintura bizantina, em que tudo está
no primeiro plano, sem linhas de fuga nem efeitos de perspectiva:
vemos as figuras e as paisagens, mas, ao contrário do que pensava
Amiel, a paisagem não é, nessa poesia, um estado de alma.
Palavra, esta última, e a coisa que
representa, encaradas com horror pelo poeta: José Castello viu-o com
agudeza quando o qualificou de "Homem sem alma" (Rio: Rocco, 1996).
É, diz ele, "um dos mais importantes poetas da língua portuguesa no
século XX", se não pode outros motivos, acrescento eu, pelos prêmios
que recebeu e pelo número de estudos que lhe foram consagrados,
situação tautológica em que a importância, justificando os estudos e
prêmios, os prêmios e estudos confirmam a importância. Nesse quadro,
os "Cadernos de literatura brasileira" sagraram-no, na edição de
lançamento (março de 1996) como "a pedra de toque da poesia
brasileira", imagem ao mesmo tempo mineral (derivada de sua natureza
de poeta) e ligada à joalheira, o que não é menos mineral mas têm
conotações irônicas, conhecendo-se a sua revulsão física pelo
parnasianismo, pois João Cabral, à primeira vista, está longe de
"imitar o ourives quando escreve".
Mas, estará mesmo? Sua busca obsessiva
da perfeição de fatura coloca-o, ao contrário, na mesma bancada
oficinal dos poetas que despreza, pois eles também rejeitavam a
facilidade e os automatismos da "inspiração" em favor do rigor
técnico e da perfeição lingüística. Por escandaloso e até ofensivo
que pareça, João Cabral é um parnasiano da poesia moderna, sendo
inegavelmente parnasiana a sua "atitude" diante da página em branco.
Quanto a isso, ele encara erradamente o parnasianismo pelos
lugares-comuns depreciativos e simplistas que correm como verdades
aceitas.
Enquanto "pedra de toque" da poesia
brasileira, isto é, como o padrão de qualidade pelo qual se deve
medi-la e julgá-la, sua obra propõe um dilema inevitável: ou é uma
idéia subjetiva e opinativa, sem nenhum valor crítico, ou ignora que
ela se situa deliberadamente por oposição ao corpus literário com
que se defronta. "É negando a poesia que Cabral se faz poeta",
escreve José Castello, confirmando-lhe, aliás, a reivindicação de
ser "o contário do que em geral se chama poeta.". Isso, porque sua
concepção de poeta é curiosamente idiossincrásica: "A palavra me dá
arrepios. Ela traz uma conotação de sujeito romântico, sonhador,
irresponsável e até homossexual." Ele gosta das imagens fortes,
inclusive na qualificação dessa "outra poesia" com adjetivos
coproláticos.
Esse é o paradoxo central de sua obra
e personalidade: a sua é uma "poética antilírica e até antipoética."
Ele escreve "para ocultar um impasse", diz José Castello, o impasse
em que se meteu com essa visão literária ou em que foi metido por um
temperamento fora de série (fora da série brasileira). Poeta
insular, escreve a poesia anti-incoativa por excelência. Desde cedo,
isto é, desde os tempos de colégio, ele manifestou "verdadeiro
horror à poesia" tal como a encontrava nas antologias didáticas.
Ora, essa era a poesia brasileira representada pelo autores
paradigmáticos, de forma que, então como hoje, João Cabral
negava-lhe legitimidade ou autenticidade a partir das suas próprias
singularidades de temperamento. Em outras palavras, a poesia
brasileira estava e, a julgar pelo jaspe de sua oficina, continua
"errada" ou, pelo menos, de duvidoso quilate.
Trata-se, como é sabido, de um poeta
cereberal, absolutamente infenso à sensibilidade, mesmo a
sensibilidade artística. O máximo que se permite é o que os
franceses chamariam de amour de tête, sem ofensa para o poeta
martirizado a vida inteira pela cefalalgia, afinal curada, numa
espécie de licença poética cirúrgica, pelo corte do nervo vago (sem
trocadilho). Poeta de gama reduzida, tentado, diz José Castello,
"pelas facilidades do automático e da repetição que a experiência
confere", irrita-se, entretanto, contra os críticos que vivem
repetindo as mesmas coisas sobre uma poesia que, tudo bem
considerado, diz sempre as mesmas coisas. Ele pensa que críticos
literários descobriram meia dúzia de clichês a respeito de sua
poesia, e que passam a vida repetindo esses lugares-comuns. ‘Isso
não acontece só comigo’, admite. Mas minha poesia é particularmente
vulnerável a esse tipo de esclerose de julgamento, porque é uma
poesia basicamente uniforme. Seria preciso sublinhar fortemente
estas últimas palavras, pois elas reconciliam os críticos com o seu
poeta.
No conjunto dessa crítica repetitiva
e, como ficou dito, incapaz de ir além do texto imediato, José
Castello escreveu o primeiro livro inteligente sobre um poeta
dominado pelo cerebralismo. É estudo que nos faz realmente
compreender-lhe a poesia (e não apenas as palavras dos poemas), se,
por uma questão de afinidades eletivas, nem todos estarão
predispostos a amá-la. É "um dos poetas brasileiros mais
importantes" numa literatura que talvez esteja mais bem representada
por outros poetas que ele mesmo e os seus admiradores mais
entusiastas julgarão menos importantes.
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