Wilson Martins
Prosa & Verso, 14.12.96
Herdeiro do expressionismo
à brasileira
Modernolatria e simultaneidade - eis o
credo artístico e literário nos primeiros 30 anos do século, até que
o sentimento trágico da vida viesse a substituí-lo na premonição da
guerra inevitável que se prenunciava (v. Par Bergman. "Modernolatria"
et "Simultaneitã", 1962). O clímax do processo ocorreu nos
tumultuosos anos 20, com a euforia compensatória da tragédia que
terminara, mas, como os Estados Unidos já eram desde os meados do
século anterior o verdadeiro mundo novo que se contrapunha às
esclerosadas estruturas mentais do bem denominado Velho Mundo, a
obra de Walt Whitman criara desde 1855 o estilo expressionista
destinado a encarnar organicamente a idéia do moderno.
O Velho Mundo levou mais de meio
século para percebê-lo, propondo, em 1909, o manifesto futurista,
código teórico e "técnico" das concepções artísticas
revolucionárias. O curioso é que Fernando Pessoa, tendo escrito,
além das odes paradigmáticas do movimento em língua portuguesa, uma
saudação a Walt Whitman (programada para o terceiro número do
"Orfeu"), encarava Marinetti com suspeitosa ironia, conforme a
conhecida carta de 1917, que, aliás, não se sabe se foi realmente
enviada. A essa altura, dizia conhecer os manifestos que Marinetti
lhe enviara, acrescentando haver lido o "fino livro" de Boccioni
sobre o futurismo na pintura e na escultura: "Assim, não sou
ignorante em matéria de futurismo - e, em certa medida, estou mesmo
do seu lado."
Vinham, em seguida, as restrições: o
futurismo devia abandonar o seu extremado exclusivismo e
desenvolver-se muito mais. A concepção marinettiana da história era
"muito pouco futurista". Assinalava, entretanto, o enquadramento
civilizacional das novas idéias: concebido pela civilização anterior
à guerra, o futurismo não dispunha dos valores sociais necessários
para criar uma nova civilização: "É necessário, por conseqüência,
que o Futuro seja a síntese suprema de tudo o que se perdeu e de
tudo o que ainda existe, a fim de que possa engendrar o Infinito a
que nada falte e de que não esteja ausente nem um único aspecto da
Existência" (Páginas de estética, teoria e crítica literária, 1964).
Claro, essas maiúsculas de nebuloso
profetismo nem de longe preocupavam Marinetti, pois o seu futurismo,
como o nosso modernismo, melhor seria chamado de presentismo. De
qualquer maneira, o que nos interessa no momento é estabelecer a
genealogia estilística e mental de Adriano Espínola ("Em trânsito -
Táxi/Metrô". Rio: Topbooks, 1996), cujo expressionismo, raro em
nossa literatura (depois das experiências de Luís Aranha e, se
quisermos, de Sousa Andrade), responde ao programa futurista de
1909: "A poesia deve ser uma seqüência ininterrupta de imagens
novas" (vê-se que o make it new não foi inventado por Ezra Pound,
evidente leitor de Marinetti); além disso, é preciso orquestrá-las,
"dispondo-as segundo um máximo de desordem."
Marinetti celebrava os caracteres
sinaléticos da modernidade: os bondes de dois andares, os automóveis
esfomeados, a beleza da velocidade e os aeroplanos que começavam a
cruzar os ares em remígios espantosos. É fácil encontrar as
harmônicas e os reflexos de tudo isso na poesia daqueles tempos
(mais do que nos nossos, em que todas as novidades se banalizaram),
sem excluir, claro está, a de Luís Aranha, na qual Mário de Andrade
viu, algo paternalisticamente, uma literatura de ginasiano, sem
perceber que ali estava, embora em germe, o verdadeiro mestre do
moderno entre nós. É singular que Marinetti não se referisse ao
metrô de Paris, inaugurado em 1900: esse meio proletário de
transporte coletivo não interessou ao Supremo Sacerdote da máquina
no dealbar do mundo contemporâneo.
Adriano Espínola é o último rebento
dessa família, menos temporão do que pareceria à primeira vista, não
só pelo vigor sugestivo dos seus versos, mas também, em aparente
paradoxo, como representante de uma renovação literária ainda mal
percebida. De fato, superamos, em rápida sucessão, nestes últimos
anos, o regionalismo pitoresco dos modernistas, ainda que os seus
recessivos continuem a aparecer, celebrados como autênticas
novidades. É certo que, na Paulicéia desvairada, Mário de Andrade
registrou o impacto da máquina e da cidade moderna e da máquina na
cidade moderna, como o cinema, por exemplo (parte importante de sua
teorização, inexplicavelmente negligenciada pelos especialistas),
mas foi episódio único, "desmentido", anos depois, no Macunaíma.
Ficaram, igualmente, para trás a nostalgia retórica da Geração de 45
e a esquizofrenia concretista que, para salvar a poesia, achou
necessário destruí-la.
Assim como Affonso Romano de Sant‘Anna
leu a história da civilização nas pedras seculares de uma catedral,
revelando a consciência do tempo que dura onde Marinetti viu apenas
o tempo que passa (servidão insuperável do "moderno"), Adriano
Espínola substituiu o automóvel de corrida (que não serve para nada,
sendo embora mais belo que a Vitória de Samotrácia) pelo modesto
táxi que serve para tudo e é, ao lado do metrô, o meio de transporte
por excelência do homem moderno (o que o avião também é), assim
reintroduzindo o "valor social" que Fernando Pessoa dizia faltar ao
futurismo. Mas, de táxi ou de metrô, sua poesia é a aventura mental
"por dentro das ruas da cidade e da memória."
É pena que tivesse comprometido a
gravidade do percurso e da experiência, limitando-a ao efêmero
autobiográfico que o seu narcisismo o levou a escrever como escólio
absolutamente dispensável ao volume. Com isso, reduziu as
perspectivas de leitura e frustrou o efeito incoativo da poesia,
transformando-a, de visão expressionista do mundo moderno, em
simples manifestação impressionista de lirismo pessoal.
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